Um navegar mais atento pelas páginas da história revelará ao viajante os sussurros de tempos pousados em notas escritas com sangue, dor e intolerância. Desvendará tempos em que a barbárie, a dominação, a opressão e várias formas de exploração da pessoa humana eram compreendidas como consequência natural da hegemonia de um grupo “mais apto” sobre o outro tido como incapaz. Mostrará o tráfico de pessoas humanas, os navios negreiros e o direito de propriedade sobre homens, mulheres e crianças.
Continuando a sua excursão nas linhas anotadas no pergaminho do tempo, o navegante perceberá que as guerras sempre foram abundantes nos vários rincões do planeta, quase sempre realizadas para alimentar egos, conquistar territórios ou acumular riquezas materiais. Entenderá que pessoas humanas foram denominadas escravas e forçadas a trabalhar na construção dos sonhos e ambições desmedidas dos chefes tribais, dos reis e dos governantes da ocasião. Compreenderá que seres humanos foram sequestrados e partilhados entre os detentores das fortunas e das terras no mesmo patamar de coisa apropriada e destituída de direitos.
O Egito, a Mesopotâmia, a Índia, a China e os hebreus autorizaram no direito posto a propriedade de pessoas humanas através do instituto da escravidão. A civilização grega admitiu o trabalho escravo e a desigualdade de gênero no seu direito posto. Em Roma, também escravista, a plebe somente era considerada como elemento importante na definição da política do panem etcircenses.
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A aristocracia, os traficantes de escravos e os ricos comerciantes lucravam com o direito posto durante o mercantilismo, assim como os escravistas proprietários de terras na Independência dos EUA, os burgueses na Revolução Francesa, os industriais na Revolução Industrial, os proprietários de escravos no Império do Brasil e os barões do café na Velha República.
E, ao final de sua turnê pelo mundo da insensibilidade humana, concluirá que o direito de ter a propriedade das coisas e das pessoas era um velho conhecido dos códigos e das jurisprudências dos tribunais. A ele será revelado que a escravidão se perpetuou como plenamente “aceitável” em todos os recantos do planeta, até mesmo para as instituições religiosas, que também se faziam proprietárias de seres humanos.
Certamente, por isso se excluía do conceito de crime ou pecado a coisificação do trabalho humano, mesmo porque, segundo se pregava à época, os índios, as mulheres e os negros não nasceram aquinhoados com o sacro atributo da alma.
PublicidadeEntretanto, caso o venturoso viajante concorde em arrumar outra vez a bagagem do seu pensamento, embarcando nos últimos dados revelados pela ONU, que aponta para a existência de mais de 45 milhões de pessoas vítimas de trabalho escravo espalhados pelo mundo, sendo mais de 100 mil no Brasil, certamente perceberá que o ‘direito de ter a propriedade do ser’ permanece sendo praticado, embora camuflado em notas de rodapé da história, em legislações redigidas com regras ocultas ou decisões judicias disfarçadas em justas.
O escravo de hoje, embora não mais acorrentado e aprisionado em senzala, carrega em seu corpo a mesma brutalidade imposta pelos feitores, capitães do mato e traficantes de pessoas, transmutados em exploradores, aliciadores, “gatos” e pessoas tidas como “de bem”. Afinal, a cor azul que outrora irrigava o sangue do governante fora apenas substituída pela cor dourada do poder econômico.Esta cruel visão escravista mostrou o seu lado mais visível no dia 16 de outubro de 2017, quando publicada a Portaria 1.129/2017, do Ministério do Trabalho e Emprego. O governo plantonista, como já expusera na reforma que pretendeu rebatizar a legislação trabalhista com o nome de ”Consolidação das Lesões Trabalhistas”, outra vez persistiu na ideia de que o trabalho é “coisa” a ser apropriada pelo detentor das riquezas e do poder.
A portaria escravista, ao relativizar o conceito de trabalho análogo ao de escravo, pretende naufragar a nau da Constituição Federal de 1988 e, com ela, mergulhar no mundo submerso da insensibilidade a proa da dignidade da pessoa humana, a bússola da liberdade e o leme do direito fundamental consagrado na ideia de que ninguém será submetido à tortura, tampouco a tratamento desumano ou degradante.
O novo navio negreiro joga ao mar, como cargas inúteis, o art. 149, do Código Penal e as Convenções 29 e 105, da OIT, que definem o crime de redução à condição análoga à de escravo como caracterizado pela coação moral, psicológica ou física exercida para impedir ou de sobremaneira dificultar o desligamento do trabalhador de seu serviço.
Faz desembarcar da legislação brasileira a consolidada compreensão de que há trabalho degradante quando ocorre abuso na exigência do empregador, tanto no que diz respeito à quantidade, extensão e intensidade, quanto em relação às condições oferecidas para a sua execução. E, na mesma remada, afunda a compreensão jurídica de que a jornada exaustiva pode se caracterizar tanto pelo critério quantitativo, quanto pela superação do limite legal de dez horas ou então, pelo critério qualitativo, quando houver pressões físicas e psicológicas ao trabalhador.
A trágica caravela conduzida pelo timoneiro plantonista, infelizmente, demonstra que a cultura escravista sobreviveu ao tempo, furtando a proposta constitucional que pretendia fazer do Brasil um país livre, igual e solidário. Indica, ainda, que o tráfico de pessoa humana pretende voltar a navegar livremente protegido, como se fazia antes da vigência Lei Eusébio de Queirós, no distante 04 de setembro de 1850.
Daí porque permanece atual a bela reflexão do advogado Luiz Gama, com a sua experiência de maior combatente das correntes que escravizam a nossa História: ”E se os altos poderes sociais, toleram estas cenas imorais; se não mente o rifão, já mui sabido: Ladrão que muito furta é protegido”.
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