Tarciso Nascimento
Poucos jornalistas ostentam tanta experiência na cobertura política como Tarcísio Holanda. São 54 anos de jornalismo, 30 deles dedicados à crônica política diária. Mesmo tendo testemunhado um dos períodos mais conturbados da história brasileira, quando os militares tomaram o poder e alguns jornalistas até pegaram em armas, Holanda não lembra de nenhum outro episódio tão estarrecedor quanto o mensalão. “Nunca houve um escândalo dessa ordem”, afirma ele em entrevista ao Congresso em Foco. “Com essas características, não, porque o problema não é só o caixa dois. Existe um esquema para comprar a fidelidade”.
Acostumado há décadas com convocações legislativas extraordinárias, pagamentos em dobro a congressistas e troca de favores entre parlamentares, Holanda desanima-se com a queda de qualidade na representação. “Já virou lugar comum dizer que essa legislatura atingida pelo mensalão vai ser melhor do que a próxima. A próxima sempre é pior que a atual”.
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Ele lastima, acima de tudo, a falta de compromisso dos políticos com os partidos. Para moralizar a representação, defende a reforma política, com a adoção do sistema de voto distrital ou de lista de candidaturas fechadas. Na sua opinião, a medida poderia fortalecer os partidos, que hoje, segundo ele, não existem mais.
"Esse sistema favorece o individualismo e a corrupção. Não há partido político no Brasil. Não existe. O PT era o único, mas decepcionou agora com esse escândalo”.
Tarcísio Holanda sabe do que está falando. Em Brasília há mais de 30 anos, passou pelas redações do Jornal do Brasil, do Jornal de Brasília e do Correio Braziliense e de diversas emissoras de TV, como Rede Globo, TV Tupi e TV Rio, sempre cobrindo política. Atualmente, ele assina uma coluna sobre os fatos do Congresso para o Diário do Nordeste; apresenta o programa Brasil em Debate, na TV Câmara; e em parceria com os jornalistas Carlos Chagas e Haroldo Holanda, seu irmão, produz um noticiário eletrônico – sobre política, é claro.
Ele não guarda boas recordações dos militares e revela algumas histórias inéditas daquele tempo – como a conta no exterior do “presidente vassourinha” Jânio Quadros -, além de outras do livro O Congresso em Meio Século (Ed. Plenarium), que lançou com o ex-secretário geral da Mesa Diretora Paulo Affonso Martins de Oliveira, morto antes da publicação da obra.
Certo de que o presidente Lula ainda não é um “gato morto” e de que o prefeito paulistano José Serra é o melhor candidato do PSDB para a disputa presidencial, Tarcísio Holanda desfia, nas linhas abaixo, saborosas histórias de tempos passados e presentes, épocas em que, tanto lá como cá, os políticos sempre atropelaram a ética.
Congresso em Foco – Quais foram as mudanças mais significativas nesses 50 anos de política que o senhor narra em seu livro O Congresso em Meio Século?
Tarcísio Holanda – Houve uma mudança muito grande. A elite política do país tinha mais qualidade. O ensino público tinha muito mais qualidade. Houve uma decadência muito grande na formação das pessoas e dos estudantes. No meu tempo, por exemplo, eu estudava num colégio público em Fortaleza, que ainda existe, chamado Liceu, que era no mesmo estilo do colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, onde estudou o Paulo Afonso. No ginasial, ele tinha o ensino de latim, inglês e francês. Isso tudo acabou. Não existe mais no Brasil.
O que mudou na forma de fazer política?
No livro do Paulo Affonso (O Congresso em Meio Século), dá para notar o processo de decadência que se verificou na elite política do país. Há 40 anos, o Adauto Lúcio Cardoso, que foi presidente da Câmara, disse ao general Carlos de Meira Matos, quando ele invadiu o Congresso no Ato Institucional nº 2: “Eu sou o representante do poder civil”. O outro respondeu: “Eu sou o representante do poder militar”. Aquilo definia toda uma situação existente no Brasil um ano depois do golpe que depôs o presidente João Goulart.
Essa decadência era previsível?
O Adauto, há mais de 40 anos, dizia: “Olha, Tarcísio, dentro de algum tempo não haverá mais bacharéis de classe média como eu aqui na Câmara. Haverá sempre os ricos ou os seus testas-de-ferro, porque as eleições vão se tornar cada vez mais caras e as pessoas de classe média não terão condições de suportar. Os ricos é que vão tomar conta do Congresso”. Isso está se verificando. Além disso, há uma queda de qualidade na representação. Já virou lugar comum se dizer que a atual legislatura – esta mesma, atingida pelo mensalão – vai ser melhor do que a próxima. A próxima sempre é pior do que a atual, porque, a cada legislatura, cai a qualidade dos representantes.
O senhor acredita que haverá uma grande renovação na Câmara e no Senado nessas eleições?
Vai haver uma grande renovação, mas todo mundo acha que vai ser para pior.
Apesar de tudo o que aconteceu, o senhor acredita que o eleitor ainda não está consciente?
O nível educacional da população é muito baixo. O nível de carência é muito grande. O dinheiro resolve muito da posição do eleitor. Isso não é só no Nordeste, no Norte, no Centro-Oeste, não. Na periferia de São Paulo, a relação do candidato com os eleitores é parecida com a do Nordeste e a do interior do Brasil. A carência das pessoas é grande.
Hoje existem mais problemas de natureza ética do que quatro décadas atrás?
Muito mais. Claro que naquele tempo também se infringia a ética. Freqüentemente havia convocações extraordinárias, com pagamento em dobro, com ganhos extraordinários e tudo, mas também havia figuras que devolviam o dinheiro, como o Adauto Lúcio Cardoso, o Pedro Aleixo e o Milton Dantas.
Em 2005, o Congresso paralisou depois das denúncias do mensalão. O senhor já havia testemunhado um escândalo semelhante?
Não. Nunca houve um escândalo dessa ordem. Com essas características não, porque o problema não é só o caixa dois. Existe um esquema para comprar a fidelidade. Também se demonstrou que muitas liberações coincidiram com transferências de um deputado de um partido para outro. Os partidos que foram alvo dessas transferências foram o PTB, o PP e o PL, que incharam. O PTB elegeu uns 28 deputados e passou a ter mais de 50. A cada transferência desses parlamentares, havia liberação de recursos. Não todos, claro, mas muitos foram financiados ou comprados.
E a troca de favores por votos? Era uma prática que já acontecia no Congresso?
Isso sempre aconteceu. A corrupção faz parte da natureza humana. Você pode reduzir, desde que haja instituições sérias. Tudo começa com o sistema de votação criado pela Constituição de 1946 e que até hoje não se conseguiu mudar. São duas as causas de todo o problema: uma é o sistema de votação, que é o voto proporcional em lista aberta. O parlamentar se candidata a deputado federal e não tem nenhuma obrigação para com o partido pelo qual se elegeu. Ele chega aqui e negocia o voto dele, inclusive com uma multinacional, se quiser. Ele negocia freqüentemente com o governo, à revelia do partido. Se você não tem partido político, porque o parlamentar dispõe de seu voto à revelia do partido, você já está com um regime capenga. Isso de um lado. Do outro lado, o sistema de financiamento é obscuro, favorece muito o caixa dois e a corrupção, porque permite que o político misture a conta pessoal dele com as doações de campanha. E eles vão fazendo fortuna pessoal através disso.