Tarciso Nascimento
Depois de mergulhar em uma das piores crises de sua história, o Legislativo vai ter de se pautar pela prudência para se reerguer e evitar a maior renovação de quadros de todos os tempos em 2006. O alerta é do analista político Antônio Augusto Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e responsável pela publicação anual do mapa político no Congresso.
Para o novo ano, a receita de Queiroz aos parlamentares é menos preocupação com o resultado legislativo e mais com a constituição de um pacto político, já de olho na formação do cenário de 2007. “Quem quer que seja eleito presidente da República não vai ter maioria no Congresso. Isso já está carimbado. Será um ano em que vai ter de haver prudência por parte da oposição e por parte do governo atual. Se não houver, há risco de atraso de aposentadorias, salários, uma série de coisas”, avalia.
Com a experiência de quem acompanha o dia-a-dia do Congresso há mais de 20 anos, o analista político prevê uma renovação em torno de 60% do Legislativo para o próximo ano e aponta os erros do Planalto na condução do processo que resultou na maior crise do governo Lula. A concentração de poder nas mãos do PT, a falta de negociação de políticas públicas com os aliados e o contingenciamento excessivo de recursos do Orçamento e a voracidade do partido em antecipar o processo sucessório selaram, na avaliação dele, a atual crise política.
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Crise essa que, segundo Queiroz, não pode ser creditada, de forma alguma, à oposição. “Essa oposição até agora não fez nada de concreto para resultar nos escândalos que resultaram. Isso foi erro do governo, falta de articulação com sua base, desacerto na produção política”, diz. “O que a oposição quer é o desgaste, que a própria base aliada, chamada de fogo amigo, tem cuidado de fazer isso”, emenda.
Responsável pela publicação de Os Cem Cabeças do Congresso Nacional, que traz anualmente a lista dos parlamentares que mais se destacaram no ano anterior, Queiroz aponta o líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP), como a grande figura da Casa em 2005. “Ele conseguiu sustentar o governo sozinho, com muita competência, com muita habilidade. Teve que aprender algumas lições, porque o Mercadante é um pouco topetudo, mas é um sujeito extremamente disciplinado, sério e preparado”.
Estruturado para atuar no Congresso para transformar em normas legais as reivindicações predominantes dos trabalhadores, o Diap é constituído hoje por cerca de 900 entidades sindicais.
Congresso em Foco – No primeiro ano, o governo Lula aprovou tudo o que quis. Em 2003, foi obrigado a negociar. No ano passado, enfrentou o inferno com o mensalão. Por que a relação com o Congresso piora ano a ano?
Antônio Augusto Queiroz – É tradicional na política brasileira haver uma cooperação da oposição nos primeiros dois anos de mandato. Ela tende a ser cooperativa no sentido de dar condições de governabilidade ao presidente da República. A partir do segundo ano, que é quando efetivamente começa a proximidade do processo sucessório, a tendência natural é reduzir essa cooperação, e dependendo do relacionamento do governo com a oposição isso pode evoluir até mesmo para uma postura mais hostil. No caso do governo Lula houve mais do que isso. A própria base de apoio, que é uma base muita heterogênea e difusa, em dados momentos, se comportou como oposição, especialmente nesse momento de crise. Está havendo esse distanciamento natural daqueles que, em um primeiro momento, mesmo na oposição, se pautaram pela ética da responsabilidade. Agora estão se comportando como oposição ferrenha.
Em 2005, a produção legislativa caiu pela metade, o governo se atolou numa avalanche de denuncias, e agora o contribuinte arca com os custos da convocação extraordinária. Como é que fica a imagem do Legislativo perante a sociedade?
A imagem do poder Legislativo ficou extremamente deteriorada em razão de erros do governo na sucessão da Câmara. Foi eleito um candidato (Severino Cavalcanti) sob voto de protesto. Quando se elege alguém sob a forma de voto de protesto sempre dá errado. Nem sempre aquela pessoa eleita nessas condições está preparada para exercer o cargo. É o caso do Severino. Ele não tinha condições intelectuais nem éticas, nem a menor idéia da importância do cargo para o qual foi eleito. Esse foi um erro do governo nesse processo. A Câmara tinha um presidente com todas essas deficiências que a história mostrou ao longo desse período. Esse foi o divisor de águas na minha avaliação do processo. Agora, essa crise tem uma abrangência muito maior.
Qual foi o primeiro erro do governo?
Foi concentrar nas mãos do PT os principais cargos. Tinha uma base de apoio muito ampla para apoiar um governo que não era atrativo. O sujeito só tinha ônus, não tinha bônus. Em qualquer sistema presidencialista existem três formas de atrair apoio: a primeira forma é compartilhar o exercício do poder, ou seja, dar cargos para os aliados, normalmente com critérios de preparo, decência e ética. O PT não fez isso de modo adequado. Onde colocava um aliado como presidente, colocava um diretor-financeiro do partido para inviabilizar o presidente. As pessoas não tinham uma liberdade ampla para administrar o órgão. O segundo aspecto foi não negociar o conteúdo da política pública. Ele fazia e acontecia sem consultar a base. E o terceiro aspecto foi não cumprir as promessas de liberar recursos do Orçamento, através de convênios e de emendas. Se você tem três requisitos que permitem que o governo faça maioria e o governo não cumpre nenhum dos três adequadamente, ele não vai ter maioria nunca. Daí uma das razões da crise. A outra razão foi a ânsia e a voracidade do PT com relação à sucessão, primeiro municipal.
E a aliança com o PMDB comprometeu alguma coisa?
O governo acertou na escolha, mas errou no modo de fazer (a aliança). A ida do PMDB para o governo foi acertada do ponto de vista político, mas inadequada nos seus argumentos. Foi uma medida acertada o governo levar o PMDB para a base, mas deveria tê-lo feito logo no início. Fez bem depois. Mas no momento que o PMDB foi, acabou sendo inadequado do ponto de vista da percepção da base aliada com relação a 2006, provocando um trauma.
E qual foi o trauma?
É que quando o PMDB foi para a base formalmente, o partido recebeu cargo nos ministérios. Partidos como o PL, que apoiou o governo no 1º e no 2º turnos, como o PTB, no 2º, e o PP, que passou a apoiar o PT já durante o governo Lula, ficaram com a pulga atrás da orelha. Eles ficaram dizendo: “O PMDB está vindo agora depois de quase um ano. Esses caras fizeram um acordo com o PMDB para indicar o vice em 2006”. Aí, entrou um componente eleitoral no processo que tumultuou tudo. Eu acho que a origem da idéia do mensalão, dessa coisa do recurso que jorrou fácil para os partidos apoiarem o governo, veio em conseqüência disso.
Como assim?
A hipótese é a seguinte: o governo fez um acordo com o PMDB para 2006, excluindo os outros partidos. Então, eles foram cobrar de quem efetivamente decide o assunto. Procuraram quem decidia e perguntaram: “Afinal de contas, vocês fizeram acordo com o PMDB para 2006? Estamos descartados ou somos aliados preferenciais? Se somos aliados preferenciais, devemos ter um tratamento compatível com essa condição. Como o PT não podia nem queria dar a esses partidos uma condição de vanguarda no governo, buscou esse mecanismo idiota que prejudicou a imagem do partido de buscar financiamento para compensar esse tipo de coisa. Ou seja, substituiu a participação no governo pelo financiamento de campanha para o caixa-dois. Isso foi uma tragédia. Pode verificar que nos próprios Correios havia diretores indicados pelo PMDB. Antes, não havia nenhum problema. Quando o PMDB entrou, começou a disputa.
Em entrevista ao Congresso em Foco, há um ano, o senhor disse que o governo teria três desafios em 2005: manter o equilíbrio da base aliada e realizar as reformas política e sindical. Por que esse fracasso?
A crise atropelou todo esse processo. O primeiro erro foi a eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara. O segundo erro foi a ganância do PT em ocupar todos os cargos e não dar espaço para os aliados. O terceiro foi demorar fazer a aliança com o PMDB. Tudo isso foi propício para a desorganização da base. Por isso, o Congresso não deliberou. Se verificarmos, apenas quatro matérias relevantes foram aprovadas neste ano: a MP do Bem, a Lei de Biossegurança, a PEC Paralela da Previdência e os Consórcios Públicos.
E, para 2006, quais serão os desafios?
Eu acho que o grande desafio de 2006 é ter menos resultado legislativo e mais pacto político, como houve na eleição de 2002, um pacto político para honrar contratos, não hostilizar capital estrangeiro, etc. Aquele acordo do qual todos os candidatos à Presidência participaram. Em 2006, há de se ter um acordo nessas bases com relação à reforma tributária. Quem quer que seja eleito presidente da República não vai ter maioria no Congresso. Isso já está carimbado. Será um ano em que vai ter de haver prudência por parte da oposição e por parte do governo atual. Se não houver, há risco de atraso de aposentadorias, salários, uma série de coisas. O governo, no Brasil, tem uma importância fundamental na de renda de uma pessoa. Se não me engano, mais de 60% de tudo o que o governo federal arrecada é transferido diretamente para a pessoa. São pagamentos de aposentadoria de servidor, de salário de servidor, de aposentadoria de trabalhador do setor privado, de assistência social, Bolsa-Escola, Renda-Mínima, Vale-Gás, uma série de transferência de recursos que são diretos. Eu acho que não tem precedente no mundo, nem nos países socialistas. Você tem uma transferência de renda de mais de 60% de tudo o que se arrecada. Sem esses recursos é impossível que esses programas possam continuar com regularidade ou sendo mantidos na dimensão atual. 2006 há de ser o ano da prudência. Do contrário, podemos sofrer um atraso histórico por conta da insensibilidade da mera disputa eleitoral.
Mas há espaço para uma agenda positiva no ano que começa?
Se a oposição tiver juízo, ela faz um pacto com o governo para aprovar uma agenda positiva. A oposição tem que ter discernimento para isso, porque o Congresso só vai funcionar no primeiro semestre. Essa agenda passa pelas reformas política e tributária e pela aprovação de projetos importantes na área de educação, como o que cria o Fundeb (fundo de apoio ao ensino básico).
Mas o senhor acredita que esses assuntos podem ser apreciados mesmo em ano eleitoral?
Vai depender muito da disposição da oposição. Eu creio que nada de significativo será aprovado, porque não há ambiente para isso. O clima está fechando cada vez mais. A proximidade do processo eleitoral faz com que as pessoas pensem menos no país e mais na eleição. Isso complica. A esperança é que haja discernimento. Será um ano decisivo para o país. Não há nem tanto a necessidade de deliberar. É mais importante haver acordos para não prejudicar o país, para não retroceder em 2006, porque, seguramente, quem for eleito terá uma oposição com poder de veto e, portanto, não terá maioria para governar. A eleição de Aldo Rebelo (PCdoB-SP) para a presidência da Câmara e a de Renan Calheiros (PMDB-AL) para o Senado foi boa, porque são dois homens de diálogo e que podem colaborar para isso.
Líderes do PSDB e do PFL consideram que perderam o tempo certo para pedir o impeachment do presidente Lula, no depoimento do publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios. A tática de sangrar o governo até o fim do mandato foi acertada?
A tática do PSDB era de sangrar o governo até o final e reduzir de forma acelerada a legitimidade do presidente Lula. O PFL teve uma postura mais hostil e agressiva. O partido cogitou a idéia de entrar com o pedido de processo de impeachment, mas de uma forma inconseqüente. A idéia é sangrar e deixar o governo exposto para que o presidente Lula não se candidate à reeleição e também não tenha condições de se constituir num grande eleitor em 2006. Essa é a tática da oposição. Isso está funcionando mais em decorrência dos erros do PT e do próprio governo do que da ação extensiva da oposição. Essa oposição até agora não fez nada de concreto para resultar nos escândalos que resultaram. Isso foi erro do governo, falta de articulação com sua base, desacerto na produção política. A oposição não tem nenhum mérito nessa desorganização do governo. O que a oposição quer é o desgaste, o que a própria base aliada, chamada de fogo amigo, tem cuidado de fazer isso. Entrar com o processo de impeachment não teria a menor possibilidade de prosperar.
Lula ainda é o candidato mais forte em 2006?
Vai depender de uma série de fatores. Se a economia continuar num patamar de crescimento, o presidente da República é um candidato fortíssimo. Até porque a crise tem se esvaziado de forma acelerada nos últimos tempos. A CPI não tem produzido nenhum fato novo. As próprias provas da CPI são fornecidas por órgãos do próprio governo. A auditoria que o Banco do Brasil fez, que é um exemplo de decência na condução desse processo, é que levantou todos os problemas. O próprio governo conseguiu, em certa medida, retomar o controle desse processo através das instituições que foram criadas de 1984 para cá. O Ministério Público, a Controladoria-Geral da União, a própria imprensa e a sociedade têm sido mais vigilantes. Além disso, o governo tem muito recurso para gastar em 2006.
O governo diz que a CPI é um palanque eleitoral, e a oposição diz que o governo não quer investigar nada. A CPI do Mensalão não deu em nada, mas as CPIs dos Bingos e dos Correios continuam as investigações. As CPIs realizaram um bom trabalho ou ficaram por conta do denuncismo?
O Parlamento tem três funções na democracia: representar, legislar e fiscalizar. No aspecto da fiscalização cumpre ao Congresso um papel fundamental e indispensável. A CPI do Mensalão, com todo o respeito, foi encomendada. Foi o governo que defendeu essa CPI e que quis fazer uma CPI abrangente que pudesse alcançar o período anterior, incluindo o governo Fernando Henrique. É claro que uma CPI com essa característica não funciona, porque o governo anterior não quer ser investigado e tem poder para impedir as investigações. O novo também. Ela foi feita para ser anulada. A CPI dos Correios é a comissão que tem tudo para fazer um trabalho muito sério. Essa sim vai dar uma contribuição grande. E a CPI dos Bingos é a CPI do fim do mundo. Ela fugiu do foco. Está atrás dos holofotes.
Em 2002, a briga era do PSDB e do PT, o mesmo contra a mudança. Em 2006, vai ser “o mesmo” contra “o mais do mesmo”. Qual será o argumento mais forte para conquistar o eleitor?
O presidente Lula foi eleito com duas bandeiras: a renovação ética e inclusão social. Teve problemas de natureza ética por erros do partido. Mas o fato de haver muitas denúncias não significa que aumentou a corrupção. Pode ter aumentado a transparência, e a possibilidade de se enfrentá-la. No aspecto da inclusão social, o governo tende a acertar. Começou errado, com o Bolsa-Familia, mas está caminhando. Houve aumento de empregos e crescimento econômico nesse período. O governo não atrasou nenhum de seus compromissos com os vários problemas sociais. Embora não tenha promovido grandes renovações, garantirá duas coisas que o governo anterior não conseguiu: todo mundo que trabalha para o governo ou é aposentado terá a inflação reposta. E o governo também vai aumentar o valor do salário mínimo.
Mas qual será a diferença entre as propostas do PT e do PSDB?
Ano que vem haverá dois candidatos que pensam mais ou menos próximo do ponto de vista da política econômica, com uma diferença só: que é em relação aos servidores, aos mais humildes. Além disso, há o fato de o governo atual não ter vendido o patrimônio público. Acho que esse vai ser o diferencial do PT, em comparação com o PSDB.
Dá pra arriscar uma estimativa do percentual de renovação na Câmara e no Senado para 2007?
Haverá uma renovação grande. Isso é indiscutível. Será uma das maiores renovações do Congresso nos últimos tempos. Com a absolvição do Romeu Queiroz (PTB-MG) ficou evidente que o alvo é o PT. Muito provavelmente os deputados do PT que estão com processo pendente correm o risco de serem cassados, e os outros, mesmo com comprovação, serão absolvidos. A tática da oposição entre os setores da base é exatamente punir o PT para que o partido não tenha uma grande performance na próxima eleição. Essa renovação deve chegar a 60%.
Já houve alguma renovação tão grande assim?
Se não me engano, logo depois da Constituinte, logo depois do Collor, a renovação chegou a 62%. Então vai ser mais ou menos nesse patamar. Será muito significativo.
O Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) faz anualmente o levantamento dos cem políticos mais fortes do Congresso. Quais foram os grandes destaques de 2005?
No Senado, eu acho que o grande nome foi o de Aloizio Mercadante (PT-SP). Mercadante foi um verdadeiro gigante ao longo desse processo. Conseguiu sustentar o governo sozinho, com muita competência e habilidade. Teve que aprender algumas lições, porque o Mercadante é um pouco topetudo, mas é um sujeito extremamente disciplinado, sério, preparado. Acho que é o homem do Congresso nesta legislatura. Foi a pessoa que mais se destacou na minha avaliação. Ele praticamente sozinho conseguiu aprovar coisas no Congresso com minoria.
E quais foram as grandes revelações?
Os deputados José Eduardo Cardozo (PT-SP) e Gustavo Fruet (PSDB-PR). Esses dois, para mim, foram as estrelas das CPIs pela qualidade das intervenções, pela seriedade com que se portaram e, sobretudo, pelo preparo que têm. São dois nomes de grande projeção, que dignificam o Congresso Nacional.