Soraia Costa
Símbolo da luta contra a violência doméstica, a biofarmacêutica Maria da Penha Maia, que emprestou seu nome à lei federal (11.340/2006) que endureceu a punição para quem comete agressões físicas e psicológicas contra mulheres, é uma sobrevivente. Depois de escapar de duas tentativas de assassinato, essa cearense de 63 anos conseguiu virar o jogo contra a cultura da impunidade e inaugurar uma nova fase para milhares de vítimas silenciosas desse tipo de violência.
A gestação da lei que aumentou o rigor contra os agressores domésticos começou ainda em 1983, 23 anos antes de ela ser sancionada pelo presidente Lula. Naquele ano, o então marido de Maria da Penha, o professor universitário colombiano Marco Antonio Heredia, tentou matá-la duas vezes.
Na primeira oportunidade, deu um tiro nas costas da biofarmacêutica enquanto ela dormia. Como explicação, ele afirmou que o tiro havia sido disparado por um assaltante que invadira o quarto. Maria da Penha ficou paraplégica.
No mesmo ano, novo ataque: Heredia empurrou a companheira da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro. Então com 38 anos, Maria da Penha tinha três filhas com idade entre dois e seis anos, frutos de seus seis anos de casamento com o colombiano.
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Após as duas tentativas de homicídio, em vez de esmorecer, a biofarmacêutica começou a atuar em movimentos sociais contra a violência e a impunidade. O caso, que se arrastou por duas décadas nos tribunais de Justiça, ganhou repercussão internacional e abriu caminho para entidades não-governamentais que pediam o endurecimento da punição contra os agressores.
Das cinzas
A atuação destacada de Maria da Penha, hoje uma das coordenadoras da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (Apavv) no Ceará, foi reconhecida pelo presidente Lula ao assinar a lei que incorporou seu nome, em agosto de 2006. “Essa mulher renasceu das cinzas para se transformar em um símbolo da luta contra a violência doméstica no nosso país”, declarou Lula em seu discurso.
A lei alterou o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal. Acabou com a possibilidade de o acusado se livrar da denúncia por meio do pagamento de multa ou doação de cestas básicas e eliminou amarras para a prisão dos denunciados. Além disso, aumentou de um para três anos a pena máxima de condenação.
“Eu acho que muita coisa ainda precisa ser mudada. Mas o meu objetivo foi atingido e eu estou lutando para a implementação dele. Estou lutando para que as outras mulheres não passem pelo que eu passei. Cada um tem condição de trabalhar por uma causa nobre”, afirma ela em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.
Na avaliação de Maria da Penha, a despeito das críticas que tem recebido, a nova lei já está mudando a realidade da mulher no país, e para melhor. “A gente sabe, e não só por causa das estatísticas, mas também porque, quando vamos às comunidades, as pessoas comentam que houve melhorias. Elas dizem: ‘o meu vizinho não bate mais na mulher porque o meu marido foi preso’", afirma.
Agressões psicológicas e físicas
A história de Maria da Penha e Marco Heredia lembra a de muitos casais que, em meses, transitam do céu para o inferno. Os dois se conheceram no final dos anos 70, quando ambos faziam mestrado na Universidade de São Paulo (USP). “Ele estava na Faculdade de Economia e eu na Faculdade de Ciências Farmacêuticas”, conta a biofarmacêutica. Na época, ela havia acabado de se mudar para a capital paulista depois de ter se separado do primeiro marido.
Maria da Penha lembra que as agressões de cunho psicológico começaram cerca de dois anos após o casamento. “Ele mudou de comportamento uns dois ou três anos depois que nos casamos. Foi assim que conseguiu a naturalização dele. Ele era colombiano e constituiu família para conseguir essa naturalização. Então, uma vez que estava com a naturalização garantida, ele mudou o comportamento. Na verdade eu acho até que ele não mudou, mas mostrou sua verdadeira face”, explica.
Ela destaca, porém, que antes das tentativas de homicídio seu ex-marido nunca a havia agredido fisicamente. “Marcas mesmo eu nunca tive, porque ele sabia que eu não iria ficar calada. Mas a pressão psicológica era muito pesada”, relata.
“As agressões eram aquelas que te diminuem e que te ofendem. Ele era aquela pessoa que você evita confrontar. Diz ‘amém’ para não confrontar”, explica ela, argumentando que, por isso, foi tão difícil denunciar o ex-marido a tempo de se evitar conseqüências mais graves.
“Culminou tudo com a tentativa de homicídio. Ali foi uma coisa que ficou mais fácil para fazer a denúncia. Imagina como seria difícil denunciar uma violência psicológica! Não teria nem onde ser feito isso, porque na época não existia delegacia para mulheres”, ressalta. “Aí, após a tentativa de assassinato, aumentou também a visibilidade em relação aos casos de violência doméstica. E, três anos depois do meu caso, foi criada a primeira delegacia de repressão a crimes contra as mulheres do país”, lembra ela.
Batalha na Justiça
A investigação contra Heredia começou em junho de 1983, mas a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual do Ceará em setembro de 1984. O primeiro julgamento durou oito anos, mas os advogados de Heredia conseguiram anular a sentença.
A sentença do segundo julgamento saiu em 1996. O ex-marido de Maria da Penha foi condenado a dez anos e meio de prisão, mas recorreu da decisão e permaneceu em liberdade.
A prisão de Heredia só ocorreu em outubro de 2002, depois que Maria da Penha, com a ajuda do Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (Cejil) e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), denunciou o Estado brasileiro por negligência à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estudos Americanos (OEA).
A denúncia foi acolhida pela comissão. Com isso, Heredia foi finalmente preso e cumpriu dois anos de pena em regime fechado, sendo libertado em 2004, 21 anos após os dois crimes.
As duas décadas de batalha judicial são lembradas com tristeza pela ativista. “A maior barreira foi o próprio Poder Judiciário, onde foram usados artifícios para protelar o processo. Tanto é que demorou 19 anos e seis meses. Faltavam seis meses para o caso prescrever e isso só não ocorreu porque recorremos ao comitê internacional”, ressalta.
“Foi um absurdo que eu senti na própria pele sobre a conduta em relação à violência de uma maneira geral, mas principalmente com relação à violência doméstica. Então eu não sosseguei mais e sempre que tinha oportunidade denunciava o Judiciário pela lentidão”, destaca a biofarmacêutica. “O crime iria prescrever. E foi graças à minha persistência e ao fato de ter encontrado as pessoas certas nas horas certas que a gente conseguiu a aprovação dessa lei”, acrescenta.
Para as mulheres que sofrem com agressões dos companheiros, Maria da Penha deixa um conselho. “Essas mulheres podem até continuar na violência, mas é porque querem. Porque elas têm condições de sair dessa violência. Nós estamos estruturados para resolver essa situação. Não é uma situação fácil, é difícil, mas se elas não forem atrás para resolver o problema delas, ninguém vai resolver isso por elas”, afirma. O resultado da luta de Maria da Penha pode ser visto não só na lei que dela originou, mas também no livro Sobrevivi… Posso contar, autobiografia lançada pela cearense em 1994.