“Eu quero pulgas mil na geral, eu quero a geral
Eu quero ouvir gargalhada geral
Quero um lugar para mim, pra você
Na matinê do cinema Olympia, do cinema Olympia”
(“Cinema Olympia”, Caetano Veloso)
Celso Lungaretti*
Ao derrotarem Cartago na 3ª Guerra Púnica, os romanos fizeram a imponente rival sumir do mapa, literalmente: não só incendiaram e destruíram a cidade, como araram as terras com sal, para que nelas nada mais florescesse, nem se soubesse ao certo sua localização.
Quais seriam os sentimentos de um cartaginês sobrevivente, ao percorrer os sítios familiares e nada encontrar além do deserto?
Provavelmente, não muito diferentes dos meus, ao constatar que, na esquina da rua Visconde de Inhomerim com a Madre de Deus, em São Paulo, nem mesmo os escombros do cine Aliança existem mais; o velho cortiço foi derrubado para a construção de um feio prédio residencial.
Não foi só um cinema que apagaram do mapa. São as melhores recordações da minha infância que deixaram de ancorar-se na realidade visível.
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Logo, logo, nada mais restará das casas em que morei, das escolas nas quais estudei, dos cinemas, teatros, livrarias, campos de futebol, botecos e outros palcos de acontecimentos marcantes da minha existência.
Uma cidade diferente terá sido erguida sobre eles, como a alertar-me de que doravante me tornarei, cada vez mais, um estranho numa terra estranha.
É o destino dos que chegam a uma idade avançada: irem perdendo todas as referências do seu passado, até nada mais os prender à vida.
No meu caso, entretanto, a Morte não terá sua tarefa facilitada. Escrevo, logo existo. Se passarem rolos compressores sobre minhas lembranças, ainda assim as farei existirem no espaço virtual.
Então, enquanto o teclado continuar obediente ao meu comando, poderei relatar às novas gerações que existiu, por exemplo, um cinema chamado Aliança, numa Mooca que era um bairro fabril de São Paulo, reduto da baixa classe média e de imigrantes italianos.
Tinha umas 400 poltronas na platéia, mais algumas dezenas no balcão e oito no topo, ao lado da sala de projeção, para convidados especiais.
Um detalhe pitoresco era a cortina, totalmente preenchida pela pequena publicidade dos comerciantes do bairro, dezenas de anúncios de diferentes tamanhos. Alguns podiam ser lidos com facilidade até da última fileira, outros nos obrigavam a forçar a vista.
Os anunciantes também bancavam um folhetinho entregue gratuitamente na bilheteria – e que logo sucumbiria à progressiva queda de receita dos cinemas.
Na década de 1950, quando eu era menino, o Aliança já enfrentava a concorrência da televisão. Mas, não eram muitas as famílias em condições de adquirirem aparelhos de TV; meu pai, contramestre de tecelagem, só conseguiu comprar o primeiro em 1963.
Enfim, o simpático pulgueiro ia perdendo seu público a conta-gotas, mas implacavelmente.
Só lotava nas matinês de domingo, quando assistíamos aos filmes que nos inspiravam sonhos e brincadeiras pelo resto da semana. Eram dois, quase sempre bangue-bangues, comédias, fitas de ação e de monstros.
Entre um e outro, o filme-em-série, dividido num sem-número de episódios e sempre interrompido em momento culminante (canhestra tentativa de fidelizar o público infanto-juvenil), os trailers e as abomináveis resenhas noticiosas do Primo Carbonari, sempre recebidas com estrepitosas vaias.
Torcíamos pelos mocinhos, gritávamos, fazíamos bagunça, comíamos os doces que um funcionário vinha vender no intervalo, distribuídos num tabuleiro que ele carregava à altura da barriga.
Além das ruas, que pertenciam a nós e não aos carros, os cinemas dominicais eram o espaço que tínhamos para ser crianças num mundo moldado para os adultos.
O Juizado de Menores fazia as vezes de bicho-papão para nós. Em todas as sessões, havia quem não atingira a idade obrigatória: 5 ou 10 anos. Cinemas de bairro permitiam o acesso, pois cada centavo era importante para assegurar sua sobrevivência. E mantinham uma troca de informações entre si, de forma que o primeiro visitado pela blitz do Juizado alertava os demais, evitando que fossem surpreendidos.
Meus pais gostavam de cinema e não tinham com quem me deixar, então negociavam com o gerente minha presença nas sessões noturnas do Aliança, mesmo quando os filmes eram proibidos até 14 ou 18 anos.
Na maioria das vezes, ficávamos na platéia. Quando o Juizado andava rigoroso, éramos encaminhados para o balcão ou mesmo para as poltronas ao lado da sala de projeção. Houve uma vez em que tivemos de sair antes do filme terminar, bem a tempo de não sermos surpreendidos pela chegada da viatura.
Não penso ter sofrido nenhum efeito nocivo ao assistir a filmes proibidos. Encarava tudo com a maior naturalidade. Só uma vez fiquei apavorado, com uma fita sobre maldição de faraó. Os arqueólogos começaram a retirar os trapos que envolviam a múmia e não agüentei olhar para a tela.
Meu mocinho predileto era o Randolph Scott. Fazia questão de ver todos os filmes dele. Muito tempo depois, fiquei sabendo que aquele machão das telas formava um casal com o Clark Gable na vida real.
Filmes como Cinema Paradiso e Splendor, ao reconstituírem esse passado, flagram o fascínio cinematográfico em pequenas cidades italianas, que tinham um único cinema, quase sempre na praça principal.
Já na Mooca de meio século atrás havia mais quatro (o Icaraí, o Patriarca, o Moderno e o Imperial) e outros tantos nos bairros próximos. Mesmo assim, um era sempre o especial, aquele com o qual mais nos identificávamos. O Aliança foi o meu Cinema Olympia.
Daí a tristeza com que acompanhei sua decadência. Certa vez, já na década de 1960, fiquei surpreso ao verificar que era o único espectador de uma sessão de sábado!
Depois, veio uma fase de filmes de nudismo, que despertaram algum interesse inicial, mas logo deixaram de dar boa bilheteria. O Aliança virou boliche para aproveitar a onda (passageira), depois voltou a ser cinema. Em vão. Já não tinha propriamente espectadores, só poucas e desinteressadas testemunhas.
A agonia terminou na década de 1970, quando o projetor foi apagado para sempre.
E a pá de cal veio no ano passado, com a derrubada do pardieiro em que se amontoavam as famílias pobres de um bairro agora próspero… mas inóspito.
No entanto, o amor pelo cinema, despertado nas matinês do Aliança, me ficou para sempre. Bem como essa teimosia de querer que os sonhos e a fantasia sejam inspirações para a vida, ajudando-nos a reencontrar a humanidade perdida.
*Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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