Cileide Alves*
Dois dos mestres do jornalismo brasileiro, Zuenir Ventura, 86 anos, e Washington Novaes, 83, encontraram-se sexta-feira (6), por coincidência às vésperas do Dia do Jornalista, no Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia. Eles não se viam há alguns anos. Reencontraram-se em mais uma palestra de Zuenir sobre seu livro 1968 — O Ano que não Terminou.
No momento em que trocavam suas impressões sobre os tensos acontecimentos que viveram juntos em 1968 — os dois e Ziraldo foram os primeiros a encontrar o corpo do estudante Edson Luiz, assassinado pela PM no Rio de Janeiro em 28 de março daquele ano — , Luiz Inácio Lula da Silva encontra-se no prédio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, protegido por uma massa de manifestantes, avaliando a melhor estratégia jurídica e política para enfrentar a surpresa do dia, a decisão do juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, de determinar o cumprimento imediato da sentença que o condenou a 12 anos e um mês de prisão.
Uma mulher da plateia quis saber a opinião de Zuenir sobre, entre outros temas, a atuação da imprensa tradicional e sobre a chamada mídia alternativa. “Eu vou fazer uma grande sacanagem. Vou passar o microfone para o Novaes falar primeiro. Depois digo assim, eu assino embaixo. Luiz Fernando Veríssimo é quem diz ‘eu faço minhas as palavras do orador que me antecedeu’. Diz aí para a gente o que aconteceu, o que vai acontecer, com a mídia”, disse Zuenir, repetindo o mesmo bom humor de toda a noite.
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Seguiu-se então um breve debate entre os dois, que reproduzo na íntegra abaixo.
Washington Novaes: Acho que hoje o controle sobre o pensamento, sobre a comunicação é muito mais compacto, muito mais forte do que ele foi em outras épocas, inclusive porque aprenderam muito ao longo dessa trajetória. Mas aquilo que em certas épocas anteriores acontecia muito, de você ter um jornal ou alguns jornais fazendo algumas coisas específicas, hoje, é muito mais difícil. O controle acho que é muito maior e aí não precisa nenhuma censura oficial. Acho que já é um posicionamento mesmo da comunicação, porque a comunicação que está aí, de grandes jornais, grandes revistas, é compacta, tem mais ou menos o mesmo pensamento. É muito difícil encontrar alguma coisa a mais fora disso aí. É muito raro, eu vejo assim, encontrar nos grandes jornais diários ou nas grandes revistas e mesmo na televisão pensamento divergente. Até porque esses pensamentos nem entram em questão. Já está consolidado, já tem formato, o que leva, inclusive, ao fato de que você tem hoje uma certa decadência da comunicação. A comunicação hoje é muito mais fechada do que foi em tempos anteriores. Quase nada escapa a isso e, principalmente, você não tem uma discussão sobre os fundamentos dos regimes que vivemos hoje. Quem discute o que é, na economia brasileira, esse pensamento compacto que dirige quase tudo [a cobertura jornalística]? É muito raro, é muito difícil [pensamento divergente] e quem quiser fazer essa coisa vai encontrar uma resistência enorme para encontrar um lugar, uma posição. Estamos vivendo um tempo de pensamento homogêneo, que dirige a comunicação e um formato de criar um pensamento uniforme. Você acha, por exemplo, que a economia brasileira está em discussão na nossa comunicação? Não está e, no entanto, ela é extremamente problemática. O Brasil é um dos países de renda mais concentrada do mundo e com as consequências que isso tem; um dos países com a maior taxa de desemprego no mundo, com as consequências que isso tem. É um momento de um pensamento muito fechado nos setores que dirigem a comunicação e que, portanto, pretendem dirigir a sociedade.
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Como aprendiz desses dois mestres, entendo que suas opiniões não são excludentes. Ambos nos ensinam algo sobre a mídia e o jornalismo atuais. Washington aborda o pensamento majoritário predominante na mídia, a crença em uma verdade inquestionável e única. Zuenir aborda a produção jornalística, e aí entra a fragilidade teórica de seus profissionais, e a histórica responsabilização do meio pela má notícia.Zuenir Ventura: Que bom, sabe por quê? Porque finalmente vou poder discordar do Washington e a gente provar que não combinou nada. A minha visão é inteiramente diferente dessa visão do Washington. Acho que poucas vezes você teve o país exposto. Você tem um país purgando e isso está sendo visto. Você já tinha isto antes, já tinha naquela época. Claro que é graças à Lava Jato, mas graças também à imprensa. Hoje você só não escreve o que você não quer ou não pode. Eu escrevo tudo que eu penso e tudo que eu posso. Acho que a imprensa hoje tem mil problemas, mil defeitos, mil pecados, mas se não faz mais é por incompetência nossa [dos jornalistas]. A gente não pode transferir isso para os donos dos jornais. Eu tenho uma coluna, que é uma coisa especial, privilegiada. ‘Você é censurado?’ Não, nunca, nem no Jornal do Brasil, também. É claro que eu tenho esse espaço privilegiado, mas o jornal não sabe o que vou escrever, a não ser depois de publicado. Eu não sei nem estou interessado no que o jornal pensa. E muitas vezes eu escrevo e depois vou ver que é o oposto do editorial do jornal. Agora, acho que hoje há um pouco dessa sensação, um pouco do que acontecia com os reis antigos que, diante da notícia ruim, matava o emissário. A Geni hoje é a imprensa. Vocês viram a manifestação do [ministro] Gilmar Mendes, o que ele falou da Folha [de S.Paulo]?, falou ‘mídia chantagista’. Se o problema todo estivesse resumido ao que a imprensa fala era mais fácil você resolver isso, mas é muito mais complicado. Eu sou crítico à imprensa, mas você não pode atribuir tudo à imprensa, que é responsável por isso. É a realidade. A gente, claro, não descreve bem essa realidade, mas se tem uma coisa, pelo menos positiva, é isso que eu chamo de um país sendo… é muito rolo sendo espremido e você vendo as vísceras disso. É desagradável, cheira mal, mas muito melhor do que quando você escondia tudo isso. Então eu não concordo com Washington inteiramente. Acho que o problema é nosso, da profissão, dos profissionais e temos de fazer essa autocrítica e a gente faz muito dentro da redação, mas acho que não pode ter uma visão monolítica sobre a mídia, como se a mídia fosse tudo igual, como se cada um, cada jornal ou revista, não tivesse seus próprios códigos, seus próprios interesses, mas como eu sempre respeitei muito a opinião do Washington, vou levar para casa e vou meditar e refletir. Washington sempre fez isso comigo. Ele sempre refletiu com muita franqueza, com muita coragem, às vezes nadando na correnteza contra. Acho que hoje, Washington, se não há alternativa, visões alternativas — dissonantes é a palavra — é mais fácil dizer que o problema é da imprensa. Acho que não é bem assim. Todos nós temos responsabilidade nisso, às vezes até por não ter alternativa. Você não tem um discurso alternativo, você não tem visão em perspectiva sobre que caminho adotar, o que fazer hoje, por exemplo. Agora está acontecendo alguma coisa histórica no país que eu não sei o que é, o que vai ser e não tenho ideia do que vai acontecer.
Washington critica a falta de pluralismo nas redações. É cada vez mais rara opinião divergente e, não por acaso, citou a cobertura econômica, a que tem o pensamento mais monolítico. Há muito tempo o jornalismo econômico adotou uma das visões da macroeconomia e seus experts, sejam economistas ou jornalistas, reduzem a complexidade do mundo econômico a apenas duas categorias, a dos “reformistas” (que pensam como eles) e a dos “populistas” (o pensamento de centro-esquerda). O conceito de populismo, no caso, é em seu sentido pejorativo, claro.
O que Washington Novaes chama de “pensamento compacto” na cobertura econômica estendeu-se para outras áreas do jornalismo, para a política, em especial depois da eleição presidencial de 2014, para a educação, o meio ambiente etc. Curiosamente, a festejada “mídia independente” pela esquerda brasileira reproduz os erros da mídia tradicional ao, sob o pretexto de contrapor-se a esta, adotar posição única diante dos fatos, a da esquerda. Como gosta de repetir Elio Gaspari, dois erros não formam um acerto, ao contrário, expõem os equívocos dos dois modelos.
Zuenir enxerga a parte que toca a nós jornalistas nessa crise da mídia e também a recorrência entre esquerda e direita de atacar os meios pela mensagem. Não à toa, partem da direita e da esquerda, de Lula ao deputado Jair Bolsonaro, críticas contundentes à cobertura da mídia, menos pelos seus equívocos — sejam aqueles provocados pela linha editorial dos veículos ou advindos da fragilidade das apurações dos jornalistas — e mais pela notícia que distribuem ao público. Daí surgem as condenáveis agressões físicas aos jornalistas, como nas manifestações contra a prisão de Lula.
Durante um bom tempo prevaleceu nas redações a certeza de que se um veículo desagrada todos os lados da política é porque acerta a mão na cobertura dos fatos. Essa regra, que pode até ter sido válida no passado, não mais garante atestado de bons serviços prestados. Afinal, também o público, nosso principal cliente, questiona nossos serviços atualmente. Daí jornalistas e veículos deveriam refletir sobre as ponderações aparentemente conflitantes de Washington Novaes e de Zuenir Ventura para repensar suas relações com as fontes, a informação e o público para salvar os dedos, a imprensa, seja ela a tradicional ou a alternativa, pois os anéis, a credibilidade, há muito está em xeque.
*Cileide Alves é jornalista, especializada em política, e mestre em História pela Universidade Federal de Goiás.
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