O Estado de São Paulo registrou 1.420 mil candidatos com irregularidades nos registros, seguido por Minas Gerais (640) e Paraná (476). Os dados levam em conta os 488.276 registros de candidaturas recebidos pela Justiça Eleitoral. Com o registro, caberá aos juízes competentes julgar os pedidos de candidatura, que poderão ser indeferidos caso os candidatos não cumpram os requisitos legais, entre eles estar elegível nos termos da Lei da Ficha Limpa.
Leia também
O levantamento do MPE dimensiona recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que, como o Congresso em Foco tem mostrado nas últimas semanas, colocam em risco a legislação concebida para afastar políticos condenados das disputas eleitorais. Nos termos da Ficha Limpa, não podem disputar eleições, entre outros motivos, candidatos com rejeição de contas relativas ao cargo ou função pública, além de condenação em segunda instância por crimes como lavagem de dinheiro, corrupção e peculato.
“Bêbados” e retrocesso
Como este site mostrou no dia 11 deste mês, em julgamento conjunto de dois recursos extraordinários (REs 848826 e 729744), ministros entenderam que é exclusividade da Câmara Municipal a competência para julgar as contas de governo e da gestão de prefeitos. De acordo com a deliberação do plenário, cabe ao tribunais de contas apenas auxiliar o Poder Legislativo municipal, emitindo parecer prévio e opinativo, mas que poderá ser derrubado por decisão de dois terços dos vereadores. Isso é, cerca de 80% dos candidatos com contas rejeitadas estarão liberados para concorrer ao pleito de 2016.
A rejeição, de acordo com a Lei Orgânica do TCU, é aplicada quando são constatadas omissão de dever de prestar contas; gestão ilegal, ilegítima ou antieconômica, ou ainda infração à norma legal de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial; dano ao erário, desfalque ou desvio de dinheiro público.
O ministro Gilmar Mendes chegou a dizer que a lei é “mal feita” e parece ter sido feita por “bêbados”. A declaração gerou fortes reações de entidades. Um dos idealizadores da lei, o advogado e ex-juiz Márlon Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), classificou como “desrespeitosa” a fala de Gilmar, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Foi uma frase desrespeitosa à OAB, à CNBB e a muitas organizações que elaboraram o projeto. Também desrespeita o Congresso Nacional, já que o projeto, depois de apresentado, passou por toda a tramitação legislativa. Desrespeita o próprio Supremo Tribunal Federal que ele integra, que declarou essa lei constitucional”, enfatizou o ex-juiz ao Congresso em Foco.
Entenda
No primeiro recurso (848826), o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, enfatizou que, pela Constituição, a atribuição para julgar as contas do chefe do Executivo municipal são os vereadores, já que são eles os representantes dos cidadãos. A divergência apresentada por Lewandowski foi seguida pelos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Marco Aurélio e Celso de Mello. Foram vencidos os votos do relator, ministro Luís Roberto Barroso, e dos ministros que o acompanharam: Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli.
Já no segundo recurso (729744), o ministro-relator, Gilmar Mendes, decidiu ainda que nos casos de omissão da Câmara Municipal, o parecer emitido pelo tribunal de contas em questão não poderá ser utilizado para gerar a inelegibilidade do político nos próximos pleitos eleitorais. O ministro destacou que o dispositivo, segundo a redação dada pela Lei da Ficha Limpa, aponta como inelegíveis aqueles que “tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, para as eleições que se realizarem nos oito anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal”.
Reação
As entidades ligadas à criação da Lei da Ficha Limpa começaram a se mobilizar tão logo a sessão do STF foi concluída. O ex-juiz Márlon Reis avaliou que a decisão da Corte é a “de efeito mais drástico” sobre a regra sancionada em 2010. De acordo com o especialista, as instituições estão avaliando a “saída jurídica” mais eficaz para recorrer à questão.
“Essa [rejeição das contas pelos tribunais] é de longe a causa de inelegibilidade que mais impede candidaturas de agentes ímprobos. Segundo dados da Faculdade de Direito da USP, 86% dos casos de inelegibilidade se referem a rejeição de contas públicas. Se o STF atribuir a palavra final às Câmaras de Vereadores, esse dispositivo da Lei da Ficha Limpa ficará sem qualquer eficácia”, detalha o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral.
A Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil estima que 6 mil candidaturas a prefeitos serão imunizadas depois do novo entendimento, que exige julgamentos locais.
“Entendo, portanto, que a competência para o julgamento das contas anuais dos prefeitos eleitos pelo povo é do Poder Legislativo (nos termos do artigo 71, inciso I, da Constituição Federal), que é órgão constituído por representantes democraticamente eleitos para averiguar, além da sua adequação orçamentária, sua destinação em prol dos interesses da população ali representada. Seu parecer, nesse caso, é opinativo, não sendo apto a produzir consequências como a inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g, da Lei complementar 64/1990”, afirmou, durante sessão do STF, Gilmar Mendes, ressaltando que tal entendimento também é adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Márlon Reis contestou: “A norma que trata da inelegibilidade dos políticos que tiveram contas rejeitadas é a que tem mais ampla utilização dentre todas as da Lei da Ficha Limpa. Por isso, vimos com grande pesar a decisão tomada ontem (quarta, 10). Essa decisão amplia o descontrole. É obvio que vereadores não vão julgar tecnicamente as contas. As contas de gestão são contas técnicas, não políticas. Um vereador não pode aprovar contas de um prefeito que não fez licitação quando deveria fazer, por exemplo. Mas o Tribunal de Contas pode dizer: ‘Não, a lei mandava fazer licitação nesse caso’”, detalhou à reportagem. “Foi um grave equívoco cometido pelo STF”, acrescentou.
Abuso de poder
Essa não foi a primeira deliberação do Supremo a beneficiar candidatos com problemas na Justiça Eleitoral. Como este site mostrou em 3 de agosto, o ministro Luís Roberto Barroso rejeitou, em julho, reclamação em que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, questionava a decisão da Justiça sobre um pedido de “quitação eleitoral” – documento que confirma que o eleitor está em dia com as leis pertinentes. O pedido havia sido aceito e beneficiado o político sul-mato-grossense Nelson Cintra Ribeiro, sem levar em consideração a Lei da Ficha Limpa. Na reclamação (RCL 24224), o procurador argumenta que Nelson foi condenado a inelegibilidade de três anos pelo Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul (TRE-MS) por abuso de poder político. Entretanto, apesar de os fatos serem referentes ao pleito de 2008, conforme a redação anterior da Lei 64/1990, alterada posteriormente pela Lei da Ficha Limpa, a inelegibilidade atribuída deveria ser de oito anos, e não três, como acatado pelo tribunal.
Na decisão, Barroso afirmou que ainda está em análise no STF a possibilidade de aplicação do prazo de oito anos de inelegibilidade em casos específicos de abuso de poder e em situações anteriores à Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Apesar da constatação, Janot diz que a decisão do ministro afronta a autoridade do Supremo, verificada nas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) 29 e 30 e da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4578, nas quais, segundo o procurador-geral, o STF entendeu ser possível a aplicação da Lei da Ficha Limpa a fatos anteriores à sua vigência.
À época, Márlon disse a esta reportagem que o próprio Supremo acompanhou o voto do relator sobre a inelegibilidade retroativa, ou seja, referentes a acusações anteriores à validação da lei. Ele enfatizou esperar “que a rigidez inerente à Lei da Ficha Limpa seja preservada” pelos ministros quando a matéria for julgada pelo plenário da Corte. Para Márlon, a reclamação apresentada por Rodrigo Janot é “completamente válida”.
* Com informações da Agência Brasil