A história é conhecida. Em 13 de dezembro de 1968, véspera do AI 5, o ato institucional que retirou as garantias individuais e escancarou a ditadura, o vice-presidente da República, o civil Pedro Aleixo, manifestou dessa maneira sua contrariedade ao presidente-general Costa e Silva: “O problema de uma lei assim não é o senhor. O problema é o guarda da esquina”, disse.
Pois o guarda da esquina assumiu diversas faces naquela época e volta a assombrar o país hoje, em meio a uma onda autoritária que não admite contestações, vomita certezas e inspira criaturas dos subterrâneos das instituições a exercerem o poder que acham que tem, sob inspiração de meios de comunicação hegemônicos e autoridades sem legitimidade.
Isso foi visto na Itália dos anos 30, com os camisas negras de Mussolini; na Alemanha nazista, com os camisas também pretas das SS e os camisas cinzas da AS; e até no Brasil, com os integralistas de Plínio Salgado – que, porém, preferiram o verde.
Em todos os casos, brutamontes desprovidos de cultura, inspirados por pseudo-intelectuais que advogavam um Estado autoritário contra a ameaça genérica dos comunistas, operários e trabalhadores rurais, instalaram o terror e o exerceram com prazer sádico contra qualquer um que ameaçasse uma visão de mundo simplista e maniqueísta. E não era coincidência que atos praticados por eles beneficiavam o establishment financeiro e industrial.
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Assim como o guarda da esquina, a intolerância e o autoritarismo assumem diversas formas. Que o diga o dono do tradicional bar carioca Bip Bip, Alfredinho, conduzido a uma delegacia porque um policial rodoviário (!) se sentiu ofendido por ter sido vaiado ao reclamar de uma homenagem à vereadora Marielle Franco, executada na véspera. Ou professores das escolas públicas de São Paulo, espancados pela PM ao promoverem ato pacífico contra a reforma da Previdência municipal. Ou os moradores das comunidades cariocas, inclusive crianças, obrigados a se identificar e mostrar seus pertences aos militares nos primeiros dias da intervenção na área de segurança.
A lista é grande. Inclui a ideia, depois abandonada, de mandados de busca genéricos, sem endereço certo, para caçar bandidos nas comunidades cariocas – mesmo que isso significasse invadir casas de trabalhadores honestos. Ou milícias contratadas por ruralistas para impedir a passagem da caravana do ex-presidente Lula no sul do país.
A lista inclui ainda bizarrices, como o inquérito aberto pela polícia, a pedido do Ministério Público de São Paulo, para investigar suposto crime de apologia às drogas cometido pelo médico Elisaldo Carlini, que no ano passado promoveu seminário sobre o assunto e ousou incluir na lista de painelistas o líder de uma igreja rastafári, que faz uso ritual da maconha.
O religioso não compareceu, pois cumpria pena por tráfico de drogas, condenado por plantar uns 30 pés de maconha em sua propriedade, mas o médico, um dos maiores especialistas na pesquisa sobre drogas psicotrópicas do Brasil, especializado em psicofarmacologia pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, e um dos criadores do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), teve que se explicar para as autoridades por abordar tema tabu.
Aqui um parêntese: não se vê em qualquer discussão oficial sobre o que fazer contra o tráfico de drogas estudo sério sobre medida adotada em diversos países, como Estados Unidos e Uruguai, onde o consumo de drogas é regulamentado, o que quebrou um dos pés do crime organizado. Em outros, como Chile, Argentina, Colômbia e Venezuela, o uso não é considerado crime. Especialistas de renome no mundo advogam a regulamentação do uso como maneira mais eficaz de acabar com o poder dos traficantes. Aqui se prefere prender, prender e prender, o que atinge mais a população negra e pobre e contribui para o caos do sistema penitenciário, que retroalimenta a violência. Fecha parênteses.
A onda repressora e totalitária, sem respeito aos direitos individuais, é exercida e legitimada por autoridades de diversos escalões. Pode ser vista no suicídio do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Luiz Carlos Cancellier, preso e impedido de voltar ao campus pela Polícia Federal com base em acusações ainda não especificadas. Na tentativa de censura a disciplinas de universidades públicas que se propõem a analisar o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como um golpe de Estado. E na propagação irresponsável de notícias falsas que pretendem denegrir a história e a luta de Marielle Franco.
Essa onda é visível ainda em atos repressivos que podem ser considerados banais, mas que não podem ser tolerados sob pena de tornarem atual não apenas a profecia de Pedro Aleixo como o famoso poema do pastor luterano Martin Niemöller contra os nazistas, aquele que diz: “Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei… No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar…”
Esse preâmbulo é apenas para contextualizar um desses atos aparentemente banais, testemunhado por minha filha Clara, 22 anos, e que teve como vítimas colegas dela de faculdade. O grupo se dirigia a uma manifestação contra a morte de Marielle nesta terça-feira (20), no Rio, quando um pelotão de seguranças do metrô invadiu o vagão e retirou os estudantes aos safanões. Um deles chegou a ficar com a perna presa entre o trem e a plataforma.
Veja o vídeo:
Os seguranças estavam atrás de alguém que tinha pulado a catraca e entrado no comboio sem pagar o bilhete. Na dúvida, retiraram todos os que ostentavam na roupa adesivo com a imagem de Marielle. A reação desproporcional e arbitrária visava localizar um suspeito cuja descrição provavelmente batia com a da maioria dos estudantes. Na dúvida, retirem todos. Na dúvida, são todos culpados. Na dúvida, desçam a porrada.
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