Emanuel Medeiros Vieira*
Para José, Luiz e Cassinha: já encantados e inesquecíveis
“Do lado esquerdo carrego meus mortos
Por isso caminho um pouco de banda”
(Carlos Drummond de Andrade, Fazendeiro do ar)
Hortênsias, crisântemos, maio. É grande o casarão, estou só, é domingo: o dia dos meus mortos caminharem comigo. Mas não é verão, e eles, habitualmente, só se infiltram naquela estação. Mas meu peito estalava por causa dos seus apelos: berravam, queriam-me, dançavam em mim. Concentravam neste corpo ainda vivo todas as suas esperanças e pleitos. “Já vou”, anunciei, lavei o rosto, escovei os dentes, chupei duas uvas, beijei a imagem do santo de minha devoção, São Miguel Arcanjo, vesti um agasalho. Meus mortos me cutucam, dão cotoveladas no meu ventre. Gemo baixinho. Pedro, meu tio, era o mais afoito e excitado, “não demore, dileto sobrinho, arrume-se logo”, ele implorava. Como era de esperar, morrera de cirrose hepática, aos 46 anos, 25 anos atrás. Tinha olhos verdes, uma boina preta e um sorriso maroto. Deu-me as mãos, profundamente alegre.
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Desci a escadas da grande casa decadente, janelas e portas rangendo, ratos famélicos, ventos que pareciam uivos, trincos enferrujados, sótãos abandonados, nenhum empregado. Vastos retratos que me fiscalizam por onde eu ando. Colho uma goiaba no quintal, a grama não é cortada há muito tempo. Ela está molhada. Antes, era tudo natureza. Com os anos, foram chegando os vizinhos.
Edifícios, condomínios, porteiros eletrônicos, guardas armados, antenas parabólicas e muito barulho. Sou o que sobrou. Mordo a goiaba vermelha neste maio, céu absolutamente azul, queria lamber um pouco de mel e declamo uma estrofe de Drummond:
“Bela esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfêmia.” (…)
(“Canto Esponjoso”)
Ludovico, meu irmão que morreu tísico, pouco depois dos 20 anos, arruma a manta e me cumprimenta. “Que dia bonito!”, constata, ele amava aventuras, piqueniques, cachoeiras escondidas, não suportava a rotina, já era calvo na adolescência e tinha olhos azuis.
Meus mortos esperam a chegada dos domingos de verão com doída ansiedade. Como entendo essa aflição, às vezes passeio com eles fora daquela estação. O irmão Ludovico mantém o sorriso irônico. A prima Gertrudes, ninfomaníaca, morde os lábios, carregados de vermelhíssimo batom e pergunta novamente – ela sempre pergunta isso – se ainda não demoliram a casa. Contrariado, digo que não. “Mas não sei até quando resistirei à marcação cerrada de corretores, alcaides, vereadores venais e novos-ricos”, explico. Sou um velho, não por idade, mas por ser o último sobrevivente da minha tribo. Hoje, completo 50 anos. Alamedas floridas e pássaros. Recito, alto, a segunda estrofe do poema drummondiano:
“Bela esta manhã ou outra provável,
esta vida ou outra invenção
sem, na sombra, fantasmas.” (…)
Tio Pedro quer dançar, deseja aproveitar cada segundo desse retorno. Pede para entrar numa vendinha escondida, que fica um pouco depois dos portões de ferro e dos caramanchões, para tomar uma cana. Eu autorizo, ele agradece, “que bom”. Ludovico conta que não se lembra do momento de sua morte naquele sanatório de fronteira, onde lia A Montanha Mágica.
– “Passei para o outro lado sem saber”, confessa rindo.
Eu também rio:
– E sem servir ao nosso Exército…
Gertrudes morde a língua e concede olhares provocativos – trajava um vestido também vermelho, muito apertado e decotado – ao irmão. “Ela me recorda um doce de leite que nossa mãe fazia: gostoso no início, enjoativo depois”, diz Ludovico com ar lamentoso.
Ela nunca tentou me seduzir porque não me achava atraente e avaliava-me como “chato, detalhista, irratidiço, maníaco e conservador”. Eu agora rio e me lembro de suas últimas noites, tão dolorosas, quando um câncer no estômago deixou-a em pele e osso.
A manhã se adensa, o sol está mais quente, chegam outros parentes, contraparentes, compadres, agregados, vizinhos, noras, genros, sobrinhos, tios. Constato que, para escrever sobre eles, necessitaria de muito tempo, serenidade e disciplina. Conceber um romance, pois um conto é muito pouco.
Vou preparar um piquenique naquele parque que fica atrás da encosta. Flores silvestres, taças de cristal, toalhas bordadas, maçãs frescas, pão e vinho em casa (por uma vizinha), licor de pitanga. Tio Pedro me convida para um trago e eu aviso que parei de beber há vários anos.
– “Por quê, pobre sobrinho?”
– Porque o álcool já entrava no meu organismo como remédio, nunca mais como prazer – respondo.
– “E um cigarro de palha?”
– Desculpe, tio, não virei monge, gosto de moçoilas em flor, mas abandonei o tabaco.
(Ele ri.)
– “Quem sabe…”
(Eu também rio.)
Eles cantam, dança, bebem, estão de mãos dadas e fazem brincadeiras de roda. E, novamente, sinto uma emoção que nunca poderei relatar, algo tão fundo que está além da Política, do Poder e dos dias de rotina. Um primo de bigodes toca uma gaita-de-boca. Meu avô, acordeon, O mano Ludovico, flauta doce. O cheiro dos mortos impregna as flores, os pães e meu corpo, uma espécie de gosto de álcool de farmácia, formol, sangue e febre. Falam juntos, excitados.
– “Não permita que a tribo desapareça.”, apela um.
Os outros aplaudem.
– “Arrume um moça boa, prendada e calma e deixei um herdeiro”, implora minha mãe, que até aquele momento não havia falado.
Nada digo, só declamo:
“Bela a passagem do corpo, sua fusão no corpo geral do mundo.” (…)
– “A família não pode acabar”, protesta o avô Adamastor, grande apreciador dos romancistas russos do século XIX.
Ela vai acabar, penso eu. Não tive filhos, nem companheira, só algumas normalistas e putas ocasionais. Sempre gostei dos extremos – o vazio.
– “Você continua oscilando entre enormes exaltações, cheias de projetos e depressões terríveis?” – indaga meu pai, preocupado. Movo os lábios e só digo:
– Sempre.
Pareço um velho completo, mas repito, só hoje cheguei aos 50 anos. Talvez este ar provecto seja derivado da barba grisalha, dos cabelos penteados à antiga, da gravata-borboleta, da bengala branca, do paletó clássico, dos suspensórios, dos coletes antigos, do relógio de algibeira, dos óculos pequenos, do gosto por ceroulas, deste rosto envelhecido. Ou desta profunda aversão ao mundanismo e à futilidade?
Ou será por causa da marca da navalha na face esquerda, proveniente de uma briga com antigo desafeto, um sonetista muito ruim?
Alguns dos meus mortos mantém um sorriso discreto, travam conversações abafadas para não atrapalhar os vivos. Mas o único vivo ali sou eu. Faço um brinde, com suco de limão, para celebrar essa misteriosa ponte que construímos. Com suco de limão, rio, “eu que fui um compulsivo e voraz bebedor.” Na grama, ainda molhada, contemplo as agendas agora inúteis desses mortos do meu sangue, que anunciam nomes que não mais conheço, épocas que já foram embora, compromissos adiados para sempre.
Coloco uma toalha de crochê na grama. Leio um, trecho de Bodas em Tipasa, de Albert Camus.
Lembro que nossa família sempre amou a cultura helênica, o sol e a natureza. As tias Margarida e Laura tiraram do baú roupas há muito tempo guardadas, mantêm a elegância e o ar aristocrático. “E dizer que vivíamos sempre duros, com credores e agiotas batendo à porta”, recordo sem tristeza.
Como se envelhece rápido! É o que penso. Um gato nos espia. A noite foi muito orvalhada. Pego um caderno antigo, folheado a ouro, muito belo. É o meu “Diário”. Lá havia escrito (mas agora rasgo porque o trecho me parece muito piegas e minha família, boa leitora e culta, tinha profunda repulsa ao sentimentalismo reles e à emoção pequeno-burguesa): “Como dói tentar unir as pontas do passado!” Uns batem palmas, mas Tio Pedro, sempre muito lúcido, sentencia: “O sobrinho já escreveu coisas melhores; resvala há tempos, na repetição, na auto-complacência e no maneirismo.” Ele me olha.
– Evite sempre o sentimentalismo. Seja trágico.
Então, ele silencia. “Escavo um túnel e não chego ao fim”, monologo, feliz por Tio Pedro não ter escutado, pois lamentaria a retórica vazia. É hora de terminar o passeio, nosso piquenique.
“Outro passeio só no ano que vem”, medito.
Pedem-me mais tempo, reivindicam tolerância. Finjo severidade e camuflo uma dor muito funda. Lá está vindo ela, a velha depressão, tão bem recordada por meu pai. Ficarei só, novamente (e esta solidão me pesa), com folhagens, o piano estragado da avó de Laeticia, uma cama de um bebê que não pôde crescer, filho do mano Ludovico, que morreu os 2 anos. Se ainda fosse um bêbado, convidaria Tio Pedro para um porre homérico. Apenas abro meu caderno, aliso minha caneta Parker 51, herdada do meu pai, católico-apostólico-romano, um homem ao mesmo tempo severo e generoso, cultor dos textos clássicos. Nesse caderno, tento fazer um elogio da palavra escrita, um texto que ninguém conhecerá, nem os meus mortos, que nem sairá do meu casarão, um gemido atroz contra a hegemonia eletrônica, uma celebração da literatura , do silêncio, da meditação. Sim, da palavra escrita, um ódio pouco velado à massificação e aos rebanhos do mundo.
“Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.”
Antes, porém, despeço-me dos meus mortos, aqueles que sempre passeiam comigo nos domingos de verão.
* Texto escrito em Brasília, em 1994, e incluído no livro recém-lançado pelo autor, Vinte e dois contos escolhidos, LGE Editora. Nascido em 1945 em Florianópolis (SC), Emanuel Medeiros Vieira tem 18 livros publicados e diversos prêmios literários. É formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e já atuou como professor e jornalista, tendo trabalhado inclusive para dois dos principais títulos da imprensa de resistência à ditadura militar, os jornais Opinião e Movimento. Sua obra mereceu elogios de vários grandes nomes da literatura nacional, como o poeta Carlos Drummond de Andrade, o contista Caio Fernando Abreu e os críticos Otto Maria Carpeux e Afrânio Coutinho.