Ronaldo Nóbrega Medeiros*
Considerando-se as eleições brasileiras, as únicas leis que existem acerca do tema estão na Constituição Federal, no Código Eleitoral (Lei nº. 4.737/65), na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar nº. 64/90), na Lei das Eleições (Lei nº. 9.504/97), na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº. 9.096/95) e nos acórdãos e resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O presente artigo tem como foco o Código Eleitoral Brasileiro, que deixa o eleitor brasileiro privado do voto direto na escolha do seu candidato, já que há um sistema matemático de quociente eleitoral e partidário permitindo que parlamentares sejam eleitos por sobras de votos de partidos ou coligações.
Trata-se de um sistema político no qual o eleitor vota em um candidato e elege outro sem votos, já que grande parte dos eleitores não tem conhecimento da regra matemática aplicada nas eleições proporcionais para Casas legislativas. Por outro lado, a regra matemática deixa a democracia brasileira fragilizada e a liberdade eleitoral amordaçada ao método de D’Hondt
(Victor D’Hondt, jurista belga, idealizador da fórmula matemática).
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No entanto, a qualquer momento, o TSE pode mudar essa realidade melhorando as condições democráticas na escolha dos nossos candidatos, já que terá o condão de empreender uma verdadeira reforma política, ampla e democrática, como passaremos a ver neste artigo.
Apresento aqui razões que me levam a defender o fim do sistema matemático de quociente eleitoral e partidário, a fim de fazer prevalecerem a vontade soberana do eleitor e a efetivação do princípio da igualdade do voto na representação das Casas legislativas, para uma democracia verdadeiramente representativa pelo voto direto e não semidireto ou indireto. Essa poderá ser a maior contribuição à depuração da democracia brasileira feita pelo TSE após a decisão da fidelidade partidária.
A questão abordada está sendo analisada pelo ilustre ministro-relator Cezar Peluso e por seus demais colegas na Consulta 1394/2007, que formulei, indagando:
”(a) Para se chegar à ocupação das vagas não preenchidas, deve-se apurar o montante dos votos válidos obtidos pelo partido ou pela coligação e dividir pelo número de eleitor ou lugares obtidos. Após esse resultado aritmético, soma-se o numeral 1, e aí se tem a média da coligação ou partido?
(b) As sobras não devem ser entendidas como fórmulas para calcular os desvios do sistema eleitoral, com índice de desproporcionalidade com os votos que forem sufragados nas urnas?
(c) Os candidatos que tiveram votação superior ao cálculo das vagas distribuídas pelas sobras, serão considerados eleitos e preencherão as vagas remanescentes das eleições proporcionais?
(d) O art. 111 (Código Eleitoral) estabelece que o número de cadeiras em cada estado, por partido, na Câmara Federal ou Casas legislativas, será definido a partir do sistema proporcional, tendo preferência para a ocupação das vagas conquistadas pelos CANDIDATOS MAIS VOTADOS, sendo que estes assumirão a vaga respectiva INDEPENDENTEMENTE DO QUOCIENTE ELEITORAL?”
Todavia, em 14 de dezembro de 2007, o vice-procurador-geral eleitoral, Francisco Xavier Pinheiro Filho, emitiu parecer favorável a algumas das indagações acima. Não vou aqui emitir um juízo de valor sobre o parecer, até porque cabe a mim opinar apenas sobre a inconstitucionalidade do atual sistema eleitoral, onde dou aqui uma modesta contribuição para o questionamento da fórmula matemática versus a vontade soberana, como fiz em 2006 em consulta sobre a regra da verticalização, que trouxe a discussão para o terreno da lucidez na Justiça Eleitoral. O caso teve como relator o eminente ministro Marco Aurélio de Mello, que foi favorável ao fim da verticalização.
O TSE tem nos ensinado que a evolução de uma sociedade perpassa pelo atendimento a princípios gerais da sua Lei Maior. Foi assim na decisão da fidelidade partidária. Entretanto, o TSE pode fazer o país romper com a mentalidade colonialista de transplante de modelos e pôr fim a uma regra matemática, fazendo prevalecer o respeito à soberania popular, por voto secreto direto e intransferível, já que a Justiça Eleitoral tem a missão de conduzir os destinos do país a um processo democrático direto sem fórmula do Método D’Hondt.
Para se reconhecer a falta de efetividade de uma lei, deve-se primeiramente vislumbrar o real sentido do voto direto em uma “eleição” e, em seguida, responder a um questionamento: quem tem mais votos? Em uma democracia verdadeira haverá de prevalecer a votação, e não um sistema político eleitoral que permite mandatos flexíveis.
Nesse contexto, defendo o posicionamento de que os artigos 106 a 111 do Código Eleitoral Brasileiro não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, violando o art. 45 da CF e outros. Afinal, o princípio basilar da nossa democracia é, sem dúvida, o exercício da cidadania de cada indivíduo através do seu voto. Assim, cada voto é único, igual, indivisível e jamais multiplicável.
Revela-se até mesmo inusitado que o sistema eletrônico adotado no Brasil, considerado o mais perfeito do mundo, tenha, concomitantemente, uma fórmula matemática que atinge o princípio da boa-fé dos eleitores brasileiros, já que modifica o desejo soberano, até mesmo de um dia para outro.
É claro que com o fim da fórmula matemática de D’Hondt deixam de existir as coligações partidárias, que possuem, em sua maioria, viés puramente pragmático e nada ideológico. E, por fim, acabaria o desejo de algumas agremiações no sentido de criar uma lista partidária que é o grande ponto crítico que colocaria em risco o desejo soberano dos eleitores. Isso porque um pré-candidato em primeiro lugar na lista não quer sair desta posição. Assim, ele vai gerenciar toda estrutura capaz de preservá-lo. Portanto, o TSE, ao analisar a consulta mencionada, terá a oportunidade de efetivar a reforma política, ampla e democrática.
Para melhor compreender a questão explicitada, vejamos como é o sistema político-partidário atualmente no Brasil, já que a maior parte dos eleitores não sabe e não conhece o sistema.
O preenchimento das vagas nas Casas legislativas (Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas, Câmara Legislativa do DF e Câmara dos Deputados) ocorre através da regra eleitoral simples, onde, primeiro, se apura o quociente eleitoral e, posteriormente, o quociente partidário para se chegar a um primeiro resultado do número de vagas que cada partido terá direito na respectiva Casa.
Assim, o quociente eleitoral é encontrado dividindo-se o número de votos válidos pelo número de vagas colocadas em disputa para serem preenchidas pela Casa legislativa de acordo com o número de vagas.
O partido ou coligação partidária que não tenha atingindo o quociente eleitoral, não poderá participar da distribuição das vagas. Ou seja, se existem 11 vagas para a Casa, um determinado candidato que tenha sido o terceiro mais votado não será eleito se o seu partido ou coligação não tiver atingido o quociente. Em outras palavras, resta evidenciado que tal sistemática nunca favoreceu os pequenos partidos brasileiros, já que os partidos que não atingem o quociente não participam da distribuição das vagas. São as cláusulas de desempenho, que fixam porcentagens mínimas do eleitorado para que um partido tenha representação parlamentar. Isso é inconstitucional?
Assim, o TSE pode agir e corrigir esta manifesta distorção. Afinal, aprendemos desde os bancos dos cursos de Direito que a eleição do candidato deve sempre estar sob o manto da legalidade e da legitimidade. Com efeito, a Justiça eleitoral deve defender a democracia, a ordem democrática, a Lei Maior, a força do Direito, para fazer cumprir a vontade soberana do povo e garantir a verdadeira cidadania da vontade real do eleitor. Não admitir, em plena democracia, regramentos criados no tempo da ditadura.
De certa forma, mesmo considerando a questão de matéria de índole constitucional, a qual somente poderia ser objeto de análise por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), é importante frisar que o TSE já se pronunciou em matéria de ordem (in)constitucional.
Lembramos, a título de exemplo, que os ministros do TSE, nas eleições de 2006, ao apreciarem três dispositivos da Lei 11.300/06, entenderam que eles seriam inaplicáveis naquele pleito. Já o artigo 35-A do mesmo diploma legal, referente à divulgação de pesquisas eleitorais, foi considerado inconstitucional.
Imagino que o momento pode ser propício a mudanças. Bastaria menção constitucional ao artigo 14 da Constituição Federal para que a Justiça Eleitoral brasileira se posicionasse favorável à CTA 1.394, verbis: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, CF, art. 14”.
Assim, a eleição brasileira será moralizadora, já que se submeteria à Constituição Federal para adequar-se ao voto direto e não ao indireto por fórmula matemática. A democracia brasileira já esperou tempo demais. O presidente do TSE, ministro Marco Aurélio, e os demais ministros da corte de Justiça, têm credibilidade da Nação brasileira para fazer valer o voto direito, sem a regra matemática, ou seja, a "camisa-de-força", que restringe a verdade real nas unas.
Por oportuno, veja-se que foi a partir da aprovação do Requerimento 518, de 19 de abril de 1995, que houve a designação da Comissão Temporária Interna no Senado destinada a estudar a reforma partidária, na época presidida pelo saudoso senador paraibano Humberto Lucena. Vale dizer, aí já se vão 13 anos, sem nada de concreto, deixando nossa democracia refém de uma regra matemática.
A idéia de acabar com a regra do quociente eleitoral e partidário foi proposição apresentada na Câmara em 28 de junho de 2000 pelo ex-deputado federal Luciano Bivar (PE), com a finalidade de alterar o caput do art. 45 da CF, acrescentando-lhe § 3º, no seguinte teor:
“Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.
§ 3º Serão considerados eleitos os candidatos mais votados em cada circunscrição, computados os votos nominais por eles obtidos mais o resultado da divisão dos votos de legenda pelo número de candidatos do partido".
Não há dúvida de que a proposição apresentada na Câmara dos Deputados pelo deputado federal Luciano Bivar, atual presidente nacional do Partido Social Liberal (PSL), é uma idéia democrática, para a escolha dos mandatos parlamentares pelo voto direto, já que combate definitivamente as migrações partidárias e coligações de agremiações sem ideologia partidária que existem a cada eleição.
Cabe, por derradeiro, fazer duas asserções. Em primeiro lugar, os votos preferenciais devem determinar a ordem dos eleitos, que dão o maior peso à votação popular. Diluir o quociente eleitoral é permitir a eleição da livre escolha por parte dos eleitores. Em segundo lugar, embora sem prova de raciocínio lógico matemático, a fórmula do quociente eleitoral aplicada pela Justiça eleitoral brasileira incorre em um equívoco lamentável.
Vejamos a expressão “mais um”, que foi colocada no inciso I do artigo 109 do Código Eleitoral, entre vírgulas, exatamente para excluí-la de qualquer fator de divisão, sendo acrescido o numeral 1 após aquele cálculo ao resultado da operação final. E não acrescido ao número de parlamentares, como se faz no processo eleitoral, até porque, se o número 1 fosse acrescido na fração tanto como “x” quanto como “y”, este significaria um voto.
Mas a lei é clara quanto à captação de sufrágio. Nem mesmo o legislador poderia atribuir a qualquer candidato voto por ele não recebido, uma vez que somente o povo através do exercício da cidadania pode fazê-lo. Não podem uma fórmula aritmética e um sistema equivocado ser superiores aos direitos fundamentais de um cidadão ou podem?
É por isso que creio que a necessária confiança para a escolha dos nossos representantes deve estar só nos alicerces dos votos do povo, e não nas elucubrações matemáticas que embaralham e escondem o voto direto e o direito real do eleitor brasileiro.
Talvez seja cabível a seguinte pergunta: levando-se em conta que, em um concurso público, candidatos são habilitados por ordem de pontuação obtida, por que não prevalecer a votação proporcional direta do eleitor, sem cálculo de quocientes?
Se nada fizermos, data venia, a Constituição não passará de um pretensioso, ridículo e caro pedaço de papel se não pudermos contar com uma cidadania direta com voto real e consciente que possa exigir o verdadeiro respeito às urnas. Infelizmente, a ignorância do direito do voto direto parece ser a herança que deixaremos para as futuras gerações. Não podemos, honestamente, acreditar que o eleitor vote pensando eleger um representante, quando, na verdade, acaba elegendo outro, sem votos.
Votamos de forma direta, indireta ou semidireta numa democracia? Pode uma fórmula matemática criar votos? E aí concordamos que o TSE deve avocar para si o papel catalisador da necessária reforma política, ampla e democrática, para modificar essa realidade brasileira tão desagradável, que não é percebida por uma população que pensa votar direto em seu candidato nas eleições proporcionais. Vota, sim, em proporcionalidade aritmética.
*Ronaldo Nóbrega Medeiros é jornalista e acadêmico de Direito em Brasília. Atuou nos Tribunais Regionais Eleitorais e no Tribunal Superior Eleitoral como delegado nacional e secretário nacional, representando um partido político.
Referências bibliográficas:
VINHAES, J. Alberto, Mattosso J. Xavier.(orgs.), Revista de Direito Político Eleitoral (1958). Brasil, Vols I II.
MEDEIROS, Ronaldo Nóbrega. Consulta nº. 1394. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições. Brasília: 2006.
SENADO FEDERAL. Relatório nº. 01/95. Comissão Temporária Interna destinada a estudar a reforma política. Relator Senador Sérgio Machado. Brasília: 1995.
BIVAR, Luciano Caldas. PEC nº. 267/2000 apresentada na CÂMARA DOS DEPUTADOS. Altera o art. 45, da Constituição Federal, determinando a eleição dos candidatos individualmente mais votados à Câmara dos Deputados, às Assembléias Legislativas e à Câmara Legislativa.
MIRANDA, Sandra Julien (Coord.) Código Eleitoral: mini/obra. Ed. São Paulo: Editora Rideel, 2001. BRASIL, Constituição Federal de 1988. Congresso Nacional Brasileiro. Edições Técnicas da Gráfica do Senado Federal, 2006.
RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 6ª Edição, Revista e Atualizada até a Lei da Minirreforma Eleitoral nº 11.300/2006. Editora Impetus, 2006.