Renata Camargo
Presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe), o juiz de direito Márlon Reis, do Maranhão, foi desde o início um dos mais entusiasmados apoiadores do projeto ficha limpa. O projeto chega ao final de sua tramitação no Congresso envolvido na polêmica sobre a sua extensão – se valerá ou não para os processos anteriores à sua sanção – por conta da mudança de redação feita pelo senador Francisco Dornelles (o senador do PP do Rio de Janeiro trocou o tempo verbal nos artigos, do passado – “que tenham sido condenados” – para o futuro – “que forem condenados”). Para Márlon, a mudança não provocará qualquer alteração significativa no projeto. Foi, na sua avaliação, apenas uma “adequação jurídica” que não modificará o mérito da proposta.
Acima da polêmica, porém, Márlon Reis considera que o grande mérito do projeto ficha limpa foi começar a mudar o paradigma pelo qual a sociedade enxergará o comportamento ideal de seus políticos. Para ele, o projeto, que chegou ao Congresso apoiado por quase 2 milhões de assinaturas, representa “uma transição rumo ao aprofundamento da democracia”.
“Para mim, o maior mérito da campanha do ficha limpa foi ressaltar uma questão que era colocada em segundo plano, que é a vida pregressa dos candidatos, como parte da campanha. Vários candidatos já começaram a se preocupar em dizer que não têm problemas com a Justiça”, disse Márlon.
O juiz acredita que o Brasil está vivendo um importante momento de mudança vindo “debaixo para cima”, ou seja, da sociedade para as instituições. O principal resultado disso é a “retomada de um sentido positivo para a política” e “um convite para ocupar os espaços que ainda estão preenchidos por pessoas que não deveriam estar na vida pública”.
Em entrevista ao Congresso em Foco, o juiz Márlon Reis adianta que a aprovação do ficha limpa não aposenta o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), criado para apoiá-lo. Márlon revela que, agora, o MCCE encampará a bandeira da reforma política. O jurista avalia que, da mesma forma, a sociedade empunhará a bandeira apesar da resistência do Congresso. “Essa reforma vai acontecer por iniciativa popular. A sociedade é, sim, muito madura e capaz de entender. Hoje, para ser eleito, tem que ser amigo das empreiteiras. Não há espaço para pessoas verdadeiramente vocacionadas que não tenham espaço no financiamento privado das grandes corporações do país. Essa já é uma distorção que justifica a necessidade de mudanças profundas”, afirma.
Na entrevista, Márlon fala ainda da importância da internet nas eleições de outubro e afirma ser contrário às punições da Justiça Eleitoral às campanhas antecipadas. “Em matéria de propaganda eleitoral, eu tenho uma visão de extrema liberdade. No Brasil, temos a cultura de reprimir demais os políticos e isso inibe a verdadeira política, o debate. A Justiça deveria reprimir é o abuso de poder político, de poder econômico, o uso da máquina pública na campanha”, conclui.
Leia abaixo a entrevista completa:
Congresso em Foco – A sociedade tem visto com receio as mudanças feitas pelo Senado. Na sua avaliação, essas modificações diminuem o mérito do ficha limpa?
Márlon Reis – Essa alteração é meramente redacional e não muda nada. Não houve diminuição do mérito do projeto. Por conta de ter mudado o tempo verbal, passou a impressão de que os que cometeram isso no passado estariam livres. As normas sobre inelegibilidade geralmente são regidas nesse tempo verbal. É uma forma de redigir hipóteses, ‘os que forem’. Não quer dizer que são ‘os que vierem a ter’. Na técnica jurídica, é assim que se escreve. É um jargão jurídico. A prova disso é a lei de inelegibilidade, que é construída nesse tempo verbal. O Supremo Tribunal Federal interpretou a questão e disse que essa lei se aplicava a fatos pretéritos. Para nós, foi apenas uma mudança redacional e está mantido todo o teor que a gente queria. A questão é só aparente. Em termos de técnica jurídica. é assim que se faz. Além do mais, tem um artigo no ficha limpa, o parágrafo 3º do art. 26 C, que é uma norma que diz como o ficha limpa se aplica aos casos pendentes. Esse dispositivo tira qualquer dúvida se ele se aplica a situações que já ocorreram.
O projeto ficha limpa foi aprovado, o Supremo condenou dois políticos, a súmula do nepotismo impede a contratação de parentes. Está havendo alguma mudança para melhor na política brasileira?
Está havendo uma mudança sim, e uma mudança debaixo para cima. O que estamos vendo nas instituições é reflexo de uma mudança de postura da sociedade, que está se tornando menos tolerante com a corrupção. A cultura de tolerância com a corrupção está começando a mudar. Os brasileiros se indignam mais com alguém que roubou o botijão de gás do que alguém que roubou o dinheiro do posto de saúde. Movimentos de baixo para cima estão fazendo com que isso mude. O que estamos vendo com o ficha limpa é o efeito disso. A sociedade transformando indignação em ação. É uma mudança da sociedade que vai se refletindo nas instituições.
Ninguém inicialmente acreditava que o projeto ficha limpa fosse ser aprovado, mas ele foi. O que isso representa?
Vou dizer o que ouvi de um deputado: ele disse que entrou em um tempo em que as coisas estão se tornando diferentes, que está em um momento de transição e que ele nunca imaginou que seria parlamentar em um momento como esse, em que as coisas estão mudando tanto. Inspirado no que ele disse, eu diria que o ficha limpa inaugura uma transição, uma transição rumo ao aprofundamento da democracia. Muitos tentaram ver no ficha limpa um movimento contra a política, para enfraquecer as instituições, enfraquecer o Legislativo. Mas, na verdade, esse movimento se revelou como um movimento fortíssimo no sentido de aprimoramento das instituições democráticas, na busca de uma retomada de um sentido positivo para a política. Foi um convite para a sociedade participar e se aproximar da política. Esse, para mim, foi o significado principal do ficha limpa. Um convite para ocupar os espaços que estavam e ainda estão preenchidos por pessoas que não deveriam estar na política.
Levantamentos iniciais apontam que, dos atuais parlamentares, o projeto Ficha Limpa deixaria muito poucos inelegíveis. Diante disso, já há quem desdenhe do projeto e diga que ele é uma enganação. Como lidar com isso?
Tem matérias jornalísticas que não têm a menor base. Vi matérias dizendo que o [Joaquim] Roriz (ex-senador do Distrito Federal, que renunciou para não ser cassado) e o [Paulo] Maluf (deputado paulista que já foi condenado por órgão colegiado do Judiciário) estão fora do ficha limpa e, na minha avaliação, isso não tem a menor base. O presidente do TSE [Ricardo Lewandowski] deu uma declaração muito interessante. Ele já havia dado a entender que a lei do ficha limpa era inconstitucional e, hoje, ele disse que a lei era bem-vinda e moralizadora. Mas disse que só se aplica a casos recentes. Mas isso é uma interpretação dele. Não é a jurisprudência existente. Se o Supremo der a jurisprudência que já existe, na nossa avaliação, essa lei vai pegar sim gente como o Quércia, o Maluf, até o próprio Collor. O Collor tem duas condenações por colegiado, por crime contra a ordem tributária, me informou hoje um advogado de Alagoas. A lei está muito boa. Na minha avaliação, atinge todos os governadores cassados. É claro que haverá uma disputa interpretativa e esperamos que o Judiciário não marche no sentido contrário à vontade da sociedade.
Essa onda de pressão popular e mobilizações pelo ficha limpa vai repercutir nas eleições? De que forma?
Vai repercutir sim, porque o tema do ficha limpa foi popularizado. Uma questão que era colocada em segundo plano, que é a vida pregressa dos candidatos, agora certamente será parte da campanha. Vários candidatos já fazem questão de ressaltar que não tem problemas com a Justiça. Esse assunto finalmente vai entrar nas preocupações dos candidatos. E isso para mim é o maior mérito da campanha do ficha limpa. Muitas pessoas questionavam o trabalho pedagógico dessa campanha. Esse é o trabalho, trabalhamos nessa lógica de mostrar às pessoas o que esse passado pregresso dos candidatos representa.
O STF condenou dois parlamentares em duas semanas [Zé Gerardo e Cassio Taniguchi], coisa que nunca tinha feito, pelo menos desde 1988, quando foi promulgada a Constituição. O que representa isso?
Em primeiro lugar, é a abertura de um precedente. O Supremo não tinha nenhuma decisão condenatória dessas desde 1988. E agora, com essas condenações, houve essa importante quebra de precedente para mostrar que é possível essas condenações. Abre a possibilidade de haver outros casos de condenação.
A Justiça tem sido muito criticada, especialmente, em termos de morosidade para julgar casos de corrupção. Como o senhor avalia isso?
Existe sim uma morosidade. Mas essa morosidade não é devida a nenhuma responsabilidade pessoal de um juiz, mas fruto de uma necessidade de aprimoramento institucional do Supremo. Uma das coisas que é necessária foi feita recentemente, que é uma lei que permite aos juízes fazer audiências para processos criminais. O volume de trabalho no Supremo é tão grande, que era impossível um ministro dar conta de fazer as audiências.
Muitos deputados com biografia respeitada vão deixar a política desiludidos sob o argumento de que o Congresso não é capaz de aprovar reformas estruturais, como a reforma política. Caso, por exemplo, do deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP). Como o senor avalia isso?
Infelizmente, a gente tem observado com tristeza a perda de excelentes quadros do Congresso. O que se deve realmente à incapacidade do Parlamento se transformar no ambiente almejado por esse tipo de pessoa. A sociedade está precisando de ajuda para que mais pessoas como essas voltem e outras como elas voltem. A chave disso é a reforma política. Esse é o próximo passo do MCCE. Nós temos que mudar o sistema eleitoral que temos hoje que fomenta a corrupção.
Que importância têm essas mudanças estruturais na política?
Hoje, para ser eleito tem que ser amigo das empreiteiras. Hoje não há espaço para pessoas verdadeiramente vocacionadas que não tenham espaço no financiamento privado das grandes corporações do país. Essa já é uma distorção que justifica a necessidade de mudanças profundas. A igualdade de acesso aos cargos públicos é um princípio fundamental. Mas infelizmente, no Brasil isso tem sido evitado pelo abuso do poder econômico.
Como o senhor avalia a atual política brasileira, o Congresso Nacional e seus partidos?
Um deputado uma vez me disse que existem 513 partidos políticos na Câmara. Na verdade, encontramos hoje um verdadeiro desfacelamento dos partidos. Há poucas distinções entre os maiores partidos. Há poucas bandeiras diferentes. E isso, de certa forma, atordoa o próprio eleitorado que se vê carente de opções verdadeiramente que encarnam projetos diferentes do país. Isso também precisa ser remediado através de uma reforma política, que faça com que os partidos funcionem como grupos. Hoje o sistema eleitoral alimenta a divisão dentro de um partido, ele alimenta disputa entre os membros de um mesmo partido, por conta dessa falsa lista aberta apresentada à sociedade.
Na sua avaliação, é possível a sociedade brasileira pressionar o Congresso pela aprovação de um financiamento público de campanha ou ela ainda não alcançou maturidade suficiente para ver relevância nisso?
A sociedade tem um nível de maturidade impressionante. O que falta é ela ser ouvida. Nós testemunhamos isso com o ficha limpa. As pessoas que vimos estavam indignadas, querendo participar da campanha junto conosco. Isso é o que vai acontecer com a reforma eleitoral. O Congresso já demonstrou que não tem capacidade de fazer essa mudança. Essa reforma vai acontecer por iniciativa popular. A sociedade é, sim, muito madura e capaz de entender. Só precisa ser ouvida. Quando se fala de financiamento público de campanha, por exemplo, a população entende imediatamente o que é quando a gente explica o verdadeiro sentido dessa proposta. Trata-se de não subestimar a sociedade e convidá-la para protagonizar esse processo. Com o ficha limpa, fizemos um verdadeiro laboratório para fazer a reforma política com participação popular.
A Justiça Eleitoral tem punido com várias multas o que considera abusos na pré-campanha eleitoral. Primeiro, puniu o PT e o governo, e agora o DEM. O ministro Marco Aurélio Mello chegou a dizer que nunca viu afrontas à lei tão “escancaradas” como as que foram cometidas. O senhor concorda que estão acontecendo tais abusos?
Sobre esse assunto, eu vou emitir uma opinião que pode parecer até surpreendente para uma pessoa que tem uma postura de cobrança e rigor eleitoral. Mas em matéria de propaganda eleitoral, eu tenho uma visão de extrema liberdade. No Brasil, temos a cultura de reprimir demais os políticos e isso inibe a verdadeira política, o debate. Nos Estados Unidos, não existe período de campanha eleitoral. Você, em qualquer momento, pode falar sobre sua campanha. Acho que nós deveríamos ter um modelo que valorizasse mais a inteligência das pessoas. A Justiça deveria reprimir é o abuso de poder político, de poder econômico, o uso da máquina pública na campanha. Agora, falar de candidatura deveria ser uma coisa considerada normal. O valor da liberdade de informação é um valor fundamental, que não está devidamente tratado na legislação eleitoral.
Vários autores, colunistas e políticos defendiam que a internet não faria diferença no cenário político nem nas eleições. Qual a sua avaliação sobre o papel da internet no processo político?
A internet, nós, do MCCE, podemos dar um depoimento muito importante sobre isso. Ontem mesmo, fomos um dos mais acessados do twitter. Chegamos a ser o tema mais comentado na quarta-feira (19) no twitter. Só no facebook, são mais de 20 mil pessoas que participam de comunidades ativamente. A gente tem observado que a internet é um espaço de expressão política para pessoas que não têm um local adequado para se manifestar. Apesar de terem preocupações políticas, a rotina dessas pessoas não contempla espaço de mobilização maior do que a internet. Nós, do ficha limpa, nos beneficiamos muito com a internet. Tenho certeza de que a internet vai beneficiar candidaturas verdadeiramente sintonizadas com o momento que estamos vivendo. Agora, o alerta que dou sobre a internet é para aqueles que têm práticas políticas ultrapassadas: a internet é árida para políticos com ideias ultrapassadas.
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