Por Lucas Ferraz
A aquisição pelo governo do Mato Grosso de uma faculdade criada por Gilmar Mendes e sua família em Diamantino, no interior do estado, é alvo de um inquérito civil do Ministério Público que apura a “legalidade e moralidade” do negócio, fechado há quatro anos ao custo de R$ 7,7 milhões.
Desde que foi estatizada na gestão do ex-governador Silval Barbosa (PMDB) e se transformou num dos campus da Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat) em Diamantino, a unidade – que por 13 anos foi uma faculdade privada, a União de Ensino Superior de Diamantino (Uned) – opera de forma precária, apesar de ter aumentado o número de alunos. Por falta de recursos, o governo do Mato Grosso, em precária situação financeira, ainda não realizou um concurso público nem tem previsão de quando poderá fazê-lo, como determina a lei, para a contratação de funcionários e professores.
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Diamantino é uma pequena e histórica cidade de 20 mil habitantes na região central do estado, terra natal do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e onde parte de sua família ainda vive e atua em negócios como a pecuária.
A reportagem da Pública teve acesso ao inquérito civil que tramita na comarca de Diamantino sobre a aquisição da faculdade pelo governo do estado. A investigação ainda em curso, e que é pública, está a cargo do promotor Daniel Balan Zappia.
Com a venda da Uned, a faculdade privada tornou-se pública e gratuita. Os quatro cursos – direito, administração, enfermagem e educação física – foram absorvidos pelo estado. Em depoimento ao inquérito, o ex-reitor da Unemat Adriano Silva, hoje deputado estadual pelo PSB, disse que à época da venda a faculdade da família Mendes se encontrava “em situação difícil em virtude da inadimplência de seus estudantes”.
Ainda segundo ele, os dirigentes da faculdade, junto com forças políticas da região, procuraram a universidade estadual “visando a adoção de providências que garantissem a continuidade do fornecimento do ensino superior na instituição”. Uma ex-funcionária da Uned, que também prestou depoimento, confirma a inadimplência dos alunos, mas disse que as contas da instituição estavam em dia.
O ministro Gilmar Mendes foi um dos sócios-fundadores da Uned em 1999 ao lado da irmã, Maria Conceição Mendes França, e de outros três sócios – no ano anterior, em Brasília, e com outras duas pessoas, o futuro ministro criou também o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual é sócio ainda hoje. Um dos que se associaram à faculdade em Diamantino foi o empresário Marcos Antônio Assi Tozzatti, ex-assessor do ministro Eliseu Padilha (PMDB) no governo Fernando Henrique Cardoso. Tozzatti atualmente é parceiro de Padilha numa fazenda de gado no Mato Grosso – ambos tiverem os bens bloqueados pela Justiça no final de 2016 por crimes ambientais cometidos na área localizada dentro de um parque na fronteira com a Bolívia.
Tozzatti, o sócio dos ministros
Empresário residente em Brasília, Marcos Antônio Assi Tozzatti é um pecuarista conhecido do agronegócio no Mato Grosso. Uma de suas maiores fazendas, a Barra Mansa, em Nova Lacerda (MT), é citada com frequência em programas especializados como Giro do Boi, do Canal Rural.
Assessor especial de Eliseu Padilha no Ministério dos Transportes durante o governo FHC (1995-2002), Tozzatti ainda hoje mantém negócios com o ministro do governo Michel Temer. Os dois enfrentam acusações na Justiça pela suspeita de crimes cometidos atualmente e num passado não muito distante.
Padilha é réu numa ação civil de improbidade administrativa na qual é acusado de ordenar o pagamento superfaturado de R$ 2 milhões quando era ministro dos Transportes de FHC. Tozzatti foi o autor do ofício enviado à época, para um órgão do ministério, pedindo “brevidade” para resolver o caso, que era “de ordem do excelentíssimo senhor ministro dos Transportes”.
Tozzatti e Padilha são sócios em duas fazendas que criam gado dentro da unidade de conservação no Parque Estadual Serra de Ricardo Franco, no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso, na divisa com a Bolívia. Eles são acusados de crimes ambientais e de manter nas fazendas trabalhadores em situação análoga à escravidão. A Justiça do Mato Grosso determinou o bloqueio de bens dos sócios. Só Tozzatti recebeu uma multa pelo desmatamento na área no valor de R$ 37,6 milhões.
Quando a Uned foi criada por Gilmar Mendes e família, Tozzatti era um dos sócios. Ele permaneceu como sócio da faculdade até 2010, repassando seus 20% de participação (avaliado à época em R$ 151 mil) para Suellen Tatiane de Assis Lima, que foi funcionária de sua agropecuária – Suellen não foi localizada; procurado em seu escritório, em Brasília, Tozzatti não quis falar sobre o assunto.
Durante sabatina no Senado, em 2002, quando foi indicado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso para o STF, Gilmar Mendes foi indagado sobre Tozzatti e sua participação na Uned: “Nessa sociedade da Uned, [Tozzatti] participou quase que de favor, porque havia um esforço enorme de reunir pessoas para construir esse modelo. Esse empreendimento não foi pensado como empreendimento empresarial, mas de dimensão social para viabilizar, inclusive politicamente, a eleição, que veio a se confirmar depois, do meu irmão Chico Mendes”.
A mulher de Tozzatti, Paula Crisóstomo Lopes Lima, é sócia dele na fazenda Paredão, a mesma autuada por crime ambiental no parque na divisa do Mato Grosso. Ela foi assessora-chefe de Gestão Estratégica do STF, nomeada por Gilmar Mendes no período em que o ministro presidiu a Corte (2008-10). Procurada, Paula também não respondeu aos pedidos de entrevista. Gilmar Mendes afirmou ter conhecido Tozzatti no período em que foi assessor técnico do Ministério da Justiça, entre 1995 e 1996, e que foi por intermédio dele que conheceu Paula Crisóstomo.
Gilmar se afasta da Uned
Quando assumiu a Advocacia-Geral da União no governo FHC, no início do ano 2000, Gilmar Mendes se afastou da sociedade da Uned, repassando sua parte para a irmã, que ficaria à frente da instituição até a venda, em 2013. Ela seria a representante na negociação com as autoridades do estado. Segundo o ministro, desde que saiu da empresa, ele não teve mais nenhuma relação com a instituição “ou com questões relativas ao tema”.
O processo de aquisição ficou sob a responsabilidade da Secretaria de Administração do governo estadual, embora a compra tenha sido promovida pela Unemat, que naquele momento já tinha a autonomia orçamentária aprovada com a mudança constitucional. O negócio só foi viabilizado após o então governador Silval Barbosa ter assinado decreto com a concessão de crédito extraorçamentário de R$ 8 milhões para a universidade estadual cobrir a compra.
O ex-secretário de Administração do governo Francisco Anis Faiad disse em depoimento no inquérito que foi procurado por Chico Mendes, irmão caçula do ministro que é ex-prefeito de Diamantino (2001-2008) e produtor rural. Embora Chico não conste como sócio da instituição, Faiad disse que ele pediu “para acelerar o processo de aquisição”.
Apesar de questionamentos internos quanto ao interesse do estado em adquirir a Uned, a compra, aprovada em todas as instâncias do Executivo, foi oficializada em julho de 2013, dias depois do decreto ter sido aprovado na Assembleia Legislativa. Em vez dos R$ 8,1 milhões solicitados pelos donos, o negócio foi fechado por R$ 7,7 milhões. Toda a estrutura da instituição – incluindo laboratórios e os prédios em Diamantino – foi repassada ao estado.
Com as mudanças legislativas, a universidade estadual incorporou também na mesma época uma segunda instituição de ensino superior. Mas nesse caso tratou-se de uma doação que começou a ser discutida muito antes, em 2011. O estado assumiu a entidade, que pertencia a uma fundação do município de Nova Mutum, a 126 quilômetros de Diamantino, e que cobrava uma mensalidade simbólica para se manter, gerando questionamentos dos órgãos de controle.
Em setembro de 2013, antes de a primeira parcela da venda ser depositada para os proprietários da Uned, começaram as contratações precárias de professores – previstas em lei para situações emergenciais ou temporárias, mas que viraram regra em Diamantino. A falta de planejamento orçamentário e a ausência de estudos sobre os impactos financeiros e de como manter a nova unidade são apontados no inquérito como elementos do suposto crime de improbidade administrativa em investigação. Silval Barbosa nega irregularidades. O ex-governador disse em depoimento que o pleito chegou a ele como “um sonho da região” – Diamantino está cercada por pequenos municípios pobres.
“Observa-se que a aquisição de instituição de ensino superior pelo Estado do Mato Grosso não foi acompanhada de planejamento quanto a estruturação de seu corpo docente, muito menos do serviço de apoio”, anotou em um dos relatórios o promotor Daniel Balan Zappia. Ele também ressalta a “coincidência entre o processo de tratativas para a expansão da Unemat em Diamantino e a proposta de venda formulada pela Uned”.
Nenhuma dívida da faculdade foi repassada ao estado, e uma perícia realizada a pedido da Promotoria sustenta que o valor do negócio (R$ 7,7 milhões) não destoa dos valores do mercado para uma instituição semelhante – seu laboratório de anatomia é considerado um dos melhores do Mato Grosso.
Também não há provas ou evidências de que Gilmar Mendes tenha tratado da venda, embora ele tenha relação de amizade com o então chefe do governo mato-grossense. Ele teve compromissos públicos com Silval Barbosa no mesmo período da venda. O político e o magistrado, que já foram flagrados numa interceptação telefônica após a casa de Silval ter sido alvo de um mandado de busca e apreensão, afirmam que o assunto não foi discutido entre eles.
Além dos registros de que participou da criação da faculdade, a única menção feita ao ministro no inquérito – por autoridades do governo da época que prestaram depoimento – foi sobre a sua presença na inauguração da unidade da Unemat em Diamantino, em setembro de 2013. No ato, que reuniu políticos da região, o ministro do STF apareceu ao lado de Silval e do ex-presidente da Assembleia Legislativa, José Riva (PSD), que defendeu publicamente a aquisição da Uned. O campus foi batizado com o nome do pai de Gilmar, Francisco Ferreira Mendes, outro membro da família a comandar a prefeitura de Diamantino (em dois períodos, de 1967 a 1972 e de 1975 a 1979).
O ministro discursou no evento, registrado por um site local, quando foi inaugurada uma placa com menção ao seu nome e ao do pai: “Muita coisa melhorou no Mato Grosso, mas outras quedaram. Uma parcela da sociedade não pode usufruir das transformações deste estado, mas esse modelo de educação [pública de ensino superior] me deixa muito satisfeito. Estou muito feliz. Espero que todos tenham condições de avaliar o que isso significa para Diamantino e municípios do Médio Norte. Investimentos em educação não são visíveis como os feitos em uma ponte, uma estrada, na educação exige-se maturação”.
A primeira parcela do pagamento, de R$ 1 milhão, foi feita em novembro de 2013. A última, de R$ 700 mil, totalizando os R$ 7,7 milhões da negociação, foi quitada em junho de 2014. No mês seguinte, a Secretaria de Planejamento do governo reconheceu que não havia a previsão de concurso público para preencher os quadros da nova unidade. No início daquele ano, o reitor da Unemat, Adriano Silva, já havia admitido a “insuficiência” de funcionários.
Nos relatórios que constam no inquérito, o promotor Daniel Balan Zappia sustenta que as continuadas contratações temporárias realizadas pela instituição corroboram a falta de planejamento do governo ao estatizar a Uned, prática que é considerada “incomum” pelo Ministério da Educação – mas cuja responsabilidade, no caso das universidades estaduais, cabe exclusivamente aos estados.
Lava Jato pantaneira
A suspeita de improbidade administrativa na aquisição da universidade é uma das tantas suspeitas que pesam contra Silval Barbosa. A mais nova denúncia contra ele surgiu em maio na delação de um dos donos da JBS, Wesley Batista, que acusou o político de ter feito um acordo para pagar dívidas de campanha em troca de incentivos à empresa. Silval é um dos principais alvos da chamada Lava Jato pantaneira – cujos desdobramentos ameaçam também o atual governador Pedro Taques (PSDB), citado por um delator do esquema como beneficiário de propina, o que ele nega.
A investigação sobre Silval é conduzida pelo Ministério Público Estadual e pela juíza Selma dos Santos, da 7ª Vara Criminal de Cuiabá – não por acaso, ela passou a ser chamada de “Sergio Moro de saia”. O ex-governador estava preso desde setembro de 2015, acusado de fraude em incentivos fiscais no estado, e foi apontado pela juíza como o organizador de uma “verdadeira organização criminosa” que atuou no Mato Grosso entre 2010 e 2014. Após ter confessado alguns dos crimes, Silval foi para a prisão domiciliar em 14 de junho.
Especula-se que ele esteja negociando uma delação premiada com o Ministério Público Federal, o que chegou a ser citado pela juíza no despacho que determinou a sua prisão domiciliar. Seu advogado, Délio Lins e Silva, nega que ele irá fazer delação. A defesa afirma também que não houve nenhuma irregularidade na compra da Uned.
Considerado por Gilmar Mendes um “amigo de muitos anos”, Silval Barbosa concedeu ao ministro, em junho de 2013 (quando o estado negociava a compra da faculdade), a medalha de honra ao mérito do Estado do Mato Grosso. Menos de um ano mais tarde, ainda governador, a casa de Silval foi alvo de uma busca e apreensão realizada pela Polícia Federal (que buscava indícios de seu envolvimento nos esquemas de corrupção) com a autorização do STF. O político foi preso em flagrante por guardar em casa uma pistola 380, carregadores e munições – o registro da arma estava vencido. Silval foi liberado depois de ter pago fiança de R$ 100 mil e, naquele mesmo dia, recebeu uma ligação de Gilmar, conforme interceptação realizada na investigação.
“Governador, que confusão é essa”, pergunta o ministro. Após ouvir o relato, Gilmar Mendes continua: “Que loucura! Estou indo para o TSE, eu vou conversar com o Toffoli [ministro que relatava o caso no STF]”. Antes de se despedirem, Mendes afirmou: “Que absurdo! Eu vou lá, depois, se for o caso, a gente conversa”.
Outro alvo da Lava Jato pantaneira também estava presente na inauguração do campus Francisco Ferreira Mendes em Diamantino, em setembro de 2013: trata-se do ex-deputado estadual José Riva, que ganhou a alcunha de maior ficha suja do país pelos mais de cem processos de que era alvo. Ele teve a candidatura ao governo do Mato Grosso barrada pela Justiça Eleitoral em 2014. No início do ano seguinte, seria preso. Atualmente fora da prisão, Riva começa a reconhecer alguns de seus crimes num processo de delação que sua defesa confirma estar em curso.
Quando a Assembleia Legislativa fez a mudança constitucional que permitiu a compra da Uned, Riva estava no último de seus quase 20 anos de influência no Legislativo. Seu poder remonta aos tempos do comendador João Arcanjo Ribeiro, um dos principais nomes do crime organizado no Mato Grosso, que também esteve envolvido nos desvios da instituição comandada pelo político.
Preso três vezes desde 2015, o político teve seus três habeas corpus obtidos no STF, os três em deliberações que passaram pelo ministro Gilmar Mendes. Na primeira prisão, em fevereiro de 2015, Riva ficou quatro meses detido por ordem da juíza Selma dos Santos, acusado de chefiar uma organização que desviou mais de R$ 62 milhões da Assembleia Legislativa entre 2005 e 2009. Ele ganhou a liberdade após um empate no julgamento de seu pedido na 2ª Turma do STF, que teve voto decisivo de Gilmar Mendes – Celso de Mello, o quinto ministro da turma, ausentou-se naquele dia; valeu o conceito jurídico in dubio pro reo, quando o empate beneficia o réu.
Uma semana depois de ter conseguido a liberdade, uma nova ordem de prisão da juíza levou Riva para a cadeia, num desdobramento da acusação anterior – a denúncia falava em desvios de R$ 10 milhões do Poder Legislativo entre 2012 e 2014. Numa decisão monocrática, Mendes concedeu a liberdade ao político no mesmo dia por considerar a decisão de Selma um afronta ao decidido pela corte suprema. Selma dos Santos foi acusada pela defesa de Riva de perseguir o político. Não foi o único pedido de suspeição que o caso suscitou.
A terceira prisão de Riva, em outubro de 2013, durou seis meses. Segundo o Ministério Público, tratava-se de um novo desdobramento das investigações anteriores que apurava supostos crimes cometidos no gabinete do ex-presidente da Assembleia com a chamada verba de suprimentos, que teria sido usada para pagar despesas pessoais do político e comprar mimos para aliados. Em abril do ano seguinte, um novo habeas corpus da defesa foi redistribuído para Gilmar Mendes. O Ministério Público Federal pediu ao então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, a escolha de outro relator, mas ele manteve Mendes no caso.
“Parece indubitável que os processos são ligados por nexos de conexidade”, escreveu Gilmar Mendes no início de seu despacho que concedeu a liberdade a Riva pela terceira vez. O ministro ressaltou que a decisão de prender Riva outra vez, concedida pela juíza de Cuiabá, era “um descumprimento da ordem por mim concedida”. Ele considerou também não haver “fatos novos” que ensejassem a prisão e disse que ela não era “indispensável à garantia da ordem pública”, já que os crimes imputados remontam aos anos de 2005 a 2009.
Sem sucesso, o Ministério Público Federal recorreu da decisão descrevendo Riva como uma pessoa “dotada de inteligência criminosa diferenciada”, ressaltando que os três pedidos se baseavam em três acusações diferentes.
Advogado de Riva nos três habeas corpus, Rodrigo Mudrovitsch também representa Gilmar Mendes em alguns de seus processos na Justiça (como contra jornalistas) e já publicou artigos e livros jurídicos em coautoria com o ministro. Mudrovitsch é um dos docentes do IDP, escola de direito com sedes em Brasília e em São Paulo que tem o ministro como um dos sócios.
O advogado afirmou, via assessoria de imprensa, que já perdeu inúmeras ações julgadas por Gilmar Mendes. Cita a derrota de Riva, por unanimidade, no Tribunal Superior Eleitoral em 2014, que praticamente o tirou da vida pública ao ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa. O ministro do STF participou do julgamento como vice-presidente da Corte Eleitoral. Rodrigo Mudrovitsch advoga também para investigados na Lava Jato, caso da empresa Odebrecht e de políticos como a senadora Gleisi Hoffmann, atual presidente do PT.
Indagado sobre sua relação com Silval Barbosa e as decisões nos processos contra José Riva, Gilmar Mendes limitou-se a dizer que “as regras de impedimento e suspeição estão previstas em lei”.
Sem previsão de concurso
Desde a estatização, em 2013, o número de alunos do campus da Unemat em Diamantino quase duplicou. Dos 900 estudantes dos tempos de Uned, agora o total de matriculados já chega a 1.600. Muitos são moradores de municípios vizinhos como Nortelândia, Alto Paraguai e Nova Marilândia. A precariedade da instituição levou alguns dos alunos a fazer denúncias ao Ministério Público cobrando exatamente a realização de um concurso público.
Alguns dos remanescentes da Uned devem se formar no final do ano. A reportagem ouviu reclamações dos alunos sobre a qualidade do ensino na Unemat. Dizem que, nos tempos da instituição privada da família Mendes, o nível dos professores era muito superior.
Os professores também reclamam das atuais condições e relatam que já faltou até papel na universidade. Apenas um dos docentes do campus da universidade estadual em Diamantino, que coordena o curso de direito, é concursado – ainda assim ele foi efetivado em outra cidade e então transferido para o local.
“A falta de concurso é um fato, essa é uma dificuldade. Mas isso não impede o funcionamento do campus”, afirma o vice-reitor da Unemat, Ariel Lopes, que defende a encampação da Uned pelo governo do Mato Grosso. Ele afirma também que houve planejamento na compra, ao contrário das provas reunidas no inquérito civil do Ministério Público.
“Falta professor, mas não é só em Diamantino. Infelizmente esse é um problema de todo o estado”, ressalta Adriano Lopes, ex-reitor da instituição que agora é deputado estadual.
Procurado, o governo do Mato Grosso informou em nota que não há previsão de concurso público para a Unemat em Diamantino.
A investigação não tem prazo para ser concluída – razão pela qual o promotor Daniel Balan Zappia não quis dar entrevista. Um de seus últimos atos no inquérito, neste mês, foi solicitar à Assembleia Legislativa do Mato Grosso o “processo legislativo relacionado à autorização para a instalação” da Unemat em Diamantino, conforme prevê a Constituição do estado. Não se sabe se esse procedimento de fato existe. Procurada pela Pública, a presidência da Assembleia Legislativa não se manifestou.
Além de pedirem professores mais experientes, os alunos do curso de direito da Unemat em Diamantino também reclamam que desde a estatização não aconteceu mais a semana jurídica, atividade que reunia nomes conceituados para palestras e debates, caso do ministro Gilmar Mendes. Segundo os alunos, ele nunca mais apareceu na instituição, como era comum nos tempos da Uned.
Diamantino: do ouro ao agronegócio
Diamantino é uma cidade pacata, com pouco mais de 20 mil habitantes, na região central do Mato Grosso. Está 200 quilômetros ao norte de Cuiabá, onde começa a região produtora conhecida como Médio-Norte, dominada por grãos como soja e milho, além da pecuária.
Criada há quase 300 anos, Diamantino tenta ainda reerguer-se do declínio que viveu por décadas. O primeiro ciclo, ainda no século XVIII, foi o do ouro, o que lhe rendeu o casario colonial hoje decadente e restrito a poucos imóveis do centro histórico. Foi o seu período de glória, seguido pelo ciclo da borracha.
Nos longos anos de isolamento, a cidade esteve no caminho da Coluna Prestes, o movimento político-militar comandado por Luís Carlos Prestes que andou por mais de 26 mil quilômetros pelo Brasil entre 1925 e 1927. A coluna invadiu Diamantino já quando caminhava rumo à Bolívia, onde depôs as armas, e a deixou isolada e destruída, segundo relatos dos moradores locais.
O avô de Gilmar, Mário Mendes, que se tornaria anos depois prefeito da cidade (entre 1942 e 1945), presenciou o corre-corre provocado pela chegada dos homens de Prestes. Mário chegou a servir comida aos revoltosos, conforme depoimento prestado em livro que conta a história do município.
Mário abriria a fila dos prefeitos de sobrenome Mendes: além dele, o filho Francisco Ferreira Mendes, e o neto, Francisco Ferreira Mendes Filho, conhecido por Chico Mendes, também seriam eleitos para comandar a cidade, que sobrevive atualmente graças ao agronegócio – principal atividade da economia do Mato Grosso.
Sob o comando de Chico Mendes, prefeito entre 2001 e 2008, a cidade desenvolveu-se. Além da faculdade criada pela família, o prefeito, com o auxílio do irmão ministro, ajudou a trazer para o município, em 2007, o Grupo Bertin – que seria comprado depois pela JBS. O repórter Hudson Corrêa revelou no livro Eleições na Estrada (Publifolha, 2009), escrito em coautoria com o também jornalista Eduardo Scolese, que o ministro do STF se empenhou pessoalmente na instalação do Grupo Bertin na sua cidade natal. Ele assinou um protocolo de intenções ao lado de autoridades como o então governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PP), atual ministro da Agricultura.
A planta da JBS em Diamantino, segundo a própria empresa, é uma das maiores do Brasil e está “habilitada para exportar para os mais exigentes mercados”, além de ser uma das principais empregadoras do Mato Grosso. A empresa é a principal em atividade no município.
É para essa unidade que vão os gados vendidos à empresa pela família de Gilmar Mendes. Envolvida na delação do presidente Michel Temer (PMDB) e do senador afastado Aécio Neves (PSDB), a JBS compra bois das fazendas da família do ministro na região, como revelado pelo jornal Folha de S.Paulo.
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