Gabriel Huberman Tyles *
A criatividade dos manifestantes fez com que o governador do Rio de Janeiro sancionasse, às pressas, a Lei nº. 6528, de 11 de setembro de 2013, com o claro objetivo de vedar o uso de máscaras nas manifestações que continuam a ocorrer e assim deverão prosseguir, devido à indignação social que, com razão, aflora na sociedade brasileira.
Aliás, há muito tempo não se observava no Brasil a mobilização de tantas pessoas nas ruas. O sentimento intenso de patriotismo não era visto desde a época das Diretas Já ou do impeachment do então presidente Fernando Collor. É de pasmar a quantidade de pessoas que aderiram às manifestações. Depois de tantos escândalos e insatisfações populares (mensalão, precariedade dos transportes públicos, da saúde, da segurança, educação etc.), é certo que o aumento do passe de ônibus serviu como um verdadeiro estopim à sociedade brasileira que, cansada de ser “trapaceada”, decidiu, definitivamente, a cada angústia sentida, sair às ruas e protestar.
Sob o ponto de vista estritamente jurídico, os manifestantes, ao caminharem pelas ruas exigindo que o Estado tome uma posição frente aos anseios e desigualdades sociais, acabam por exercer três direitos previstos na Constituição Federal: a liberdade de manifestação do pensamento, de locomoção e de reunião.
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De modo objetivo, a Constituição Federal não deixa dúvidas de que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. (art. 5º, inciso XVI).
Isso significa que os participantes da reunião devem somente avisar a autoridade competente, a qual caberá garantir (e não intervir) a realização da reunião. Em regra, a autoridade não deve intervir ou aconselhar outro local, salvo se comprovadamente já estiver ciente de que outra reunião fora convocada para o mesmo local, pois o poder-dever da autoridade é somente garantir a realização da reunião. Importante notar que só se admitem reuniões pacíficas, isto é, sem armas, sendo vedado, portanto, a reunião de grupos armados. Afora esta situação, evidentemente a manifestação é livre!
E não poderia ser diferente, pois a Constituição Federal, seguindo a lógica histórica de garantir aos cidadãos instrumentos de reivindicação social, lhes conferiu esta garantia constitucional. Nesse sentido, as intervenções outrora realizadas pelas autoridades policiais objetivando restringir o acesso dos manifestantes às vias públicas (como, por exemplo, a Avenida Paulista) configuraram, sem dúvida, uma afronta à própria Constituição Federal, bem como ao Estado Democrático de Direito.
Há quem irá dizer que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, pelo que seria admissível proibir o uso de máscaras. Todavia, tal raciocínio é equivocado, pois a garantia do direito de manifestação é muito mais amplo e abarca a própria manifestação do pensamento.
Assim, basta uma leitura para se perceber com encantadora simplicidade que a nova lei sancionada pelo governador Sérgio Cabral, em seu artigo 3º, inciso III, expressamente proíbe a utilização de máscaras ao estabelecer que “o direito constitucional à reunião pública para manifestação do pensamento será exercido sem o uso de máscaras nem quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação”.
Ao cabo de contas, pelo predito art. 5º, do texto constitucional, não poderiam todos “reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”?
Como se não bastasse, a referida norma, que passo a chamar de “Lei dos Black Blocs”, pois é nítida a intenção de frear tais aglomerações no Estado do Rio de Janeiro, em seu artigo 4º, determina que “as Polícias só intervirão em reuniões públicas para manifestação do pensamento a fim de garantir o cumprimento de todos os requisitos do art. 3º ou (…)”, passando assim, ao absurdo de legitimar o uso de força policial para conter cidadãos mascarados que, de modo pacífico, se manifestem.
Ora, o que não se admite é a presença de “black blocs”, depredando o patrimônio público, sendo certo que as autoridades, diante desta situação, estão autorizadas a agir com fundamento no artigo 5º, inciso LXI (prisão em flagrante), pois, embora seja assegurada a liberdade de manifestação do pensamento, de locomoção e de reunião, eventuais delitos cometidos por ocasião das passeatas, como, por exemplo, incêndios, saques, destruição do patrimônio público, deverão ser contidos por meio da polícia, que deverá prender em flagrante o “manifestante” infrator, resguardando a incolumidade física dos demais.
Neste contexto, não se pode perder de vista que, com a mesma força utilizada para conter eventuais “black blocs” infratores, a polícia deve coibir os próprios policiais que desvirtuarem uma manifestação pacífica.
De toda forma, o que não se admite, são leis elaboradas ao arrepio da própria Constituição, ainda mais quando se restringe garantias do próprio cidadão. Por tudo isto, é bom deixar sinalizada a evidente afronta à Constituição Federal. Se a moda de legislar contra o texto constitucional virar rotina, em virtude dos protestos rotineiros, a “Lei dos Black Blocs” poderá ser o começo de um Estado Arbitrário que se diz Democrático.
* É advogado criminalista, bacharel em Direito pelo Mackenzie, pós-graduando pela PUC-SP e associado do escritório Euro Filho Advogados Associados. E-mail: gabriel@eurofilho.adv.br.