O último dia 20, segunda-feira, foi o Dia da Consciência Negra. Resolvi, como contribuição à reflexão, reler a Lei do Ventre Livre.
Ela (a lei) nos dá parte dos argumentos para a defesa da Lei de Cotas para afrodescendentes nas universidades e no serviço público, como política de reparação de danos historicamente causados a um povo.
A Lei do Ventre Livre é a explicitação de como causar danos. Não aos fazendeiros escravocratas, mas sim àqueles negros e negras que para cá foram forçados a migrar.
Essa lei foi assinada pela Princesa Isabel, em 28 de setembro de 1871. Esta lei considerava livres todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir da data da lei. O objetivo dela não era libertar ninguém, mas sim acalmar, apaziguar ou frear o movimento abolicionista. É esta a conclusão a que se chega ao analisar seus artigos e parágrafos.
O artigo primeiro da lei afirma que “os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre”.
O artigo os liberta, mas como são crianças recém-nascidas, quem os criará? O artigo os liberta e os parágrafos os prendem.
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O parágrafo primeiro estabelece que “os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei”.
Estas crianças podem, conforme o parágrafo sexto desta lei, por decisão judicial, ser retiradas das mães e dos senhores de escravos e entregues (artigo. 2º) a “associações, por ele (juiz) autorizadas”. As ditas associações (parágrafo 1º do artigo 2º) “terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços…”.
Os parágrafos fazem destas crianças mercadorias, como seu pai e sua mãe, ou um escravo, pelo menos até os 21 anos de idade.
A partir do momento em que atingisse a idade de 21 anos, para onde iria o “liberto” senão ao trabalho escravo?
A lei “libertou” e o parágrafo prendeu e submeteu o “ex-escravo” a uma situação não menos degradante que a de escravo.
Na década de 1870 e 1890, não existia indústria no Brasil. Existia o trabalho manual/artesanal de caráter familiar e o trabalho rural (grandes fazendas). O escravo e a escrava “libertos” não tinha terra onde se instalar e produzir, somente lhes restava trabalhar para o antigo dono ou para os vizinhos, que também era dono de escravos e escravas. Ou seja, ao atingir a idade de 21 anos, continuariam escravos. Pior, voltavam para o trabalho escravo sob a condição “salarial” que o dono da terra impunha.
Se, antes, o dono do escravo comprava-o e mantinha-o através do fornecimento da alimentação, agora não tinha esta obrigação e não havia leis que estabelecia o (salário) montante a pagar. Se antes tinha que alimentar para não morrer de fome e trabalhar, agora que o negro e a negra estão “libertos”, não tem necessidade de mantê-los vivos, pois se morrerem de fome e doenças, não é prejuízo. Estes vieram de graça, não foram comprados.
O povo negro foi submetido à escravidão antes e depois das leis (Ventre Livre, Lei dos Sexagenários e Lei Áurea) “libertárias”.
Esta longa escravidão e posterior exclusão, até do trabalho, justifica a Lei de Cotas: é a reparação ao dano causado a um povo.
Ideologicamente consciente, como é caso dos fascistas, ou por ignorância, muitos negam a Lei de Cotas. Inclusive alguns dos que a negam são negros, como é o caso do vereador fascista Fernando Holiday. Triste, mas existe negro fascista.
Parte dos que negam a Lei de Cotas alegam que a mesma não contribuirá com a diminuição do racismo. Pelo contrário, dizem, por causa da lei o “racismo pode aumentar”.
Reafirmando: a lei de cotas não foi criada com o objetivo de combater o racismo, mas para dar início no Brasil a uma política de reparação de danos causados ao longo de sua história.
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