Ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Isabel diz que não há solução imediata para os problemas enfrentados nas ruas pelos fluminenses e que a presença no comando das forças policiais pode trazer algum alívio temporário, mas não vai mudar a realidade.
“A gente fica tentando achar soluções mágicas para dar respostas imediatas, e não tem. O que a gente consegue, no máximo, é ter algumas medidas para aprimorar questões que, eventualmente, vão surgir, vão surtir alguns efeitos, mas que não vão atacar o cerne da questão, porque o cerne da questão é, efetivamente, de médio a longo prazo”, considera a representante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para Isabel, alguma providência deveria ser tomada no Rio para conter a violência, mas não uma intervenção com um militar. A especialista vê “pirotecnia” e motivação política e eleitoral por trás da decisão de transferir o comando das forças de segurança no estado para o coronel Braga Netto.
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“Se a segurança pública no Rio é um problema eminentemente de gestão, de governabilidade daquele sistema, se fosse para ter uma intervenção, ela deveria ser feita por gente especializada nisso, não por gente especializada em um combate corpo a corpo ali na frente”, critica. “É uma escolha equivocada e que mostra o que se pretende, que é essa pronta sensação de segurança, como vários analistas já estão mencionando, que pode e deve vir a impactar o processo eleitoral, mas que vai se desmanchar no ar”, emenda.
Veja a íntegra da entrevista de Isabel Figueiredo ao Congresso em Foco:
Congresso em Foco – Qual é a opinião da senhora a respeito da intervenção federal no Rio de Janeiro? Era mesmo necessária?
Isabel Figueiredo – Essa pergunta tem duas respostas. Era preciso fazer alguma coisa séria na segurança pública do Rio de Janeiro? Sim. Não dá para as coisas continuarem como estão. Era necessário que fosse uma intervenção federal, e era necessário que fosse uma intervenção federal agora? A minha resposta é não. Tem dois pontos de vista diferentes. Enquanto uma medida de tentar reordenar a segurança pública do Rio, era necessário que algo fosse feito, mas não uma medida de intervenção federal. Nada aconteceu de diferente que justificasse essa medida agora. O que a gente teve foi um factoide de uma grande criminalidade no Carnaval, mas que os próprios índices criminais mostram que não foi bem isso que aconteceu, que os índices foram inclusive menores do que no Carnaval em 2017. Então, nesse sentido, não me parece que tenha sido uma medida minimamente adequada.
O Brasil e o Rio de Janeiro ganham ou perdem com essa intervenção no estado?
Depende do que a gente considera ganho e perda. Tem algumas perdas que são importantes. A gente tem um reforço da ideia equivocada de que segurança pública é um assunto de Exército, quando não é. É uma área de política pública técnica, que precisa ser tratada tecnicamente por gente da área. Não se mistura com política de Defesa. Isso é uma perda para o Brasil. A gente já vinha evoluindo no sentido do entendimento de que as coisas são diferentes. Também acho que tem um risco de perda do ponto de vista de direitos fundamentais. A gente não tem ainda o plano de operação, não sabe exatamente no que vai consistir, concretamente, essa intervenção. Mas, por outro lado, quando o governo vai e anuncia que vai pedir mandados de busca e apreensão coletivos nas comunidades do Rio de Janeiro, isso nitidamente é uma tentativa de que a gente volte atrás no que diz respeito à proteção de direitos individuais. São direitos que são colocados em risco, que são fragilizados, o que significa uma perda para o Brasil.
“O reforço de efetivo na rua é algo que aumenta a sensação de segurança da população, pelo menos por um curto período. Resolve algum problema? Tem um ganho que é sustentável? Não tem”
Existe algum ganho?
Pode ter um ganho imediato. O reforço de efetivo na rua é algo que aumenta a sensação de segurança da população, pelo menos por um curto período. Resolve algum problema? Tem um ganho que é sustentável? Não tem. Porque ele não está lidando com causa, está lidando com efeito. Mas, mesmo lidando com efeito, ele não está gerindo, está sufocando o efeito. É aquela coisa, quando a polícia passa, todo mundo fica quieto, mas quando a polícia sai, todo mundo volta a fazer o que estava fazendo. A questão é: eles vão ficar nas ruas? A gente não conhece o plano de operações dessa intervenção, mas pode supor que o reforço do lado ostensivo vai ser uma das medidas. Não fosse isso, não precisava ter sido o Exército, poderia ter sido outro interventor. Reforço do ostensivo ajuda, mas não resolve. Nessa lógica de perdas e ganhos, é um ganho que derrete, que não se sustenta.
“Se fosse para ter uma intervenção, ela deveria ser feita por gente especializada nisso, não por gente especializada em um combate corpo a corpo ali na frente”
A senhora acredita que esse tipo de medida seria mais paliativa do que realmente de resolução do problema?
Claramente é mais paliativo do que de resolução. Primeiro, pela escolha da forma como a intervenção foi feita. Não tem nenhuma necessidade de que o interventor seja general do Exército, e aqui claramente também não estou falando nada dele. Eu nem o conheço e, inclusive, as referências que eu tenho são de que é um general muito competente. Mas a questão é: se a segurança pública no Rio é um problema eminentemente de gestão, de governabilidade daquele sistema, se fosse para ter uma intervenção, ela deveria ser feita por gente especializada nisso, não por gente especializada em um combate corpo a corpo ali na frente. É uma escolha equivocada e que mostra o que se pretende, que é essa pronta sensação de segurança, como vários analistas já estão mencionando, que pode e deve vir a impactar o processo eleitoral, mas que vai se desmanchar no ar. Ainda assim, como é que você melhora a situação em um período de dez meses com um orçamento absolutamente limitado, que é o orçamento tanto do Rio quanto da União para essa área? Eu brinco até que estou fazendo um exercício para me forçar a achar razões para acreditar, sabe? Mas não estou conseguindo.
“Por que no Rio, senão por uma razão exclusivamente política? A gente não consegue dar sustentação técnica para essa medida”
A senhora mencionou o processo eleitoral. Avalia que existe uma motivação mais política do que técnica para essa intervenção?
Certamente. Segurança pública, necessariamente, vai ser uma das grandes pautas do processo eleitoral, seja no caso dos governadores, seja no caso da União. Se você for acompanhar os debates eleitorais dos últimos anos, vai ver inclusive que essa pauta foi em um crescendo. Quando sai o presidente Lula e entra a presidenta Dilma, já foi um assunto muito importante nos debates eleitorais. Quando a gente teve a segunda eleição da presidenta Dilma, de novo foi muito importante. Só que a crise só piorou de lá para cá. Quando você vai fazer pesquisas públicas de preocupação da população, a segurança pública está cada vez mais sendo apontada como a primeira, a segunda maior preocupação da população. Necessariamente, ela vai ser uma grande pauta desse processo eleitoral. O governo, quando escolhe essa pauta para agir agora, ainda mais nessa situação de um desgaste muito grande por não conseguir os votos necessários para a reforma da Previdência, realmente mostra o uso eleitoral dessa medida, porque a gente não tem nenhum elemento técnico que justificasse essa intervenção no Rio agora. O que o Rio tem de diferente de outros estados que também estão com crises de segurança pública tão ou mais graves? Por que no Rio, senão por uma razão exclusivamente política? A gente não consegue dar sustentação técnica para essa medida.
Existe a possibilidade de que haja intervenções em outros estados, que também estão atravessando crises de violência e rebeliões carcerárias? Ou essa é uma questão pontual?
Acho que vai ser só no Rio. Não tem sustentação jurídica, inclusive, para você conseguir fazer intervenção em outros estados. É uma questão de sustentação prática. Fazer uma intervenção é um processo que custa gente, custa hora. Tem um custo grande, é um investimento também. O governo não tem perna para fazer um grande reforço de efetivo em todos os estados. Quer dizer, partindo dessa ideia de que tem um quê de pirotecnia nessa atuação do governo, a gente também consegue dizer que ele não tem fôlego para que isso se espalhe para outros estados, além de, obviamente, não ter nenhum cabimento.
“Se a Câmara realmente conseguir pautar o sistema de segurança pública, seria um respiro de alívio no meio desse conjunto de retrocessos que a gente está vivendo”
O governo recorre excessivamente às Forças Armadas, em detrimento das outras forças de segurança?
Sim. É um governo que, a cada passo que dá, demonstra que não tem repertório na área de segurança pública. Ele não consegue dar nenhuma resposta que seja diferente de mandar as Forças Armadas, é só isso que consegue fazer. É completamente desconectado, inclusive, de tudo o que a área da segurança pública avançou não só no país, mas no mundo, nos últimos 20 anos. O que a gente tem é exatamente o contrário. As experiências exitosas que a gente pode mencionar no mundo mostram que o que dá certo é, primeiro, a profissionalização da área de segurança pública e, segundo, um investimento maciço em prevenção. O governo é 100% dissociado disso. Quando ele pega a Secretaria Nacional de Segurança Pública, por exemplo, e coloca como secretário um general [Carlos Alberto dos Santos Cruz, da reserva do Exército], – que é muito bem-conceituado, a gente só tem boas informações sobre ele enquanto general – mostra de novo isso. Ao invés de a gente estar pensando em formar gestores da área, ou em valorizar a gestão técnica dessa área de segurança, o que o governo está fazendo é exatamente o inverso: retrocedendo no tempo, e vinculando dois assuntos que não são vinculados.
“Ele não consegue dar nenhuma resposta que seja diferente de mandar as Forças Armadas, é só isso que consegue fazer”
Além da intervenção federal, a Câmara deve pautar futuramente a criação de um sistema único de segurança pública e a revisão do Estatuto do Desarmamento. O Brasil está indo em retrocesso, em comparação com outros países, na questão da segurança pública?
Sim, está. Mas acho que, se a Câmara realmente conseguir pautar o sistema de segurança pública, seria um respiro de alívio no meio desse conjunto de retrocessos que a gente está vivendo. A discussão sobre o sistema único de segurança pública é a número um nessa pauta, e que não está sendo feita. Quando você avalia, por exemplo, como o Congresso vem se comportando na pauta de segurança pública ao longo dos últimos anos, vê que ele vem se comportando muito mal, vem dando respostas que normalmente são inócuas, que não surtem nenhum efeito. Um exemplo claro disso é que o Congresso adora aprovar projeto de lei que aumenta pena, mas não faz nada para fortalecer a polícia que investiga e esclarece os crimes. Pensando nessa lógica, o Congresso muitas vezes só tem dado essas respostas que são boas para fazer discurso e acalmar, supostamente, uma parcela da população. Mas que, no final, quando você atesta, não são nada. A gente continua tendo polícias que estão sucateadas, desvalorizadas, que não conseguem fazer o seu trabalho. Se, de verdade, o Congresso conseguir pautar o sistema único de segurança, aí vou te dizer que vou ficar muito feliz em morder a minha língua, porque vou ver o Congresso finalmente indo para uma discussão que já passou da hora, que está caindo de madura.
“A gente tem um reforço da ideia equivocada de que segurança pública é um assunto de Exército, quando não é. É uma área de política pública técnica, que precisa ser tratada tecnicamente por gente da área”
O problema da segurança pública exige muitas medidas de longo prazo. Mas, a curto prazo, o que poderia ser feito para reduzir os índices de criminalidade tão elevados e aumentar a sensação de segurança da população?
Em uma entrevista dada pela Jaqueline Muniz [professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)] na Globonews, ela foi muito enfática ao dizer que a população precisa saber que não existe resposta de curto prazo. Acho que algumas coisas podem ser feitas, mas a toada geral é essa mesma. Exatamente porque os governantes não querem a resposta só no médio e longo prazo, eles não estão fazendo, e aí gente que podia hoje estar colhendo investimentos feitos dez anos atrás, por exemplo, não está colhendo nada, mas também não está plantando nada. A gente fica tentando achar soluções mágicas para dar respostas imediatas, e não tem. O que a gente consegue, no máximo, é ter algumas medidas para aprimorar questões que, eventualmente, vão surgir, vão surtir alguns efeitos, mas que não vão atacar o cerne da questão, porque o cerne da questão é, efetivamente, de médio a longo prazo.
“Existem coisas concretas para fazer que estão além de pura e simplesmente aumentar o ostensivo na rua”
Que tipo de ações poderiam ter efeitos positivos em curto prazo?
Por exemplo, reforçar a capacidade de trabalho da Polícia Civil. A Policia Civil, não só no Rio de Janeiro, mas em boa parte dos estados, é uma polícia sucateada, sem efetivo, sem condições mínimas de trabalho. Se a gente não tem Polícia Civil, a gente não tem investigação, não tem retirada efetiva de criminosos de circulação. Essa é uma medida de curto prazo fundamental. Nesse mesmo sentido, também é fundamental reforçar as polícias técnicas, que são as que produzem as provas periciais. Conheço as perícias de quase todos os estados do Brasil e também são unidades policiais completamente sucateadas. Outra questão que é fundamental é reforçar os mecanismos de controle interno e externo das forças policiais, que estão completamente desestruturados na grande maioria dos estados da Federação. Esse é, unanimemente, um dos fatores que estão sendo apontados no caso do Rio de Janeiro. É uma força policial que, talvez não em sua maioria, tem um problema muito grave de envolvimento com criminalidade, com ações irregulares.
Que outras medidas podem ser pensadas?
Outras medidas de curto prazo que a gente pode pensar: controle de armas de fogo. Como é que a gente tem ainda no país essa quantidade absurda de armas ilegais em circulação? Como é que a gente pode, em um estado como o Rio de Janeiro, ter aquela quantidade de armas longas circulando na cidade, sendo que, é o clichê do clichê o que eu vou te dizer, mas elas não são fabricadas ali. Elas entram ilegalmente no país. Quer dizer, reforçar o policiamento de fronteiras e, mais do que isso, desenvolver inteligência sobre armas, rastreá-las, entender quais são as rotas e reprimir a entrada de armas de fogo no país também é algo que pode ser feito a curto prazo, e que gera efeitos importantes na redução da criminalidade. Eu poderia citar vários outros exemplos, mas existem coisas concretas para fazer que estão além de pura e simplesmente aumentar o ostensivo na rua.
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