Marielle Franco é a escolha perfeita do sistema. Sua execução interrompe de forma brutal a vida de uma mulher que lutava para tornar o mundo um lugar mais digno para se viver; uma guerreira extraordinária na luta pela igualdade de gênero, de raça e contra o sistema que impõe aos moradores das favelas uma forma de vida atrelada à violência.
Menina pobre boa parte da sua vida, mãe adolescente, Marielle falava a partir de seu lugar, de sua realidade. Sua ascensão política desafiava todas as probabilidades. Sua prática, absolutamente fiel aos seus princípios e aos quase 50 mil votos que a colocaram na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, era obviamente um estorvo aos poderosos. Um estorvo que lhe custou a vida.
Pessoa pública que se colocava frontalmente em oposição à guerra de terror de Estado contra um povo que vive todos os dias na berlinda, Marielle era um símbolo da mulher negra na política e, nesse sentido, silenciar sua voz é ação diretamente ligada ao genocídio do povo negro. Usada para dar exemplo, e para tentar calar todos que compactuam com seus ideais do direito à vida e à ocupação do espaço das cidades de forma digna, sua morte nos coloca, como sociedade, não apenas diante de um ato abjeto, mas da busca de resposta sobre quem somos e o que queremos para o nosso país, qual nossa ideia de nação, de direito civis, de dignidade, de liberdade de expressão e de ação.
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Marielle integra a fria e cruel estatística dos que são ameaçados e mortos por se encontrarem na resistência contra os esquemas de poder, os privilégios e toda discriminação, retroalimentada para bancar a ganância de poucos. Atrai, por isso mesmo, um debate que não pode se limitar a fazer justiça no caso concreto dela apenas, mas uma ação de política pública efetiva.
Em 2004 o governo Lula criou o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos da Presidência da República, que representa o compromisso do Estado brasileiro de proteger aquelas e aqueles que lutam pela efetivação dos direitos humanos em nosso país, com o objetivo de adotar medidas e articulações que possibilitem garantir a proteção de pessoas que estejam em situação de risco ou ameaça em decorrência de sua atuação na promoção ou defesa dos direitos humanos.
A política nacional de proteção aos defensores dos direitos humanos foi instituída pelo Decreto Presidencial nº 6.044, de 12 de fevereiro de 2007. A atuação do programa não está voltada apenas à proteção da vida e da integridade física dos defensores, mas também e, principalmente, à articulação de medidas e ações que incidam na superação das causas que geram as ameaças e as situações de risco.
O golpe parlamentar de 2016 interrompeu as políticas de direitos humanos em curso no país e jogou uma grande interrogação nas articulações com órgãos públicos e sociedade civil organizada, no caminho para a consolidação de alicerces dessa política de proteção e para a implementação de ações de investigação, de prevenção e de combate às violações para que os defensores dos direitos humanos possam exercer suas atividades no local de atuação.
Junto com nossa correta indignação, ao lado de nossa cobrança para que a morte de Marielle seja investigada, esclarecida e punida, a dor pelos quatro tiros que tiraram sua breve e intensa vida deve ser motor para muito mais que revolta. Deve servir para intensificar a campanha pela volta e consolidação de uma política que evite que se produzam mais vítimas fatais da violência de gênero, de raça, da xenofobia, da misoginia e de toda discriminação que recai sobre o povo pobre.
‘#Marielle, presente’ deve ser o mote para que não sejam produzidas mais Marielles como vítimas fatais, para que suas vozes não sejam caladas, o que só será possível com ações de proteção efetiva em todos os estados, a todos que se encontram em situação de risco e vulnerabilidade por sua atuação em defesa dos direitos humanos.