“O negro que lute
pra poder sonhar
em mudar isso aqui,
o poder tem tantas mãos
e só sabe mentir”
(Djavan, “Soweto”)
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Ismar C. de Souza*
Com ataques cuidadosamente dosados contra a política de cotas universitárias implantadas no Brasil – que está sob julgamento no Supremo Tribunal Federal –, e, na verdade, querendo atingir todas as lutas do negro brasileiro, o colunista da revista Veja Diogo Mainardi encampou de vez o discurso neo-racista brasileiro. “É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras”, afirma ele em “O quilombo do mundo” (edição 2057, 23/04/2008).
Mainardi se soma a outros jornalistas da Veja (impressa e online) e a outras pessoas que recebem espaço na maior revista de circulação nacional para mover um combate sem tréguas à aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, à política de cotas universitárias, à figura de Zumbi dos Palmares, ao Dia da Consciência Negra e, enfim, à causa da reparação das injustiças cometidas contra a comunidade negra ao longo da História brasileira.
Entremeando afirmações tendenciosas e citações do livro “Não Somos Racistas” (acredite quem quiser…) do guru do combate ao movimento negro brasileiro, o diretor de Jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, Mainardi se mostra ainda mais parcial quando tenta apoiar sua tortuosa racionália numa frase do senador de ascendência africana Barak Obama:
“Se olharem minhas filhas, Malia e Sasha, e disserem que elas estão numa situação bastante confortável, então (raça) não deveria ser um fator. Por outro lado, se houver um jovem branco que trabalhe, que se esforce, e que tenha superado grandes dificuldades, isso é algo que deveria ser levado em consideração.”
Tratou-se de um comentário superficial e meio confuso, proferido durante um debate eleitoral. A conclusão de que Obama “quebrou um tabu e defendeu abertamente o fim das cotas raciais” é uma óbvia forçação de barra. Mainardi subestima a inteligência dos seus leitores.
Agora vejamos o que a Veja, preconceituosamente, em sua página de internet, via outro jornalista da turma do Mainardi (Reinaldo Azevedo, postado em www.veja.com.br/reinaldo, no dia 07/01/2008, 15h:51), opinou sobre o mesmo senador e candidato a candidato do Partido Democrata:
“Que diabo se passa com o Partido Democrata americano, que tem como favoritos uma mulher e um negro com sobrenome islâmico e nenhum homem branco para enfrentá-los? (…) Para bom entendedor: tomo o par ‘homem branco’ como apelo simbólico à tradição e à conservação de um modelo que, inegavelmente, deu certo e fez a maior, mais importante e mais rica democracia do mundo, que venceu, por exemplo, o embate civilizatório com o comunismo.”
Como esse preconceito mal dissimulado ofende a qualquer ser humano digno desse nome, só restou à tropa de elite da Veja buscar o apoio da trupe dos conservadores raivosos, dos reacionários empedernidos e de alguns parlamentares influenciáveis que estão tentando barrar a implantação do Estatuto da Igualdade Racial.
Políticas de incentivo à integração do negro
Foi apenas em junho de 1998 que o Brasil empossou seu primeiro ministro de Estado negro, o mineiro Carlos Alberto Reis de Paula. Num país de aproximadamente 183 milhões de habitantes, com 11,5 milhões (6,3%) de negros, isso comprova que o Brasil é, sim, um país racista, ainda que de uma forma dissimulada.
O certo é que só recentemente o problema da integração e participação digna do negro na sociedade passou a ter visibilidade nacional como política de Estado. E já produziu efeitos, pois agora são cinco os negros que participam como ministros do governo federal. Antes, só entravam como empregados subalternos.
Os interesses e as idiossincrasias de nossa elite conservadora produziram convicções escravocratas que se tornaram estereótipos, ultrapassando os limites do simbólico e incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão dos negros na escala social, por menor que seja, sempre deu lugar a manifestações veladas ou ostensivas de ressentimentos.
Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por muito tempo, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar a inconformidade, vista como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolheu a discriminação ou preconceito.
Cotas raciais nos EUA e no Brasil
A campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos, que ganhou notoriedade internacional com a marcha de quase meio milhão de pessoas até Washington em 1963, foi o embrião da política oficial de cotas raciais, implementada a partir de 1970.
Em 1965, quando foi assinada a lei permitindo o voto e a eleição de negros nos EUA, a esmagadora maioria era pobre; assim, na primeira eleição, pouco mais de uma centena deles conquistou mandatos públicos. Hoje são mais de 8 mil.
Primeiro país a implantar o sistema de cotas, os EUA contam (abril/2008) com uma candidata negra à presidência da República, Cynthia Mckinney, do Green Party (Partido Verde estadunidense) e com Obama tendo grande chance de se tornar o postulante do Partido Democrata.
Se lá, como aqui, o sistema de cotas possui falhas e não resolveu todos os problemas raciais da nação, com certeza motivou um grande debate nacional e alavancou uma melhor participação dos negros em sua sociedade, tanto que esses já têm presença marcante na classe média, ao contrário do Brasil.
O reacionário Mainardi, contra tudo e contra todos
Na contramão dos grandes pesquisadores e educadores brasileiros, o colunista da Veja chegou ao cúmulo de propor que o Brasil siga o exemplo dos EUA, extinguindo totalmente a gratuidade no ensino superior:
“Se é para macaquear os Estados Unidos, temos de macaqueá-los por inteiro. A universidade pública americana cobra mensalidade dos alunos. Quem pode pagar, paga. Os outros se arranjam com bolsas, empréstimos ou bicos.”
Como se fosse possível equiparar dois países em estágios de desenvolvimento econômico tão diferentes! E como se os estudantes daqui tivessem a mesma facilidade em levantar recursos por meio de “bolsas, empréstimos ou bicos”!
Bem se vê que Mainardi, habitando ou não no Brasil, estará sempre a anos-luz de distância de nossa sofrida realidade… O que não o impede de tentar, arrogantemente, ensinar a nós, nativos, como devemos viver, segundo o figurino da metrópole.
A violência policial e o silêncio cúmplice dos neo-racistas
Negros de qualquer classe social, no Brasil, são tratados da forma mais preconceituosa e arbitrária pelas autoridades policiais – vide o caso do dentista Flávio Ferreira Sant’Ana, assassinado em 2004 na zona norte paulistana apenas por suspeitarem que tivesse roubado o luxuoso carro que dirigia.
É nas estatísticas da violência policial contra os negros que as contradições da sociedade brasileira se mostram mais agudas, como se depreende, por exemplo, de uma pesquisa que o Datafolha realizou em 1997 na cidade de São Paulo:
– a escolaridade e a condição financeira têm pouca influência sobre a freqüência e incidência das revistas policiais e da violência praticada pela polícia;
– entre os da raça negra, quase metade (48%) já foi revistada alguma vez. Desses, 21% já foram ofendidos verbalmente e 14%, agredidos fisicamente por policiais;
– os pardos superam os negros em ofensas: 27% deles foram ofendidos verbalmente e 12% agredidos fisicamente. Ao todo, 46% já foram revistados alguma vez;
– a população branca é menos visada pela polícia. Entre esses, 34% já passaram por uma revista, 17% ouviram ofensas e 6% já foram agredidos, menos da metade da incidência entre negros.
Sobre a violência seletiva aplicada em muito maior escala e intensidade contra a população negra pelas polícias estaduais, os neo-racistas se calam, não escrevendo uma palavra sequer. Tais fatos não entram nas elocubrações deles, as vidas ou direitos dessas pessoas não lhes interessam, pois na verdade não têm o que dizer sobre esse assunto. Nem mesmo o guru Ali Kamel, que parece ter fixação por estatísticas, encontrou justificativa para essas.
Final rancoroso e melancólico
Como já fizera no título, Mainardi termina seu artigo dando uma conotação pejorativa à palavra quilombo:
“O Brasil se refugiou no passado. O Brasil é o quilombo do mundo.”
Quilombo, segundo o dicionário Aurélio, é “estado de tipo africano formado, nos sertões brasileiros, por escravos fugidos”. Para nós, quilombo simboliza toda uma luta por liberdade e justiça. Ademais, como em alguns quilombos também viviam índios e brancos simpatizantes, pode ter sido o primeiro lugar no Brasil onde pessoas de raças diferentes conviveram harmoniosamente.
Destruidor de quilombos foi o bandeirante Domingos Jorge Velho, matador de negros do século XVII, até hoje relacionado entre os maiores assassinos de nossa História. Seus seguidores, como Mainardi, Reinaldo de Azevedo e Ali Kamel, atiram-se com o mesmo furor homicida contra a imagem dos quilombos. Só que, em vez de apertar gatilhos, comprimem teclas.
Não percebem, entretanto, que jamais conseguirão deletar as páginas de heroísmo escritas pelos negros, nem sua possibilidade de obterem agora o que lhes foi negado durante séculos.
Mas estão deletando a si próprios da civilização, eles sim refugiados num passado vergonhoso: aquele em que os preconceitos raciais ainda podiam ser expressos impunemente. Hoje, pelo contrário, só despertam perplexidade, indignação e asco.
* Ismar C. de Souza, 42 anos, é analista de suporte em informática e militante do Movimento Negro em Salvador. E-mail: ismarsouza@hotmail.com.