Tempos bicudos os nossos. Crescem a intolerância e o sectarismo. A globalização vai deixando suas vítimas pelo caminho, despertando a reação dos marginalizados pelo curso das coisas. A abundância gerada pela revolução tecnológica não é bem repartida. As guerras, a fome e a miséria produzem um enorme contingente de deserdados. A imigração em massa e o desemprego alimentam ódios recíprocos. O xenofobismo e fundamentalismos radicais geram conflitos abertos ou latentes que abraçam a cena contemporânea.
A vitória de Trump nos EUA, a expressiva votação da extrema direita na Áustria, a vitória do Brexit na Grã-Bretanha, a derrota da reforma constitucional na Itália, as perspectivas de radicalização na França, a forte presença do terrorismo como ameaça permanente são faces de um mundo que não oferece às novas gerações um horizonte alvissareiro. A intolerância racial, religiosa e política preenche os vazios deixados por uma globalização que incorpora o livre trânsito de mercadorias e capitais, mas não consegue lidar com o deslocamento dos excluídos.
A convivência com as diferenças e a necessidade da construção democrática de consensos progressivos tornam-se cada vez mais difíceis. Certa vez Gandhi afirmou: “tolerância é uma necessidade em todos os tempos e para todas as raças. Mas tolerância não significa aceitar o que se tolera”. Conviver com a divergência não é fácil. O dogmatismo e o sectarismo derivado obstruem canais de diálogo. É necessária uma atitude aberta, do ponto de vista comportamental, existencial e intelectual. É preciso reconhecer a legitimidade do outro e entender que nem sempre há uma única verdade.Leia também
Em perspectiva diversa o filósofo francês Raymond Aron nos disse: “se a tolerância nasce da dúvida, que nos ensinem a duvidar dos modelos e utopias, a recusar profecias da salvação, os arautos de catástrofes”. O fanatismo e o radicalismo, terrenos férteis de intolerância, não constroem pontes e sim abismos. E, como apontou Diderot: “do fanatismo à barbárie não há mais do que um passo”.
O Brasil, mergulhado em grave e multifacetada crise, não foge à regra. A intolerância e o sectarismo crescem de forma veloz e desordenada. O debate atual é marcado pela intransigência. O pensamento fica prisioneiro de “verdades absolutas” pré-concebidas. Preconceitos e atitudes agressivas contra os “diferentes” ganham corpo. Como alertou Nelson Rodrigues sobre essa atitude: “se os fatos são contra mim, pior para os fatos”. As redes sociais, grande avanço civilizatório, se tornam um verdadeiro campo de guerra a jorrar intolerância, intransigência, calúnias e agressões gratuitas.
Urge recuperar o espírito de grandes democratas que nos trouxeram até aqui como JK, Ulysses e Tancredo, que cultivaram a arte da política como campo de diálogo e disputa inspirado no interesse público e nacional, e marcado pelo respeito aos divergentes e pela busca dos consensos que fizeram o país avançar.