Encaminhada ao Congresso como uma garantia, por parte do governo Michel Temer, de que a polêmica reforma trabalhista seria modificada após sua aprovação, ainda em 2017, a Medida Provisória 808/2017 já chegou a esta semana sem qualquer chance de manter sua vigência a partir da próxima (ao final desta matéria, veja o que mudaria na lei com a MP). O texto perde validade na segunda-feira (23) e, para continuar valendo, deveria ter sido aprovado em duas sessões plenárias, uma na Câmara e outra no Senado, mas esbarrou na falta de interesse da base aliada e em uma disputa que oposicionistas classificam como artificial, justamente para impedir o avanço da pauta. A conduta dos governistas mereceu crítica até entre alguns deles.
Leia também
“É lamentável que a medida provisória não tenha logrado êxito de ser aprovada, porque era um amplo acordo”, disse ao Congresso em Foco o senador governista José Agripino (RN), que liderou o DEM no Senado por mais de dez anos a partir de 2003. “Tudo o que é acordado, na minha opinião, tem que ser cumprido. Infelizmente essa matéria não mereceu tramitação congressual que o acordo recomendava. É um fato lamentável.”
<< Deputados querem reativar imposto sindical; oposição acusa base de boicotar medida provisória
<< MP da reforma trabalhista esbarra em desinteresse de governistas e caminha para a perda da validade
Publicidade
A reportagem ouviu lideranças e parlamentares de partidos variados durante a jornada relativamente improdutiva da última quarta-feira (18), quando a Câmara esbarrou na tática oposicionista contra o chamado “cadastro positivo” e o Senado se viu às voltas com bate-boca de senadores sobre uma entrevista da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) ao grupo de TV árabe Al Jazeera. Para parlamentares contrários à reforma trabalhista operada por Temer em 2017, o governo voltou a descumprir o que combinou com o Congresso.
Líder da Minoria no Senado, onde a matéria deveria ter sido votada depois da Câmara, Humberto Costa (PT-PE) lamenta a atitude da base governista e aponta para o risco de insegurança jurídica que a situação implica. “É uma coisa preocupante. Mesmo com suas limitações, a proposta era de mitigar, minimizar e deixar claro alguns pontos que são terrivelmente danosos aos trabalhadores, e que foram aprovadas naquele momento [ano passado]”, declarou o petista.
“Isso mostra uma falta de integração entre o Parlamento e o governo. Até mesmo uma falta de coordenação do próprio governo federal. Também considero relevante que estejamos dando uma demonstração de absoluta insegurança jurídica. Não somente para os trabalhadores isso é ruim, mas também para os empresários. Havia uma regra, essa regra foi mudada; a medida provisória mudou a regra que foi mudada; e, agora, fica valendo a primeira mudança que aconteceu. Fica um ambiente muito difícil”, acrescentou o senador.
“Desprezo”
Na Câmara, o sentimento dos oposicionistas é semelhante. Para Alessandro Molon (Rede-RJ), um dos principais opositores da gestão Temer no Congresso, o governo dá uma “demonstração de desprezo pela vida de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros”. “É mais uma demonstração de que o governo não merece qualquer confiança, porque sequer é capaz de honrar sua palavra e corrigir alguns dos absurdos aprovados na reforma trabalhista. É lamentável. Não é por acaso que o governo tem o menor índice de popularidade da história do Brasil”, declarou o deputado.
Ainda segundo Molon, a “desculpa” de governistas sobre o excesso de emendas (foram apresentadas 967) ou a tentativa massiva de revalidação da contribuição sindical, como este site mostrou em 13 de março, não serve para que a MP seja ignorada. “Isso não é desculpa para não se votar medida provisória. O governo que coloque votos para derrotar as emendas da oposição. O governo é que tem obrigação de fazer isso, e não deixar de votar pelo fato de terem sido apresentadas muitas emenda. É ridículo esse argumento”, acrescentou Molon.
Fator sindical
Fiador das políticas reformistas de Temer, o vice-líder do PSDB na Câmara, Domingos Sávio (MG), diz não ver razão para polêmica, uma vez que a legislação trabalhista está em vigência desde novembro do ano passado e foi aprovada por deputados e senadores. “Essa é uma matéria literalmente vencida. Se a gente for fazer uma análise, do ponto de vista constitucional, a única coisa que ameniza é que foi no ano passado a aprovação [da legislação trabalhista] e estaríamos tentando reverter neste ano. Dentro do mesmo ano a legislação nem permite legislar sobre uma mesma matéria que já está vencida no ano anterior”, declarou o tucano ao Congresso em Foco, sem mencionar o acordo feito no Senado.
Na verdade, diferentemente do que disse Domingos, o texto da Constituição só veta a reedição de MP com conteúdo idêntico na mesma sessão legislativa, o que não é o caso. O tucano disse ainda este não é um assunto que configure disputa entre governo e oposição, mas de viés pragmático. “Quando tramitou, aqui, a reforma trabalhista, houve um esforço muito grande de alguns grupos para negociar com o governo a retirada da cláusula que excluía a obrigatoriedade da contribuição sindical – que passou até a ser chamada de imposto sindical, porque era uma contribuição impositiva, em que o trabalhador não tinha o direito de escolher se ele iria contribuir ou não com o sindicato. Virou sindicalização impositiva. Isso até fere a liberdade de escolha do trabalhador”, reclamou o tucano.
O deputado lembra que, durante as discussões na Câmara em 2017, havia parlamentares ligados ao movimento sindical que sequer aceitaram o fim da contribuição sindical, mas tiveram que travar a batalha do voto. “Essa tese foi derrotada em plenário, houve destaque, e foi derrotada de maneira fragorosa. Por quê? Porque não é uma questão de base ou de oposição, e nem de um partido. É uma questão de evolução do sistema sindical brasileiro, que vinha sendo capturado por partido político, determinadas corporações ou até por indivíduos”, acrescentou o parlamentar, para quem “bônus de sindicatos que, muitas vezes, deixava de representar o trabalhador para representar interesses desse ou daquele”.
A crítica de Domingos Sávio remete à informação de que 109 deputados (84) e senadores (25) apresentaram emendas para modificar o texto da polêmica MP, que altera 17 artigos da reforma sancionada em julho do ano passado (veja a íntegra). Há quem tenha pedido a própria revogação da nova lei trabalhista, mas boa parte das emendas é destinada a repor na legislação o imposto sindical obrigatório.
Livre de obrigação
Descontada já na folha de pagamento, a taxa sindical obrigatória foi um dos pontos mais atacados da reforma por parte de parlamentares da oposição, para quem o governo Temer atua para enfraquecer sindicatos e retirar direitos trabalhistas. Já o governo diz que se trata de “modernização” das relações de trabalho e que parte dos próprios empregados defendiam o fim do imposto, discurso que Domingos Sávio repete agora.
“Com o imposto sindical não existindo e com a contribuição sindical livre, sindicato deixa de ser pelego. Sindicato vai ter que mostrar serviço para que o trabalhador, voluntariamente, contribua. Isso é uma evolução do sistema sindical brasileiro. E, na minha opinião, isso não tem volta. Pode mandar qualquer projeto que, entendo, deverá ser derrotado”, concluiu o tucano, acrescentando que percebe a mesma disposição “nas ruas” contra a contribuição obrigatória. “Os trabalhadores festejaram.”
Debate natimorto
Mesmo com o acordo anunciado, foi mal recebida na Câmara a mera notícia de que a legislação trabalhista seria alterada por meio de MP. A matéria teve objeção principalmente do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que desde antes da edição da MP já havia reclamado da postura do governo. Para Maia, o ideal seria tentar promover alterações na legislação por meio de projeto de lei. Ele parecia sinalizar o que viria pela frente: toda MP precisa, antes da votação de plenário, ser discutida e votada em uma comissão mista, onde deputados e senadores apreciam as emendas formalizadas e preparam o texto para decisão final. Mas o colegiado sequer começou o debate.
Primeiro, sem explicações, em 14 de março abandonou o barco da comissão o próprio presidente eleito, Gladson Cameli (PP-AC), que jamais conseguiu promover ao menos uma reunião deliberativa. Ganhava corpo a tese de boicote, entoada pela oposição, com o pano de fundo das disputas de bastidor. Na sequência, constatou-se que o colegiado sequer teria sua composição definida por líderes partidários, como manda o regimento do Congresso. Como se não bastasse o impasse regimental, membros de diferentes partidos não aceitaram como relator o deputado tucano Rogério Marinho (RN), que relatou a reforma trabalhista de Temer e comprou briga com centrais sindicais ao patrocinar o fim do imposto obrigatório.
Assim, partidos governistas evitavam indicar seus membros. O próprio presidente interino da comissão mista, o vice Pedro Fernandes (PTB-MA), lembra trecho do regimento interno segundo o qual, em caso de renúncia do presidente, deverá ser observado prazo de cinco dias para que nova eleição seja convocada, em sessão conduzida pelo vice. Mas, para isso, o PP deveria ter indicado o nome para vaga, o que jamais voltaria a acontecer. Transcorreu-se mais de um mês desde Gladson Cameli deixou o comando do colegiado.
“Se [o PP] indicar, eu convoco a eleição”, disse o deputado Pedro Fernandes ao Congresso em Foco no início deste mês. Em seguida, Pedro deixou clara sua desconfiança no avanço da matéria. Para o petebista, o mais provável, como acabou por se confirmar, era que a MP parada no Congresso desde novembro viesse a perder a validade. “Eu acho que caminha para isso.” Curiosamente, Pedro chegou a ser cogitado para chefiar o Ministério do Trabalho, mas Temer desistiu de sua indicação no começo de janeiro.
O impasse perdurava por semanas até Maia encaminhou ofício, em 19 de março, advertindo que a comissão mista teria como prazo até 3 de abril para discutir e aprovar relatório para a MP 808/2017. Do contrário, não mais pautaria a matéria para votação em plenário. “A impressão é que a MP vai cair. Se caducar [perder a validade], caducou”, disse o deputado há cerca de 20 dias, acrescentando que a derrubada da medida provisória restabelece a segurança jurídica em torno da legislação em vigor.
Compromisso esgotado
Na outra Casa legislativa, a senha para a perda da validade já estava dada. Líder do governo no Senado, Romero Jucá (MDB-RR) logo tratou de vender a ideia de que a culpa pelo descumprimento do acordo não partiu do governo em si, mas foi fruto de circunstâncias do Congresso. “O compromisso do governo se esgota na hora em que se edita a medida provisória. Se a medida provisória não for aprovada, não é mais responsabilidade do governo”, afirmou o homem forte de Temer no Parlamento, sem citar que, quando quer, o governo mobiliza sua base e ao menos leva MPs para análise em plenário.
“Eu tinha certeza que isso ia acontecer. O governo faltou com a verdade. Ludibriou, enganou a sua própria base quando disse que ia vetar alguns artigos, ou até mesmo alterar [a reforma trabalhista] via medida provisória. Eu não poderia esperar outra de um governo como esse, que não tem compromisso nenhum com o povo brasileiro”, resignou-se o senador Paulo Paim (PT-RS) na mesma época em que Jucá lavava as mãos para a MP. O petista se referia ao fato de que, em 28 de junho do ano passado, durante reunião da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Jucá levou ao colegiado uma carta em que Temer prometeu vetar pontos polêmicos da reforma, ou ao menos editar uma MP. Diante da promessa, senadores aceitaram votar a matéria.
Mas o presidente sancionou, sem vetos, o texto aprovado em plenário dias depois das promessas na CCJ. E, para tentar acalmar os ânimos no Congresso, dizia que estava a caminho a medida provisória para resolver as pendências. No entanto, devido a restrições na legislação, a MP só pôde ser editada em novembro, depois do prazo de três meses para que as novas normas trabalhistas entrassem em vigência. Em uma das imagens que marcaram aquele momento, a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) passou a exibir, em discursos no plenário, placas mostrando a quantidade de dias que haviam transcorrido desde a promessa governista.
Quase ministra
A deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) discorda de Alessandro Molon quanto à “desculpa” do governo e disse à reportagem que o excesso de emendas foi prejudicial para a aceitação do debate. “Acredito que, por tantas emendas que foram apresentadas a esta MP, a discussão neste ano seria muito infrutífera. Creio que o melhor a se fazer é apresentar questões pontuais a serem resolvidas, mesmo. Havia uma disputa muito mais política do que técnica. Eram quase mil emendas, não chegaríamos a lugar algum. Ia ser uma guerra”, opinou Cristiane, para quem projetos de lei poderiam resolver pendências.
Se não lamentou, Cristiane comentou o desinteresse da base aliada em discutir e votar a matéria. “Eu não sei qual era o acordo da parte de cá [na Câmara], mas isso é inexorável, é fato. E contra fatos não há argumentos. Se não houve uma vontade de formar essa comissão na Câmara foi porque, de fato, deve ter havido um entendimento de que não era para se explorar esse assunto aqui dentro”, ponderou a deputada, que foi impedida de tomar posse no Ministério do Trabalho depois de uma longa polêmica no início do ano.
O QUE PODERIA TER MUDADO COM A MEDIDA PROVISÓRIA:
1 – Gestante e lactante em ambiente insalubre
O texto sancionado por Temer prevê que a trabalhadora gestante deverá ser afastada automaticamente, durante toda a gestação, apenas das atividades consideradas insalubres em grau máximo. Para atividades insalubres de graus médio ou mínimo, a trabalhadora só será afastada a pedido médico. Mas, com a MP, fica proibida a execução de atividades por mulheres gestante/lactante em ambiente com qualquer grau de insalubridade, mesmo diante de atestado médico.
2 – Trabalho intermitente
A MP pode regular os contratos do chamado trabalho intermitente, aquele no qual a prestação de serviços não é contínua, embora com subordinação. A lei permite a alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador. Agora, a medida sugere, por exemplo, um prazo de carência para demissão do trabalhador, que depois poderia ser recontratado. A MP também sugere que a remuneração por hora ou dia de trabalho nesse tipo de contrato seja equivalente, de maneira proporcional, com o salário mínimo.
3 – Acordo individual para a jornada 12 por 36
A medida provisória permite que sindicatos negociem com empregadores os temos da chamada jornada 12 por 36, aquela em que o empregado trabalha 12 horas seguidas e descansa as 36 horas seguintes. A lei em vigência prevê que tais acordos sejam feitos pelo trabalhador individualmente, diretamente com os patrões, o que poderia tornar a relação trabalhista desigual.
4 – Contribuição previdenciária
O governo propõe a criação de uma espécie de recolhimento complementar proporcional aos meses em que o empregado receber remuneração inferior ao salário mínimo.
5 – Dano moral
O valor da condenação imposta ao empregador por dano moral e ofensa à honra (assédios moral ou sexual, por exemplo) deve deixar de ser calculado de acordo com o salário do empregado ofendido. A questão, que consta da lei em vigor desde sábado (11), havia sido vista como uma forma de discriminação ao fixar punições segundo o nível remuneratório dos trabalhadores, no contexto em que quase metade dos brasileiros sobrevive com até um salário mínimo. O pagamento de indenização por dano moral pode chegar a 50 vezes o teto do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que é de R$ 5.531,31.
6 – Autônomos
A medida provisória prevê a negociação de regra para a situação dos trabalhadores autônomos. Esse ponto da matéria pretende proibir a cláusula de exclusividade, em que estaria configurado o vínculo empregatício e, consequentemente, a obrigação de observância (por parte dos empregadores) dos compromissos trabalhistas dele decorrentes.
7 – Representação em local de trabalho
A MP assegura que as comissões de representantes dos trabalhadores, permitidas em empresas com 200 empregados ou mais, não substituirá o papel dos sindicatos. Assim, os grupos sindicais terão que participar, obrigatoriamente, das negociações coletivas in loco.
8 – Prêmio
O texto da medida também permite que sejam pagos em duas parcelas alguns prêmios concedidos ao trabalhador. Produtividade, assiduidade e méritos congêneres são os critérios considerados na premiação.
9 – Gorjetas
A MP 808 determina ainda que as gorjetas não sejam consideradas no cálculo de receita própria dos empregadores, reservando-se aos empregados. Normas coletivas de trabalho nortearão o rateio dos valores.
<< Senadores-empresários foram maioria absoluta dos votos a favor da reforma trabalhista; veja a lista
<< Lei sancionada por Temer abre caminho para “quarteirização”