Raphael Tsavkko Garcia *
A defesa de Dilma durante todo o dia 29 de agosto foi coalhada de frases de efeito vazias, bravatas, gritos por democracia e… mentiras. Temer, escolhido por Lula e pelo PT para ser seu vice, segue uma política de continuidade tanto na economia quanto nos cortes. Diferenças podem ser vistas na política externa e nada mais. Discursos como os de “Temer acabou com Ciência Sem Fronteiras e o Pronatec” são enganosos. Temer pode até ter fechado a porta, mas os cortes orçamentários promovidos por Dilma já haviam inviabilizado a continuidade desses e de outros programas.
Dilma parece ter uma predileção por citar Eduardo Cunha, um exemplo de como a moral do Congresso anda baixa. Seria um trunfo, não tivesse o mesmo Cunha sido um importante aliado de Dilma e do PT e ter participado ativamente de sua primeira campanha eleitoral. Além disso, Cunha foi a ponte entre Dilma e os evangélicos e trabalhou pesadamente para distanciá-la da imagem de alguém que defendia o aborto (Gabriel Chalita, vice de Fernando Haddad em São Paulo, fez o mesmo trabalho junto aos católicos conservadores). Dilma soube vender essa imagem, chegando a vetar a regulamentação ao direito do aborto e a mandar uma ministra, Eleonora Menicucci, se calar sobre o tema.
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Dilma afirmou ainda ter “resgatado a Petrobras”. Mais uma mentira. O PT praticamente levou a empresa à falência, a corrupção foi tamanha que resultou em queda de 1% do PIB.
Minha preocupação aqui não é se houve ou não crime de responsabilidade, ou se as pedaladas podem assim ser consideradas, e sim focar no aspecto mais básico das alianças espúrias e da total inexistência de moral e ética – de ambos os lados.
PublicidadeDilma e diversas personalidades petistas e de partidos aliados acertam ao dizer que o Congresso (e mais especificamente o Senado) não tem moral para julgar Dilma. O problema é que os políticos petistas também não têm moral para defendê-la, especialmente de seus (ex-)aliados.
Sabemos que Aécio, “o derrotado”, tem inúmeros problemas que não se limitam ao aeroporto de Cláudio. Aloysio Nunes é investigado pelo STF, Agripino Maia é outro investigado por corrupção. E a história não melhora para outros senadores do PSDB, DEM, PMDB, PP etc.
Do lado petista, Gleisi Hoffmann, uma das mais vocais nos ataques aos demais senadores, esqueceu-se de que ela é investigada por (supostamente) roubar dinheiro de aposentados junto com seu marido, o ex-ministro Paulo Bernardo. Petistas destacados, como Lindbergh Farias, esqueceram das fotos com os agora ex-aliados que, de um dia pro outro, viraram corruptos, arautos do atraso e etc. A senadora Vanessa Grazziotin, esta do PCdoB, já enfrentou pedido de cassação pro compra de votos e abuso de poder econômico, por exemplo. Não há santos no lado vermelho-desbotado da força.
Na turma do troca-troca temos Renan Calheiros, um dos últimos a entrar na mira do petismo radical, era em 2015 defendido por militantes do PT do que chamavam de ataques da Globo. Calheiros foi inclusive chamado de “exemplo de moralidade”, mas hoje entrou no balaio dos “golpistas”. Como não lembrar de Kassab, arqui-inimigo do PT paulista, responsável por episódios de higienismo e violência contra manifestantes e que virou ministro da Dilma, recebeu incumbência de Lula de fundar o PSD como forma de desidratar o PMDB e… acabou ministro do PMDB e novamente inimigo do PT.
Kassab e Collor dispensam comentários. Kátia Abreu foi uma das poucas a manter a fidelidade à Dilma e por isso foi louvada pelos apoiadores da presidente. Pena que ela seja acusada de incontáveis crimes contra indígenas e suas ações contra o MST – apoiadores de Dilma – sejam conhecidas por todos. É aquele famoso apoio que mais causa (ou deveria causar) constrangimento do que ajuda.
O que vemos no Congresso nada mais é que uma disputa de poderosos aliados e ex-aliados por poder. Gritam, brigam, babam e ameaçam em público. Na sala do café trocam amenidades e chamam para a festa de aniversário da filha. Não estou dizendo que não devem manter civilidade, mas o que vemos é algo bem além. É a conivência de elites disputando o bolo. O nosso bolo. Aquele bolo que nós nunca veremos, porque não fomos convidados para a festa.
A música popular diz “se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão”. O clichê cai como uma luva para o Congresso Nacional e não discrimina partidos. Qualquer um que acuse o adversário de uma imensa gama de crimes corre o risco de… acertar na mosca. Pode até chutar um artigo do Código Penal sem muito medo de errar. O problema que se apresenta é menos de legitimidade de derrubar Dilma ou de manter Dilma e mais da legitimidade de manutenção do Congresso em si, do sistema político em si.
Chegamos num ponto da história tão viciado que, por exemplo, chegaram a decretar que a repressão ao protesto a favor de Dilma ocorrido na noite de seu depoimento na Avenida Paulista inauguraria um período de repressão. Oras, só muita falta de memória para dizer isso depois da imensa repressão patrocinada pelo PT, PSDB e demais partidos no poder em junho de 2013 ou durante a Copa do Mundo e que desembocou na lei antiterrorismo criada e aprovada pela mesma Dilma para garantir que não aconteceriam protestos durante as Olimpíadas. A maior das ironias é que quem apanhava ontem nas ruas de São Paulo (e falo em termos de grupo, não de indivíduos) gritava “VAI PM” contra a esquerda em 2013 e 2014 e acusava a eles (ou a nós) de sermos financiados pela CIA.
Dilma cair sem que Temer, o vice da chapa, a siga, é um absurdo – em especial, com pesquisas mostrando que a ampla maioria dos brasileiros repudia os dois
O professor Pablo Ortellado comentou em reportagem do Aliás (Estadão) sobre a polarização política brasileira. De um lado quem acredita piamente que Dilma e o PT são comunistas e que o Foro de São Paulo é uma organização de promoção do comunismo mundial que enfiou médicos cubanos para destruir o país, do outro temos teses estapafúrdias de que a crise da Petrobras só estourou porque é do interesse da CIA ou que o próprio juiz Moro, responsável pela Lava Jato, foi treinado pelo FBI. E tais teses à esquerda, digamos assim, não vêm de qualquer um, mas de gente como Marilena Chauí ou Emir Sader, que dedicam seus dias a espalhar teorias conspiratórias. Do outro lado temos Bolsonaros e Revoltados Online com apoio dos jovens “liberais” do MBL. No fim é um jogo de soma zero. Ou melhor, o saldo para o país é negativo.
O impeachment não trará nenhuma paz ao país. A narrativa do golpe irá permanecer no imaginário, a tentativa de apagar o passado seguirá. O PT estar aliado em quase um terço das cidades do país ao PMDB, PSDB ou DEM (num dos casos em Niterói, segunda cidade do estado do Rio de Janeiro) parece não entrar na cabeça de seus apoiadores. Ou, como em São Paulo com Haddad, aliado ao PR de Magno Malta e ao Pros – além do Chalita, lembram, dos católicos antiaborto? Apesar disso, os defensores de Dilma seguem todos os dias alardeando o início de um período terrível da história a partir da posse de Temer, como se todas as maldades fossem novas e o PT nada tivesse feito.
Do outro lado ficam a desfaçatez e a franca traição (ou “golpe” nos termos de Élio Gáspari, ou seja, no sentido mais literal de um soco ou uma rasteira) do PMDB e de aliados como Kassab ou Collor. A falta de ética é patente, assim como a completa impossibilidade moral de apontar o dedo para o que, no fim, era o próprio governo deles. Dilma cair sem que Temer, o vice da chapa, a siga, é simplesmente um absurdo de proporções brasileiras – em especial diante de pesquisas que mostram que a ampla maioria da população repudia tanto Dilma quanto Temer.
Temos, nesse bolo, perfis de redes sociais como os já citados Revoltados Online de um lado (e outros perfis menos estrelados, mas igualmente tóxicos), e perfis e páginas claramente alinhadas ao PT do outro (várias delas com mesma identidade visual e suspeitas fortes de serem mantidas por MAVs, ou militantes virtuais do PT, criados por, pasme, André Vargas, deputado cassado). Além disso, há ainda portais claramente alinhados ao ideário da “família Bolsonaro”, em geral espalhando ódio e desinformação, e portais da rede #BlogProg (Blogueiros Progressistas), que recebem relevantes fatias de verbas federais ou recursos de sindicatos controlados pelo PT e pelo PCdoB (já apelidado de PSeudoB por muitos).
Nesse caldo, a verdade é detalhe. Sequer podemos falar em versões, o que temos é apenas leituras absolutamente deturpadas e enviesadas. E usos políticos que beiram a canalhice (ou mesmo ultrapassam) de lutas sociais e movimentos sociais. Um exemplo: Como não lembrar de um dos governistas mais raivosos e destacados, Eduardo Guimarães, agora candidato a vereador pelo PCdoB, que durante os protestos de junho de 2013 usou o paint para colocar uma suástica nazista numa bandeira negra dos black bloc a fim de criminalizar o movimento e, por tabela, acusar o MPL e todos que estavam nas ruas de serem nazistas?
Diante dessa completa degeneração de militância e mídias alinhadas, não podíamos esperar outro cenário que não o dessa completa farsa que acompanhamos pela TV. A farsa do impeachment. A farsa de aliados políticos tornados inimigos e novamente aliados ao sabor do vento enquanto claques de cada um dos lados se matam nas redes sociais espalhando mentiras e desinformação e tornando o debate político insuportável ou mesmo impossível.
O impeachment da Dilma, não se enganem, não mudará esse cenário. Teremos dois anos de imensa (e necessária) pressão contra Temer, assim como teremos a continuidade dos desmontes iniciados por Dilma que poderão mesmo ser acelerados e piorados (há espaço para isso). E a campanha de 2018 poderá nos trazer novamente Lula, agora com um discurso extremamente vitimizado (o PT é mestre nisso, vide o mensalão), buscando ganhar votos em cima da história de um suposto golpe, apelando para as paixões inconscientes de amplos setores da esquerda que permanecem incapazes de resistir ao canto da sereia (ou do sapo barbudo, para usar a velha piada).
Nossos problemas não vão acabar tão cedo, nem começaram ontem. Estamos apenas no meio de uma batalha que já perdemos.
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto, Espanha).
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