Em círculos bem-pensantes vejo com alguma frequência que o fato de “ser evangélica” é uma das grandes restrições que fazem a Marina Silva. Penso, no entanto, que do ponto de vista progressista é um dado positivo. Seria totalmente absurdo e desastroso definir, de partida, todo esse imenso contingente de brasileiros como “do outro lado”. Uma interlocução com eles é fundamental e Marina é uma das poucas vozes – e certamente a mais representativa – que podem de fato influenciar esse segmento num sentido progressista, isolando pouco a pouco lideranças reacionárias e venais. Ela tem uma interlocução direta com a base cristã.
Em 2010, trabalhávamos com três contingentes eleitorais diferentes de peso aproximadamente equivalente: a classe média “iluminista”, a garotada das redes sociais e as mulheres pobres evangélicas.
O voto evangélico de Marina não era nada óbvio: nas pesquisas aparecia relativamente modesto, até agosto. Sua performance entre eles era bastante pior que entre os católicos, os espíritas e os “sem religião”. Em setembro, cresceu um pouco, mas ficou ainda longe dos escores reais que ela teria em áreas pesadamente evangélicas – como a Baixada Fluminense, por exemplo.
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Na época desenvolvi uma tese sobre o “voto oculto evangélico”, que carece ainda de comprovação cientifica, embora seja empiricamente bastante plausível, na minha opinião.
A grande maioria dos pastores optara pelas candidaturas de Dilma e Serra pelas razões que todos imaginamos. Relativamente poucos apoiavam Marina. Ela conseguiu o feito extraordinário de estabelecer uma interlocução direta com a base evangélica por cima dos pastores – o que lhe traz uma grande hostilidade dos ditos cujos, sobretudo daqueles mais reacionários.
Naturalmente uma boa parte dos evangélicos pesquisados, sobretudo mulheres, por recato ou temor de contrariar a pastor de sua igreja, ao serem pesquisadas pelos institutos, desconversava a sua preferência por Marina.
PublicidadeIsso foi uma das razões para o seu resultado final ter surpreendido. Ficou uns 4% acima da nossa melhor pesquisa. Alguns atribuem isso aos efeitos do debate da TV Globo. Pessoalmente, acho que não houve essa superioridade dela no debate, que foi equilibrado. Penso que pelo menos uma parte dessa diferença se relaciona ao fenômeno do “voto oculto” das mulheres pobres evangélicas.
Hoje a Marina é com certeza a principal liderança política evangélica do país, embora seja uma convicta e aguerrida defensora do Estado laico. É também praticamente a única grande liderança política evangélica que é progressista e capaz de dialogar – embora não necessariamente se alinhar completamente – com os movimentos que defendem causas comportamentais que as lideranças reacionárias evangélicas hostilizam com tanto fervor.
Este talvez seja o grande papel transformador que lhe é garantido, sem prejuízo de outros eventuais: trazer para um campo mais democrático e tolerante multidões que, na sua ausência, seriam trabalhadas exclusivamente pelas lideranças conservadoras ou reacionárias.
Esse status a obriga a fazer um sutil equilibrismo na gestão dos seus três eleitorados e se expor a eventuais patrulhamentos e distorções de gregos e troianos.
Na sua relação direta com os evangélicos, em foros religiosos, mesmo em época de campanha eleitoral, Marina se recusa a fazer qualquer proselitismo eleitoral, ao contrário da prática habitual dos políticos evangélicos.
Lembro-me de um culto no estádio do Olaria para alguns milhares de fiéis a duas semanas da eleição de 2010. Ela foi a convidada de honra. Não fez nenhuma referência ao processo eleitoral nem à sua candidatura. Fez uma análise bíblica do papel da mulher e da necessidade de convivermos com a pluralidade e a diferença. Uma pregação em torno de uma mensagem claramente progressista embutida na análise de textos bíblicos.
Se temos consciência da importância crescente dos evangélicos de diversas correntes na sociedade brasileira, em particular naquilo que se chama de classe “C” e do grande reacionarismo de alguns de seus condutores diretos, sobretudo na área neopentecostal, a importância de uma liderança progressista capaz de estabelecer uma interlocução direta com essa base é bastante evidente.
Para os defensores de bandeiras comportamentais como a legalização das drogas, do aborto e do livre casamento entre pessoas do mesmo sexo, mais importante do que ficar guerreando os Marcos Felicianos, promovendo-os, é encontrar interlocutores entre os evangélicos que permitam um diálogo franco e civilizado com esse grande contingente de brasileiros para uma convivência democrática e de respeito mútuo sob a égide do Estado laico e da prioridade para reduzir o sofrimento das pessoas.
Isso também serve para impedir que esse contingente numeroso vire base futura para o estabelecimento de uma nova direita autoritária.
Essa reflexão que faço não tem como procupação central a questão eleitoral, vai muito além e tem a ver com a evolução futura de um contingente enorme de brasileiros que desejamos venham a integrar uma cidadania democrática, progressista e solidária.