Luís Roberto Barroso *
Sou Luís Roberto Barroso, nasci em Vassouras, no Estado do Rio, em 11 de março de 1958. Meu pai é Roberto Bernardes Barroso, também de Vassouras, na verdade de Paty do Alferes, que na época pertencia a Vassouras, e a minha mãe Judith Luna Soriano Barroso. Ela nasceu no Rio de Janeiro, mas na verdade foi criada até os 17 anos no Uruguai, em Montevidéu, e depois veio para o Brasil e estudou Direito na antiga Faculdade Nacional de Direito. Uma época em que era relativamente incomum ter mulheres fazendo faculdade, de modo que ela teve uma dose razoável de pioneirismo. Creio que se formou em 1954.
Vivemos em Vassouras até 1962, 1963, e então nos mudamos para o Rio. Meu pai fez um concurso para o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, uma carreira pública. Então nós nos mudamos para o Rio. Naquela época, Vassouras, que era e continua sendo adorável, tinha poucos recursos educacionais. O ensino só ia até o Ginásio, não havia Científico (hoje, ensino médio). Portanto, em termos de perspectiva para os filhos, e até perspectiva profissional, passou a ser um lugar com limitações. De modo que nós temos vínculos profundos com a cidade, mas nos mudamos todos para o Rio. Eu diria que até o início da minha vida adulta, talvez até eu entrar para a faculdade, a minha vida “normal” continuava sendo em Vassouras. Eu ia para lá todos os fins de semana em que podia. Demorei a virar um ser urbano. Hoje em dia eu sou totalmente convertido. Mas demorei… Eu gostava de andar a cavalo, de andar pela rua em uma cidade pacata. E de jogar bola. Só não me transformei em um craque por falta de talento: joguei na grama, em quadra e depois, já no Rio, na praia. As minhas memórias de Vassouras são registros extremamente felizes de uma época boa, de juventude.
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Meu pai é um homem do interior – até hoje. Tem uma pequena fazenda próxima a Vassouras, em Miguel Pereira, e a aposentadoria dele significou passar uma boa parte da semana lá. Minha mãe, que era judia, tinha uma perspectiva mais cosmopolita do mundo, muito típica dos judeus. Ela tinha essa alma, esse espírito judaico de que é preciso estar no mundo e qualquer lugar pode ser a sua casa. E é preciso aprender línguas, é preciso viajar… Sofri muito esta influência dela. Interessei-me por línguas, fui estudar fora. Enfim, foi uma combinação interessante. Assim, meu pai era católico, minha mãe era judia. Minha casa era um espaço ecumênico e eu acho que esta marca de como eles respeitavam a origem e as crenças de cada um é uma marca importante que eu tenho em minha vida e considero isso um fator que me fez ver o mundo de uma forma tolerante, sem dogmatismos.
Depois, quando eu fui fazer um intercâmbio na adolescência, nos Estados Unidos, aos 15 anos, morei com uma família protestante, presbiteriana, de modo que aí aumentou um pouco o pluralismo religioso na minha vida. E eu ia à missa aos domingos. Integrei-me à rotina da família e, portanto, se eles iam à missa, eu ia à missa. E muito adiante na minha vida, quando eu fui fazer a minha pós-graduação em Yale, já beirando os 30 anos, meu vizinho de porta era da Arábia Saudita, um muçulmano praticante. No primeiro dia em que cheguei ao apartamento que tinha alugado, que pertencia à universidade, por alguma razão a luz tinha sido desligada. E então esse meu vizinho puxou uma extensão de luz da casa dele até a minha e, desde o primeiro momento, nos tornamos amigos apesar do abismo cultural. Tinha um nome estranhíssimo, nós os chamávamos de Sheik, ele se vestia à caráter e a mulher dele também…
Havia uma certa dificuldade de interlocução sobre interesses comuns. Mas mesmo assim tínhamos uma relação mais do que boa. Uma relação de pessoas que se queriam bem. Um dia, eu ia para a faculdade, me dirigi à esposa do Sheik e disse a ela que estava esperando um livro, ou uma encomenda do Brasil, e quando chegasse o correio, que ela, por favor, recebesse para mim, porque ela ficava em casa. Nesta noite, quando eu voltei da universidade, o Sheik bateu lá na minha porta, com um ar grave – gentil, porém grave – e me pediu que eu, por favor, não voltasse a me dirigir à esposa dele na sua ausência, porque isso violava a cultura dele. Um homem não pode se dirigir à mulher de outro homem sem que esteja na presença do marido, do pai ou do irmão! Eles são verdadeiramente obcecados por isso no mundo árabe.
De modo que a minha relação com a religião desde a origem é uma relação ecumênica. É uma relação de quem sente conforto em diferentes ambientes. A tradição judaico-cristã… Eu acho que no fundo, embora a certidão de batismo da nossa civilização diga que ela é judaico-cristã, somos todos no fundo herdeiros da filosofia grega. A idéia ocidental de razão é tributária da experiência grega, uma experiência riquíssima e que eu acho que condicionou a percepção do mundo! Acho que o Ocidente reverencia um pouco menos do que deveria a maravilhosa experiência do que foi a Grécia, e que foi retomada pelos romanos. Depois chegou ao cristianismo, na configuração que teve ao longo dos séculos.
Acho que nós somos – e eu particularmente me interesso por isto -, herdeiros de um racionalismo grego e de um monoteísmo judaico. Duas civilizações que influenciaram muito o mundo, mas que nunca se misturaram. Histórias que correram paralelas, mas que provavelmente foram as duas grandes experiências… A racionalidade grega e o monoteísmo judaico são as duas grandes tradições ocidentais.
Bom, eu estudei brevemente em Vassouras. E embora tenha sido pouco tempo, tenho um registro forte desta época, em que a gente se reunia no pátio e cantava o hino nacional. No Rio, estudei inicialmente, ainda no pré-primário, numa escola chamada Cícero Pena, que ainda existe. Depois fiz o primário na Escola Roma. Até hoje lembro da professora do primário, que era uma mulher muito interessante intelectualmente… Dona Zoraide. Depois fiz o ginásio no Pedro Álvares Cabral, e o primeiro científico. Durante o segundo científico, fui fazer um intercâmbio nos Estados Unidos. Passei uma temporada lá, voltei para o Brasil, e fiz o curso pré-vestibular. Era o Miguel Couto Bahiense, que ficava ali na rua Bolívar, perto do cinema Roxy. E aí prestei o vestibular e passei em Direito, na UERJ, e em Economia e Administração na PUC. E durante 2 anos e meio eu fiz Direito na UERJ e fiz Administração e Economia na PUC. E eu gostava muito da PUC, tinha muitos amigos. Era um ambiente mais festivo. Mais aburguesado do que a UERJ, no bom sentido (sem qualquer conotação pejorativa).
Mas depois a Matemática passou a radicalizar. Passou de Cálculo I para Cálculo II… Estatística I, Estatística II, e aí eu fui descobrindo que eu não era feito daquele material… E quando chegou numa matéria específica chamada Pesquisa Operacional, em que era preciso desenvolver as coisas no espaço, em R3 – e eu vejo tudo plano -, achei que era a hora de encerrar a minha suposta carreira na área econômica. Tranquei a matrícula na PUC e nunca mais retomei. E esse período coincidiu um pouco com uma certa descoberta do Direito e uma intensa militância no movimento estudantil, que marcou a minha vida de uma maneira muito singular. Eu era muito voltado para isto.
Comecei a cursar a UERJ em 1976. O primeiro ano… Naquela época era por ano, não era por período! Até teve trote… O trote é uma manifestação de alguma dose de primitivismo. Ele foi embrutecendo com o tempo. Nós dávamos aulas, fingíamos ser professores. Chegávamos vestidos de terno e dávamos aula com uma linguagem barroca e mandávamos comprar livros impossíveis de serem encontrados. Lembro-me de uma das aulas-trote que nós organizamos, era um colega nosso que dava, era um artista. E ele entrava de terno, brilhantina na cabeça. E naquela época, marcada ainda por um anti-comunismo intenso, entrava em sala e perguntava para alguém com ar assustado: “Quantas repúblicas há na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?” E o pobre do aluno, da aluna, olhava com ar perplexo. E ele dizia: “Como é que o senhor pode pretender estudar Direito sem saber o número de repúblicas da União Soviética?” Com um tom… a pessoa se sentia a pior criatura do mundo por não saber essa informação. E, apenas para constar aqui, eram 15!
Mas o que mais me chamou a atenção, desde o primeiro momento da minha convivência com o Direito, foi a linguagem. Uma linguagem estranha. Barroca! Desnecessariamente empolada. Desde o primeiro momento eu me propus a não ser daquele jeito! E investir o máximo de energia possível na simplificação da linguagem jurídica. E acho que faço parte de uma geração que superou isto! E os meus alunos, por exemplo, têm – e acho que uma parte por empenho meu -, também esta percepção crítica da linguagem jurídica, a percepção de que ninguém é mais inteligente se chamar autorização do cônjuge de outorga uxória, ou se chamar o Supremo Tribunal de Excelso Pretório e outras variações. A linguagem jurídica já enfrenta problemas estéticos dramáticos. Portanto, não é preciso piorá-la.
Nós temos uma linguagem que incorpora, como se fossem expressões normais da vida, coisas como mútuo feneratício, eleição de cabecel, anticrese, compáscuo… Um domínio do conhecimento que já tem um vocabulário como esse, não precisa de ninguém para piorá-lo. Portanto, é preciso investir na simplificação da linguagem jurídica. E eu digo para os meus alunos desde o começo que a gente deve falar simples, com sujeito, verbo e predicado, e sempre que possível, nesta ordem.
E eu acho que nós, aqui da UERJ, com todas as dificuldades por causa do serviço público, da universidade pública, contribuímos de maneira muito significativa para uma revolução na linguagem do Direito em termos de simplificação, e contribuímos também na minha área para uma revolução no modo como se pensa, como se pratica o Direito Constitucional no Brasil.
O meu professor de Direito Constitucional foi o Fernando Whitaker da Cunha, que era um homem muito culto. Era desembargador do Tribunal de Justiça do Estado e era de uma escola do Direito Constitucional, de uma escola tradicional que não ensinava um direito constitucional normativo, mas uma disciplina muito ligada às instituições políticas. Porque o Direito Constitucional do Brasil, naquela época, sofria muita influência ainda do Direito Francês. O Direito Constitucional francês sempre foi um direito ligado às instituições políticas, à ciência política, e não propriamente a uma prática judicial perante os tribunais, que é uma característica da experiência americana. Toda experiência constitucional européia era ligada à parte que se diz orgânica da constituição. Portanto, estudavam os Poderes – o Legislativo, o Executivo, o Judiciário -, mas o Direito Constitucional não era percebido como um instrumento de atuação dos profissionais do direito, dos juízes, dos advogados… como eram o Direito Civil ou o Direito Comercial.
Esta revolução no Direito Constitucional foi feita, em ampla medida, a partir daqui da UERJ. A minha própria tese de livre-docência chamava-se o “Direito Constitucional e a efetividade de suas normas”, que era o desenvolvimento de um artigo anterior, que eu tinha escrito, chamado “Por que não uma constituição para valer?”. E neste momento, em meados da década de 80, é que começa esse movimento de transformação da constituição num instrumento de trabalho. E esse era um movimento importante porque, mesmo aquela constituição que era a Constituição de 1969, constituição do regime militar, tinha partes extremamente avançadas, extremamente progressistas.
Portanto, transformar a Constituição num instrumento de trabalho dos juízes, dos operadores políticos, era permitir que o Direito se tornasse mais progressista. E efetivamente esse movimento desaguou na Constituição de 1988, que tem muitas deficiências, mas certamente é a Constituição que fez a travessia bem sucedida do Brasil de um regime autoritário, intolerante e por vezes violento, para um Estado Democrático de Direito. E é uma Constituição que em muitas das suas partes é uma constituição progressista. De modo que eu faço parte de uma geração que sonhou um país em liberdade e venceu! E eu celebro isso porque nós perdemos em tantas outras coisas que eu estou celebrando pelo menos a vitória de termos promovido uma redemocratização.
E eu acho que promovemos uma redemocratização política profunda no Brasil. Social não! Essa nós perdemos, mas a redemocratização política no Brasil tem sobrevivido a sobressaltos que em outras épocas já teriam levado a golpes de Estado e à quebra da legalidade constitucional. Então, nos últimos anos no Brasil, sobretudo depois de 1988, nós vivemos experiências drásticas. Destituiu-se um Presidente da República. Houve crises agudas como a dos “anões do orçamento”, afastamento de senadores importantes no esquema de poder da República, uma vitória na eleição presidencial de um candidato de oposição, com um discurso de esquerda, como é o do Partido dos Trabalhadores. Todos esses episódios, em outras épocas da história do Brasil, teriam levado a turbulências incontroláveis e a golpes de Estado. Nós atravessamos as múltiplas crises nos últimos anos sem que ninguém cogitasse, uma vez sequer, de uma solução que não fosse o cumprimento da Constituição e o respeito ao jogo democrático. Portanto, nós percorremos, e muito rapidamente, todo os ciclos do atraso nesta matéria. Não em outras, infelizmente! Mas, nesta matéria, nós percorremos. E esta conquista é uma conquista política da nossa geração. Desta geração da segunda metade da década de 1970.
Eu era bom aluno. E um militante aplicado. Eu comecei a despertar politicamente uns dois anos antes de entrar para a faculdade, mais ou menos em 74. Tinha 15, 16 anos. A política começou a me chamar atenção. O fato de que ainda existia no Brasil uma ditadura… Começou a acender uma luz amarela, eu diria, na minha alma…: “Alguma coisa está errada neste país”. Era uma época em que o Pasquim ainda era uma referência tanto de humor quanto de política, embora a censura fosse intensa. O Pasquim tinha uma característica… Todas as edições enxovalhavam o Austregésilo de Athayde, que era o presidente da Academia Brasileira de Letras! E eu não conseguia entender porque é que uma figura tão amena e low profile, como era o Austregésilo de Athayde, era enxovalhado toda semana pelo Pasquim. E depois eu comecei a me dar conta de que havia uma censura tão intensa que o Austregésilo de Athayde era a pessoa mais importante de quem eles podiam falar mal… E, portanto, eles abusavam do direito de falar mal do Austregésilo.
Mas era uma época em que o país era muito vivido em sutilezas, em entrelinhas, em pequenos comentários que a censura não captava. E isso começou a me chamar à atenção. Mas o grande marco que me fez despertar para a política e a percepção de que era indispensável repensar o Brasil, veio em 1975: foi a morte do jornalista Wladimir Herzog. Era um jornalista da TV Cultura de São Paulo, militante de esquerda. Não tenho certeza absoluta, mas acho que era filiado ao Partido Comunista Brasileiro e era um homem ligado à TV Cultura de São Paulo. E ele foi convidado a depor nas dependências do II Exército em São Paulo e em 24 ou 48 horas ele estava morto. E a versão oficial é a de que ele tinha cometido suicídio. A grande imprensa não divulgava nada, nem a pequena!
A manchete do Pasquim… Eu me lembro bem disso! Naquele período era “Tudo em ordem”. Só que o “T” era caído para um lado, o “U” estava tombado para o outro lado, o “D” estava invertido… Portanto, aquilo começou a me chamar à atenção, havia um país que fluía por fora do que noticiava a grande imprensa… Um país mais complexo, para além do que saía no Jornal Nacional. Comecei a me interessar pela política e, evidentemente, a política brasileira naquele momento, quer dizer, 75-76, era uma política que se fazia toda dentro do oficialismo. Era preciso criar uma alternativa… Os dois partidos eram o MDB e a ARENA. Em 74 assume Ernesto Geisel, que imprime uma linha e faz um discurso que contrastava com o do período anterior que era o do Médici, um período de grande violência institucional, de grande tolerância com abusos cometidos pelo Estado, com a tortura em escala ampla.
Eu não estou falando de situações de confronto… O livro do Gáspari sobre esta matéria é primoroso. Mas eu estou falando de pessoas já presas e totalmente subjugadas e submetidas a sessões rotineiras de tortura, que mais evidenciavam uma perversão do que qualquer outra finalidade. Depois, historicamente, se procurou legitimar isso com explicações mais elaboradas. Mas é uma mancha indelével… E aí eu comecei a me interessar por esses temas. Num primeiro momento, apenas do ponto de vista de me informar. Comprava livros. Eu descobri Marx. Comecei a ler Marx aí em 1976… Mas ainda num projeto pessoal de auto-instrução. Em 1977 eu, no 2º ano da Faculdade, o presidente Geisel que vinha fazendo um discurso de abertura, lenta, gradual e segura, e que de certa forma vinha mesmo fazendo uma abertura, ele fecha o Congresso e edita o famoso Pacote de Abril. Eram as Emendas Constitucionais número 7 e número 8. Uma era uma emenda que fazia uma reforma no Poder Judiciário e a outra era uma emenda que mudava as regras do jogo para evitar que nas eleições seguintes houvesse qualquer risco de a oposição chegar ao poder. Então ele mudou a composição do Colégio Eleitoral. Criou a figura dos senadores biônicos…
Aquela atitude do Geisel ao fechar o Congresso trouxe uma razoável onda de ceticismo a mim e a uma quantidade de pessoas na minha geração, de que nós efetivamente estaríamos caminhando para a normalização institucional. E veio a percepção de que era preciso fazer algum tipo de resistência, algum tipo de confronto com aquele sistema para ajudar a empurrá-lo para a margem da história. Portanto, foi quando o movimento estudantil começou a se reorganizar… Preciso dizer, para não passar uma idéia de heroísmo que não corresponderia à verdade histórica, que já não eram tempos perigosíssimos como era a primeira metade da década de 70. Mas ainda eram tempos de risco. De ser chamado ao DOPS… Casos de tortura ainda aconteciam, embora não propriamente no movimento estudantil, que tinha uma certa proteção institucional, aquela aura…
O que permitia que, por exemplo, no movimento estudantil nós fizéssemos mais ousadias do que em outros espaços da vida brasileira. Quer dizer, professores corriam mais riscos, trabalhadores e organizações corriam muitos riscos e os estudantes tinham uma certa imunidade, o que facilitou a reorganização do movimento. Portanto, a partir de 1977, nós formamos um grupo… Não éramos mais do que meia dúzia de pessoas, que debatiam política internamente. E ao longo de 1978 ele foi efetivamente reconstruído. As entidades estudantis eram todas ilegais e, portanto, o nosso Centro Acadêmico era clandestino. As eleições eram complicadíssimas. Complicadíssimas! Porque a Faculdade e a Universidade mandavam arrancar todos os cartazes e, portanto, nós tínhamos um sistema permanente de reposição, que dava um trabalho danado. Primeiro nós fizemos uma primeira gestão do Centro Acadêmico sem eleições. Era uma comissão: eu, a Rita Cortez, o André Felice, o Wadi Damous, o Joaquim Almeida e houve um episódio específico em que o grupo rachou. É… não éramos mais do que 10, mas já havia racha.
A gente se reunia em salas de aula, depois da aula, ou no hall ou eventualmente num bar que tinha aqui perto chamado Petisco da Vila. Nós colocávamos nossos cartazes, nossas manifestações políticas pelos corredores. As pessoas começavam a se interessar, mas na manhã seguinte tudo era arrancado. Portanto, nós criamos uma indústria de reposição de cartazes, em que a gente vivia fazendo cartazes… Tinha um pessoal que trabalhava já em sindicatos, que fazia “silk screen” (cartazes coloridos) e sabia usar mimeógrafo, que se não me engano ainda era a álcool. Era tudo muito precário, mas era o que a gente podia fazer. Tinha uma moça, a Marcina Melo, que depois foi parar na juventude do PDT – nunca mais a encontrei -, também ajudava a fazer os cartazes e a organizar as reuniões. Às vezes as reuniões eram na casa dela, às vezes eram aqui na faculdade, às vezes eram no Petisco e excepcionalmente, – mas isso era o pessoal que tinha um pouquinho mais de grana -, ali no Baixo Leblon, Diagonal, Pizzaria Guanabara. E ali se reunia o pessoal ligado ao Partidão, que era o nome de guerra do PCB. Uma curiosidade do movimento estudantil é que não tinha a direita, porque a direita estava no poder.
Não tinha nem direita, nem liberais! Porque a direita, os conservadores e os liberais (estes nem tanto) estavam no poder. Então não havia nenhuma mobilização neste sentido. Portanto, o movimento estudantil se dividia em diferentes segmentos de esquerda. Esta era a curiosidade. A facção menos à esquerda era a do velho “Partidão”, dos socialistas, da esquerda democrática – onde eu me incluía, eu não era do “Partidão” -, e os liberais assim mais progressistas.
E aí estes grupos se segmentaram. E no grupo de resistência – porém sem radicalismo, sem considerar a opção de luta armada contra a ditadura -, ficamos basicamente a Rita e eu, que éramos as lideranças: o nosso grupo se chamava “Construção”. E a liderança da ala mais à esquerda – o grupo deles -, se chamava “Participação” (que depois se uniu com outras tendência de esquerda, como o MEP). Curiosidade era que as brigas tinham a intensidade proporcional às paixões daquela época, e o Wadi e eu brigamos eleitoralmente. Brigava-se por tudo. Brigava-se pelo jornal, brigava-se pela parede. Brigava-se nas eleições. Brigava-se por teoria política. Brigas, evidentemente, intelectuais!
Era tudo muito civilizado nesse aspecto, não me lembro de ter testemunhado nenhum conflito físico interno, pelo menos. Mas as brigas eram constantes, viscerais. Comigo e com o Wadi aconteceu uma coisa curiosa: nós nos formamos em 1980 e havíamos rompido por causa do movimento estudantil. Foi cada um para um lado. Há uns 4 ou 5 anos atrás, portanto, já em 2000 e pouco, eu fui a um lançamento de um livro e lá estava o Wadi. Tinha um grupo de autores do livro, todos meus amigos, e eu fui cumprimentando um por um na fila. E no final da fila, o último era o Wadi, com quem eu não falava há mais de 20 anos! Tínhamos brigado no movimento estudantil. E aí, quando chegou no final da fila eu disse: “Wadi, 20 anos já estão de bom tamanho, né?” E aí nos abraçamos e passamos a ter uma relação cordial. Habitamos espaços diferentes, mas temos uma relação cordial. O sectarismo era uma característica do movimento de esquerda desde o tempo em que éramos seis.
Em 1977 ou 78 nós estávamos reunidos, a comissão que dirigia o Centro Acadêmico que nós recém-criáramos. Um dos nossos companheiros chamava-se Luiz Otávio Azevedo Soares. Nós éramos muito amigos. Luiz Otávio também participava do movimento, era um sujeito muito apaixonado, e era um estudioso, um sujeito que conhecia teoria política (o primeiro sujeito que me falou: “Você já leu Lênin?” Eu disse: “Lênin?! Quem é esse sujeito?”). Pois então, em uma dessas reuniões, em que éramos 10 ou 12, a gente começando a aumentar o grupo, o Luis Otávio foi, Luis Otávio e Mônica – uma outra moça que nunca mais vi -, um dia os dois foram convocados para depor no DPPS – Departamento de Polícia Política e Social. Aquilo foi um susto para todo mundo, porque a gente achava que tinha um pouco de imunidade. E ali no DPPS, naqueles dias, acho que no começo de 78, ainda podia significar entrar e não sair, enfim, sofrer algum tipo de violência. E o Luis Otávio e a Mônica – e não por acaso -, eram pessoas de uma certa forma menos protegidas ali no grupo, de famílias com menor inserção social. E aquilo gerou um susto! Nós tomamos um susto com aquilo e eu fui procurar o diretor da faculdade, o professor Oscar Dias Corrêa.
O professor Oscar Dias Corrêa era da velha UDN. Preciso dizer que hoje nós somos muito amigos e eu tenho muito carinho por ele. Mas naquela ocasião, um dirigente de Centro Acadêmico e um diretor de faculdade estavam em lados opostos. Ainda mais um diretor com as características que tinha o professor Oscar. Ele vinha da UDN, ele tinha um discurso liberal-conservador muito contundente. Ele apoiava o regime militar e eu então fui pedir a ele que interferisse junto ao DPPS para evitar qualquer tipo de violência aos dois, que iam depor. Mas aí o professor Oscar me disse: “Eu não sou comunista! Eu não gosto de comunista! Vocês precisam assumir o que vocês fazem e eu não vou me meter nesse assunto, e não vou ligar coisa nenhuma!” O que correspondia ao temperamento dele e ele era ideologicamente antagonista do que nós fazíamos. Para outras coisas a minha relação com ele funcionou rigorosamente bem: a gente conseguiu o Escritório Modelo na gestão dele, etc… Mas quer dizer, a política, naquele momento, não era com ele e ele não gostava. E ele dizia cumprir a lei. E falava: “Eu não reconheço Centro Acadêmico. Centro Acadêmico é ilegal. A legislação não admite”. E, portanto, nós ficamos num certo grau de desamparo. E aí eu fui procurar um sujeito que eu não conhecia, que era o Presidente da Ordem dos Advogados. Tinha acabado de ser eleito, o Raimundo Faoro. E eu não o conhecia, salvo de nome, mas tinham dito que ele era um sujeito diferenciado. O jovem, ainda mais naquela idade, não é muito reverente.
Fui até a Ordem dos Advogados, a sede era no Rio naquela época. Fomos um grupo, talvez umas três pessoas, batemos lá na porta do Raimundo Faoro e dissemos: “Nós temos um problema! Precisamos da ajuda da Ordem”. E ele, que era um homem muito interessante, um acadêmico que se revelou um personagem decisivo na transição democrática brasileira, ali em 78, 79, nos recebeu, nos ouviu, e ligou para o DPPS. Veja: além das virtudes pessoais, ele tinha também um pouco a imunidade do Presidente da Ordem. Ele pegou o telefone e disse: “Vão depor aí fulano e beltrano… Aqui quem fala é o presidente da OAB, e eu estou interessado em saber do desenvolvimento deste procedimento”. Só isto! Já fez toda a diferença. Porque o Luis Otávio e a Mônica foram depor e com o DPPS sabendo que o presidente da Ordem estava interessado… Não sofreram nenhum tipo de violência física, mas muita intimidação pessoal, inclusive com fotos nossas no hall, distribuindo panfletos, e na sala onde nos reuníamos. Todos fotografados! E, portanto, surgiu um fenômeno que era uma praga daqueles dias, era a desconfiança: saber quem era o infiltrado que tirava as fotos! Quem era infiltrado? E o delegado mostrava: “olha, no dia tal, você distribuiu o panfleto tal”. “Não, absolutamente!” E o sujeito mostrava a foto e o panfleto que tinha sido distribuído. Então você imagina um grupo pequeno, dividido e desconfiado…
Mas ai nós fundamos um jornal, chamava-se “Andaime”. E o Andaime foi um marco! Primeiro porque dividiu o grupo, porque o pessoal mais à esquerda não queria fazer o jornal, e menos ainda um jornal naquele tom, que era considerado, naquele tempo, muito moderado. Então o grupo rachou e saiu o pessoal do Wadi, o pessoal mais à esquerda. E a Rita e o Luis Otávio, que estavam do meu lado no aspecto político, também não queriam fazer jornal. Mas fizemos, e aí se compôs um novo grupo. Um pouco menos politizado, mas fizemos um jornal muito interessante. Durou uns dois anos, e nós tínhamos um chargista, um cartunista, que eu não sei como é que veio parar ali, chamava-se Mané Moreira. Ele publicava umas notas do Pasquim. Era o único sujeito que entendia de jornal! Tinha ligações com o Pasquim e nós então começamos a conceber o jornal. De certa forma eu funcionava como editor-chefe e o Mané Moreira como o editor gráfico. Era independente do CALC. Participavam também o André Felice e o José Muiños Piñeiro, que depois veio a ser Procurador-geral de Justiça do Rio. O André é um defensor público muito respeitado, foi presidente da Associação Nacional dos Defensores.
O CALC foi primeiro recriado como uma ‘comissão pró-centro acadêmico’ e aí, no final de 78, fizemos uma eleição e o nosso grupo perdeu a eleição por três votos! Nós fazíamos reuniões no hall. Na divisão de trabalhos, a Rita era a pessoa mais operacional. Ela tinha acesso ao mimeógrafo, cartazes… E eu era o sujeito do gogó… Era eu que subia no banco e convocava. Era eu que falava quando nós passávamos nas salas… O sangue gelava… A gente batia na porta das salas de aula e tinha professor que dizia assim: “Não, aqui não pode ter manifestação política!” E havia professores que abriam a porta e diziam: “Mas é claro”. E eu tinha tanta estima pelos professores que faziam isso que até hoje, na minha sala, quem pede para falar, eu abro a porta e digo: “Olha, por favor, só seja breve, mas fique à vontade”. Porque eu sei como é difícil para um estudante entrar em uma sala e falar. As eleições foram de grandes mobilizações. Foi um sucesso!
Naquela época eram, formalmente, uns 1200, 1400 alunos. Uns 800 votavam… Eu tenho os panfletos da nossa chapa, que eu escrevia. Depois a gente fazia reuniões e cada palavra era negociada quase no tapa. E aí aconteciam coisas interessantes, porque eu não era do “Partidão”. E o “Partidão” tinha umas teses que fazia questão de contrabandear para qualquer tipo de manifestação. E acho que, às vezes, coincidiam com o que eu pensava, mas às vezes não coincidiam, era uma discussão complexa… Desde aquela época a esquerda democrática era uma frente, ao passo que os outros grupos (o MEP – Movimento de Emancipação do Proletariado, a Libelu…), se juntasse todo mundo, é mais ou menos como a burguesia brasileira hoje: cabe numa Kombi. Duas Kombis, enfim…
Era pouca gente, mas era intenso. Isso é que é bacana, talvez, ficar registrado para o projeto de memória da faculdade de Direito da UERJ. Esse dinamismo, essa participação dos estudantes do Direito – que hoje a gente já não pode imaginar como era -, naquele momento, que era um momento político tão diferenciado, como as pessoas eram engajadas.
O movimento estudantil tinha características muito peculiares! Veja, nós fizemos o Andaime e o Andaime talvez tenha sido o grande fator de mobilização geral, com um discurso progressista, mas moderado. A gente vendia 1000 exemplares do Andaime. Era vendido! Nós ficávamos ali no final da rampa e vendíamos. E as pessoas esperavam… É uma singularidade… Nós dependíamos do que arrecadávamos em uma edição para fazer a outra. E eu me lembro – nunca vou esquecer -, que um dos professores, de Direito Comercial, o Theóphilo Azeredo Santos, era dono de um banco. Quer dizer, ditadura militar, banco, TV Globo, a gente enxovalhava todo mundo. E aí o Theóphilo Azeredo Santos – que é um homem cordial, hoje em dia ele é meu amigo -, um homem muito gentil, distinto, mas naquele momento não era uma pessoa. Ele era um símbolo. Ele era um banqueiro! Subia a rampa, via que nós estávamos vendendo o jornal. O jornal custava 4 cruzeiros ou 5 cruzeiros … Ele dava 20. Meu Deus, era uma maravilha! Porque correspondia a muitos jornais, mas ao mesmo tempo era o poder econômico.
A gente usava um tom panfletário, mas não enxovalhava as pessoas moralmente, que era um parâmetro que eu acho que vale para a vida inteira, em qualquer segmento, em qualquer fase da vida. A gente pode ser radical, mas, se possível, deve ser educado! Então nós éramos radicais, mas éramos educados. Não xingávamos a mãe do diretor, mas fazíamos coisas com ele. Nós rodávamos o jornal na gráfica da Tribuna da Imprensa, que era a única gráfica que aceitava. Mas a Tribuna da Imprensa estava sob censura prévia! Então os censores ficavam lá na redação e na gráfica. E como é que nós fazíamos? De madrugada, quando eles saíam, as duas, três horas da manhã, nós entrávamos para rodar o Andaime. Rodava ali de noite… Era uma época em que tudo era feito a chumbo, máquinas de linotipo. A gente às vezes se queimava. Tudo complicado. Tinham uns gráficos… Aí, um dia, os censores voltaram. Esqueceram alguma coisa, quiseram ver mais alguma coisa e quando chegaram lá estavam rodando o nosso jornal. E aí levaram todo mundo para a Polícia Federal. Não houve truculência, não foi a rigor uma prisão. Foi uma apreensão. Mas fomos todos levados para a Polícia Federal, para conversar com o Superintendente da Polícia Federal, que era um homem sem nenhuma truculência, mas cujo discurso era: “vocês são inocentes úteis do comunismo internacional; o que vocês estão fazendo é antipatriótico…”. Era um discurso neste padrão e ele virou-se e disse assim: “Por exemplo, aqui nesse jornal de vocês tem um artigo que diz: ‘Censura, um tema censurável’. Eu queria dizer para vocês que no Brasil não há censura”. Então, sem perceber o ridículo daquela situação, ele dizia para nós – que estávamos lá apreendidos -, que no Brasil não havia censura! E ele dizia: “Eu só fiz isso para ter a oportunidade de ter uma conversa franca com vocês e adverti-los de que vocês estão fazendo o jogo do comunismo internacional, que é contra a família, que é contra a pátria” – que era o discurso que se fazia naquela época… Era o discurso da Escola Superior de Guerra. E era o discurso que legitimava a ditadura militar. Então fomos apreendidos… Esse episódio foi um episódio marcante. Em um debate sobre liberdade de expressão, há uns meses atrás, o Piñeiro e eu lembramos esse fato.
Depois das eleições de 79, no ano seguinte, aí nós ganhamos as eleições para o CALC. E tinha um pacto para evitar personalismos, que nós achávamos que tinha sido um dos fatores de ruína do movimento de 68. E por influência do velho “Partidão” tudo era um colegiado, um comitê… Era uma dificuldade pra deliberar então… Foi um ano glorioso… Nós fazíamos eventos, começamos a trazer pessoas… Não eram muitas porque tinha pouca gente que se dispunha, mas dos professores da casa, dois merecem registro importante: o Wilson Accioly, velho professor de Direito Constitucional, um velho liberal, e o Sérgio Ferraz. Foram os dois professores que aceitaram falar nas nossas manifestações. O Hélio Bicudo veio de São Paulo uma vez. Ele já combatia o esquadrão da morte. O PT não existia ainda, não era organizado. Havia também um promotor aqui do Rio, já falecido, chamado James Tubenchlak. Fora isso era um pessoal chapa branca mais progressista, por assim dizer: o presidente da OAB podia vir, mas tudo tinha que ser muito negociado, dependia de conseguir o auditório e essas pessoas também não queriam se expor a falar ali no hall e passar por uma situação de constrangimento.
Pois bem, e aí em 1979 ou 80 começa a se formar o PT. E aí há um racha complicado no movimento. Em 79 nós conseguimos realizar um dos grandes objetivos do movimento estudantil, que era a Lei da Anistia. Portanto, quando passou a lei da anistia, nós realizamos um capítulo importante da missão a que havíamos nos propostos. Foi um certo apogeu do movimento estudantil… Eu não narrei para você as nossas reuniões na PUC… Fizemos uma assembléia com três mil pessoas, polícia cercando, helicóptero fazendo rasante… UERJ, PUC, todo mundo. O Direito era até menos mobilizado, era um ambiente mais conservador. Mobilizar o Direito era difícil.
Houve dois momentos importantes antes de eu sair da faculdade… Primeiro veio a Lei da Anistia e aí aconteceram alguns processos que de uma certa forma quebraram a unidade do movimento estudantil – unidade propriamente não havia, mas atomizaram o movimento estudantil: a volta do Prestes, a formação do PT e a volta do Brizola. Tudo isso ali em 79-80! Por quê? Porque até então, todos trabalhávamos dentro de uma frente anti-ditadura. Mas aí voltam essas lideranças importantes, essas pessoas com projetos políticos pessoais e conflitantes. E aí o movimento passa por uma certa desorientação. O Prestes volta, tenta retomar o velho “Partidão”. É rejeitado pelo “Partidão” e se une ao Brizola. Então se formou um grupo que tinha o Prestes e o Brizola. Aliás, a chegada do Prestes foi apoteótica. Nós mesmos, aqui da UERJ, participamos da organização de uma grande mobilização para chegada dele no Galeão. Eu comecei a namorar a minha primeira mulher, que era militante do movimento estudantil, na chegada do Prestes. A Miriam, que era um pouco a musa da Participação, que era, como disse, o grupo de oposição ao nosso. Fomos nos casar muito tempo depois… Tivemos um casamento bom e feliz enquanto durou e somos amigos até hoje, embora a gente raramente se encontre. Mas as relações se faziam dentro do movimento também. Era um espaço social, um espaço político. A anistia, com a volta do Brizola e do Prestes, foi um fator que gerou uma certa desorientação. E também a criação do PT! Em 80 nós fizemos a maior mobilização da faculdade. E aí com adesão geral.
No início da década de 80, no governo Figueiredo, o regime militar teve dois marcos que simbolicamente aceleraram o seu fim: o primeiro foi a bomba colocada na Ordem dos Advogados, e ali foi um desses momentos de desembarque. Mesmo para quem, em alguma medida, ainda sentia alguma afinidade com o regime, aquele foi o marco de afastamento. Isso porque a Ordem dos Advogados do Brasil já expressava um pouco o pensamento liberal-conservador, queria a redemocratização, e a bomba explodiu na Ordem. Não atingiu o presidente, que era o Seabra Fagundes, mas matou a dona Lyda Monteiro, que era a secretária dele. Aquilo, simbolicamente, marcou o fim de uma era. O atentado partiu, inequivocamente, de dentro do governo ou de organizações muito próximas a ele. E foi em alguma medida acobertado pelo governo. E provocou um grande afastamento dos militares dos setores formadores de opinião que ainda se sentiam ligados a ele.
Nessa ocasião nós fizemos uma grande mobilização. Aí reunimos a faculdade inteira, fomos ao velório e depois fomos todos andando até o cemitério, em Botafogo, onde D. Lyda foi enterrada. Uma manifestação maravilhosa do ponto de vista político. A gente tinha um slogan que era: “Vai acabar, vai acabar, a Ditadura Militar” Era todo o movimento, ali tinha muitos milhares de pessoas. Foi um marco, o povo de volta na rua. Este processo de retomada da mobilização popular, de volta às ruas viveu seu apogeu em 1984, com a Campanha das Diretas Já.
Outro marco veio pouco tempo depois, em 30 de abril de 1981, com o atentado do Riocentro. Ali acabou o Regime Militar. A fatalidade da explosão de uma bomba dentro do carro do capitão e do sargento que a conduziam, revelou para quem não sabia que os atentados, o terrorismo de direita, estava dentro do governo. Figueiredo manifestou indignação, prometeu investigar, mas precisou voltar atrás. Aparentemente porque a articulação do atentado, que pretendia explodir bombas e causar pânico em um show musical no qual se comemorava o 1º de maio – organizado por grupos de esquerda, e cheio de artistas conhecidos – havia se dado muito próxima, talvez dentro do círculo do poder. Frustrado com o desdobramento do episódio, o General Golbery, que de certa forma era um dos artífices da abertura política, deixa o governo. Figueiredo teve um problema cardíaco grave logo à frente e o governo se arrastou até o fim.
E eu me formei no final de 1980. Perdi a eleição para orador da minha turma para o André Felice, que era meu amigo – é meu amigo até hoje -, que fez um discurso muito bonito e muito poético, e o meu discurso era totalmente engajado. Era um discurso em outro tom. E eu perdi pelo tom e pelas marcas do movimento estudantil… Uma coisa que eu aprendi desde essa época é que a militância, a vida pública faz com que você passe a ter pessoas que gostam de você de graça, e você começa a ter pessoas que não gostam de você de graça também. A política faz isso. E é uma sensação que me trouxe grande desconforto, descobrir que a política não é capaz de produzir unanimidade, é um fato real. Aliás, a vida dificilmente produz a unanimidade, mas a política tem um fator de desagregação…
De modo que eu perdi a eleição para orador da minha turma e tenho isto como um marco traumático da minha vida: porque era um momento importante, era o coroamento de tudo o que a gente tinha feito, e era um inventário do movimento que nós tínhamos construído. E então eu achava que era justo que fosse eu. E então aprendi que a vida não só separa, como a vida também não é justa… Mas por sorte ganhou o André, que era meu amigo e o discurso dele era muito bonito. Não quero diminuir o valor do trabalho dele, mas apenas estou politizando, porque estamos falando de política.
Naquele tempo a vida acadêmica ainda não era uma carreira como é hoje, o concurso público, o mestrado, o doutorado. Esta é uma área em que o Brasil melhorou muito, melhorou em uma velocidade e até em quantidade muito expressivas. A vida acadêmica no Brasil, a Faculdade de Direito da UERJ… Nós somos um centro de referência, e nós somos os melhores mesmo. Eu não falo isso com nenhuma pretensão, porque é um projeto institucional. Então, não é “a”, “b” ou “c”: somos um time campeão verdadeiramente e fizemos uma Pós-Graduação da qual nos orgulhamos. Naquele tempo não era assim. Então, você dependia do professor que quisesse ajudar, que tivesse boa vontade, quase um favor. Eu sempre quis ser professor, desde o final da faculdade esse era o meu projeto de vida.
Eu terminei a faculdade convencido de que eu não queria ir para a política, a minha geração não foi para a política. Eu queria ir para a vida acadêmica, eu queria dar aula de Direito Constitucional. Eu, portanto, procurei o professor de Direito Constitucional, que disse: “Ah, você tem muita vocação…, você tem embocadura…, portanto, você venha, vamos marcar, você dá umas aulinhas…”. E era um pouco assim que funcionava. E eu de fato comecei a dar algumas aulas de Direito Constitucional a convite deste professor. Mas isso era em final de 81, ainda era o Regime Militar, e aí veio o veto, dizendo: “ele foi do movimento estudantil, foi do Centro Acadêmico, e não é a pessoa que nós queremos ter aqui”. E esse professor me procurou e disse: “eu gosto muito de você, mas eu não tenho nenhuma condição de enfrentar isto e, portanto, eu lamento, mas nós vamos adiar o nosso projeto”. Eu fiquei devastado porque eu tinha transformado aquilo no meu projeto de vida: “eu quero ser um professor”. E aí fiquei meio desorientado.
Eu tinha um professor de Direito Internacional Privado que se chamava Jacob Dolinger, que era um homem judeu, ortodoxo, conservador, e que não pensava politicamente nada em comum comigo, mas era um acadêmico. Ele era um professor verdadeiro, era um estudioso que publicava regularmente. Eu fazia muito movimento estudantil, mas eu seletivamente escolhia as aulas e as matérias que eu prestigiava – e as boas eu prestigiava. Consegui conciliar e, portanto, era amigo dele. E ele disse: “eu vou te ajudar”. E eu disse: “o Sr. não está entendendo… Foi o SNI, o Sr. não vai conseguir nem achar eles, não tem uma porta em que o Sr. possa bater”. E ele disse: “eu vou ajudá-lo”.
E ele de fato me ajudou, conduziu com contatos dele uma articulação ampla, que envolveu o professor Oscar Dias Corrêa, que era um dos meus “adversários” – com aspas – no movimento estudantil. Eu briguei muito com o professor Oscar. E quando chegou esta hora, o professor Jacob Dolinger o procurou, e também ao professor Novelli – que era uma figura também emblemática, um grande professor da casa -, e ele procurou todo mundo que não corria nenhum risco de ser acusado de ser de esquerda, e costurou politicamente a possibilidade de eu dar aula. E eu enfrentei ainda um veto da direção da faculdade, e o professor Jacob conseguiu que eu fosse contratado pelo reitor. Fui contratado pela reitoria para dar aula. Mas não podia ser de Constitucional, tinha que ser Direito Internacional Privado, a cadeira mais difícil do curso.
O professor Jacob me mandou uma pequena bibliografia. Eu passei seis meses estudando Direito Internacional Privado, fazendo fichas, e comecei a dar aula. Fiquei até fazer o meu concurso para Constitucional quando se abriu uma vaga, já em 87, 88. Aí o país já era outro. Então o movimento estudantil trouxe uma dificuldade na minha vida acadêmica: a dificuldade durou pouco, mas eu não saberia te dizer o grau de frustração que significaria não poder ter dado continuidade ao meu projeto acadêmico.
Eu entrei na faculdade de Direito da UERJ numa manhã de março em 1976 e nunca mais saí daqui. Em 2006 faz 30 anos. Portanto, eu diria que a minha história de vida é um pouco a história da UERJ, com todas as dificuldades do ensino público em um país como o Brasil. Quer dizer, eu não tenho uma visão colorida, eu tenho uma percepção crítica, severa, das dificuldades. Mas ao comparar a UERJ de 1976 com a UERJ de 2005 eu sou capaz de ter um parâmetro de como o país melhorou. Já o ensino público não, o ensino público continua dependendo de pessoas idealistas. O ensino público faz com que os que se empenham e os que não se empenham tenham o mesmo tratamento jurídico e remuneratório, a mesma dignidade do cargo para quem faz acontecer e para quem é indiferente. Portanto, eu acho que o ensino público é fundamental, mas enfrenta muitas dificuldades. Não é só a dificuldade da falta de recursos, é a dificuldade de quem trata o ensino público como um “bico”, um espaço menos importante, não é cobrado por isto e, portanto, não se sente na obrigação de oferecer.
Mas na faculdade de Direito da UERJ eu acho que nós – não que a gente tenha ido de zero a cem, porque seria um desmerecimento com pessoas notáveis que já estavam aqui lá atrás -, nós profissionalizamos a vida acadêmica, e acho que ajudamos a criar uma geração de estudantes e de jovens professores que já é, ou vai ser, muito melhor que a nossa. O que, aliás, é a melhor coisa que um professor pode fazer na vida: fazer com que os seus sucessores sejam melhores do que ele pôde ser, de modo que eu acho que a história da UERJ certamente é uma história de sucesso, e eu diria uma história de grande sucesso. Mas não um sucesso banal, não um sucesso glamouroso, mas um sucesso difícil, em que o caminho tinha que ser feito e refeito ao andar. É uma sensação horrível de que uma má gestão pode pôr tudo a perder. Portanto, uma história de sucesso a ser celebrada, mas uma história difícil e um sucesso de risco.
Eu acho que uma das circunstâncias brasileiras, para bem e para mal, é que nós não somos cultores de tradições. E eu acho que para mal, isso tem a significação de que as pessoas não se alimentam das próprias tradições. As tradições às vezes são referências, são valores que ajudam em tempos de dificuldade. Nós não somos um país, uma civilização que cultive as tradições. E as tradições às vezes ajudam a manter acesa a chama e funcionam como uma referência quando os tempos se tornam difíceis. Claro que todo o excesso de tradicionalismo, sobretudo no meio jurídico, inibe o progresso, oprime as gerações, de modo que eu não sou um desses cultores obsessivos das glórias do passado: às vezes foram glórias que nem aconteceram, foram glórias fantasiadas. Mas eu acho que falta um pouco de tradição e falta um pouco de memória. Às vezes a gente reinventa o que já foi inventado ou não desfruta dos proveitos de uma história bem vivida. Portanto, eu acho que um projeto de memória, não como um investimento na alta exaltação ou no saudosismo, mas com o registro de fatos e de pessoas que fizeram as coisas acontecerem, eu acho formidável.
Achei maravilhoso dar este depoimento, fiquei até emocionado em alguns momentos. Primeiro porque obriga a gente a revisitar cenários que já estavam armazenados em arquivo morto, digamos assim. E segundo, até recoloca as coisas na sua dimensão. Quer dizer, nós tínhamos naquele momento uma sensação verdadeira de que nós estávamos fazendo o país mudar e eu preciso dizer que nunca perdi essa sensação, pode ter sido um cem mil avos ou um cinqüenta mil avos, mas eu acho que fiz parte de uma geração, que fiz parte de um grupo que ajudou o processo de redemocratização do Brasil. E acho que a nossa memória da ditadura é uma garantia da democracia no Brasil hoje, um certo sentimento de que não vamos deixar acontecer de novo. Então, neste momento, nesta conjuntura em que a gente vive agora, onde tudo parece estar trepidando e até alguns dos nossos melhores sonhos parecem estar ruindo, ninguém tem qualquer sentimento ou ímpeto que não seja o de respeitar as regras, o jogo democrático. E eu acho também uma outra coisa: que a vivência brasileira exige, para você se manter à tona e poder operar como cientista, como pessoa, enxergar além da superfície. O Brasil é um país em que o processo civilizatório anda muito mais rapidamente fora da vista, como um rio subterrâneo que corre caudaloso sem ser percebido. Eu acredito nisso. A realidade visível por vezes parece terrível, mas quando se olha o processo de uma certa distância histórica, constatamos que ele avançou. A vivência brasileira exige indignação, para fazer o processo andar, e resignação, para não que não se fique amargo. Ao falar dos últimos 30 anos, o período que nós cobrimos nessa conversa, é insuperável a constação de que nós somos hoje muito melhores do que éramos, e percorremos um longo caminho.
* Depoimento publicado originalmente no site do projeto “Faculdade de Direito da UERJ – 70 anos de história e memória”.
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