Carta Capital
Ciro Gomes e a tese das duas candidaturas governistas
A nova pesquisa CNI/Ibope para as eleições presidenciais, divulgada neste dia 22, apresenta algumas novidades. No cenário mais provável no momento, aquele que reúne o governador José Serra, a ministra Dilma Roussef, o deputado federal Ciro Gomes e a senadora Marina Silva – e exclui a ex-senadora Heloisa Helena -, tanto Serra como Dilma perdem preciosos pontos para Ciro e Marina. Segundo o Ibope, Serra teria 35% dos votos, Ciro 17%, Dilma 15% e Marina 8%. O deputado supera a ministra Dilma em dois pontos. Um “empate técnico”, com sabor de vitória para Ciro, enquanto que a senadora Marina, na sua primeira aparição em pesquisa do instituto, crava respeitáveis 8% das intenções de voto.
Se lembrarmos que a menos de três meses discutia-se como grande a possibilidade de vermos as eleições resumidas a um embate entre apenas dois dos candidatos, um da situação e outro da oposição, a pesquisa agora registra que o cenário que se desenha é outro. Não haveria mais como se falar de “plebiscito”, de um “sim” ou “não” ao presidente Lula. Ciro e Marina aparecem como candidatos competitivos, afetando as performances dos dois anteriores favoritos, que, importante frisar, contam até aqui com muitos maiores recursos para aparecerem para a sociedade. Sintomaticamente, a pesquisa aparece num momento em que o governador Serra vinha intensificando sua agenda nacional e os gastos de publicidade do governo estadual. Assim como, do lado do governo federal, a pesquisa surge quando se decretava a saída do Brasil da crise econômica mundial e o pré-sal virava assunto também de generosas campanhas publicitárias na mídia.
Agora, o deputado Ciro Gomes e o PSB ganharam boa munição para sua tese, que defende a necessidade de serem lançados dois candidatos, e não só Dilma, na chamada base governista. A ponto do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, do PSB, vir a público para dizer que já saiu dos planos do partido a transferência do domicílio eleitoral do deputado do Ceará para São Paulo. Já o presidente Lula, que na mesma pesquisa viu seu índice de aprovação subir para espetaculares 81%, seguramente esperava que o grau de “transferência de votos” do seu balaio para o de Dilma estivesse agora mais elevado. Como isso não ocorreu, é certo que nos próximos dias terá que ouvir mais questionamentos sobre sua estratégia eleitoral.
Do lado tucano, ao contrário do que muita gente esperava, Serra teve que amargar perda de votos, para Ciro e Marina. Quando esta apareceu pela primeira vez como eventual candidata, falou-se muito que a ministra Dilma seria a grande prejudicada, mas não foi o que a pesquisa mostrou. No principal cenário pesquisado, ela perde 3% dos votos em relação à pesquisa anterior, enquanto que Serra perde 4%. Serra também não pode festejar sua hegemonia na disputa com o governador Aécio Neves pela candidatura do PSDB. Se a pesquisa mostrou que o governador de São Paulo fica bem à frente de Aécio quando este surge para substituí-lo (35 a 13%), não é menos verdade que ela deu munição aos argumentos do mineiro, quando ele diz que Serra já teria atingido seu teto e que ele, Aécio, teria maior perspectiva de crescimento ao longo da campanha.
‘Não há petróleo no pré-sal’
Aprendemos cedo, com nossos pais, que é melhor ouvir certas coisas a ser surdo. Mas beira o insuportável a quantidade de besteiras propaladas a respeito da exploração do petróleo encontrado no litoral brasileiro, na camada pré-sal. A última (ao menos para mim, porque a mensagem circula há tempos) é a corrente de e-mails com o artigo de um professor universitário, cujo nome não convém citar, por se tratar apenas de um caso exemplar. Especialista em geologia e ex-funcionário da Petrobras (pelos idos da década de 1970, convém ressaltar), ele garante, com absoluta firmeza, que não há quase nada a explorar na região. É tudo um embuste eleitoreiro do governo.
Pelamordedeus, será então que todos os especialistas do mundo estão enganados? Alguém se lembra da polêmica que envolveu a divulgação das megarreservas pelo presidente da ANP, Haroldo Lima, em setembro de 2008. À época, para se esquivar das acusações de precipitação ou de ter se antecipado à Petrobras no anúncio da descoberta, ele lembrou que a publicação especializada americana World Oil publicou um artigo a respeito meses antes. E quanto aos institutos internacionais do setor, que já colocam as reservas na lista das fontes futuras de energia do planeta? Finalmente, por que badalar uma riqueza que, na melhor das hipóteses, só poderá ser usufruída daqui a mais de cinco anos?
Mas há quem perca tempo alimentando esse tipo de discussão. O autor da teoria conspiratória supra-citada começa a dar entrevistas a veículos de comunicação (sim, não resta dúvida de que ele existe, mesmo). Como disse, esse é só um exemplo do festival de sandices que circula. Mas os piores mitos são aqueles que, plantados por grupos privados com milionários interesses no subsolo brasileiro, promovem campanhas de desinformação.
O Brasil surfa na marolinha
A cada dia se confirma a resistência da economia brasileira à crise financeira mundial. Os indicadores econômicos continuam a melhorar de forma sensível em praticamente todos os setores. Levada por esse otimismo, a Bolsa de Valores recuperou todas as perdas do início do ano.
A turma do “copo meio vazio” insiste por aqui em mostrar que há países, a exemplo da China, que desaceleraram menos durante a crise. Mas para a parcela da população que não foi diretamente atingida – ou seja, quem não perdeu o emprego, o crédito ou tinha dinheiro investido no exterior –, a noção de que o mundo despencava ficou confinada às páginas dos jornais.
Escapamos da recessão no segundo trimestre de 2009, seguramos em alta o volume de crédito – motor do crescimento econômico nos últimos anos – e, agora, começamos a testemunhar a retomada do emprego e do investimento. Mesmo a indústria, setor que mais se ressentiu da crise, começa a exibir sinais de recuperação. O IBGE mostrou, na quinta-feira 24, que a taxa de desemprego se estabilizou em 8%, e a massa salarial cresceu 1% em agosto, na comparação com julho. No mês, 242 mil vagas com carteira assinada foram abertas. O instituto mostra que a inflação continua a desacelerar. A alta do IPCA-15, prévia do índice oficial, foi de 0,19% em setembro, ante 0,23% em agosto.
Com todos esses sinais positivos, o Brasil foi o primeiro país a receber a chancela de grau de investimento da agência de risco Moody’s, após o início da crise. A nota foi divulgada na terça-feira 22. “A crise demonstrou que o Brasil era mais forte que os países que já tinham recebido o grau de investimento”, afirmou o ministro Guido Mantega à Agência Estado.
O governador das cavernas
Na história recente do País, são raros os lances edificantes nas discussões públicas entre ambientalistas e lideranças ligadas ao agronegócio. Não é raro o debate descambar para ataques pessoais despropositados. O episódio protagonizado na segunda-feira 21 pelo governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB), contudo, atingiu o fundo do poço.
Além de chamar o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, de “veado fumador de maconha”, o governador acrescentou que, caso o encontrasse pelas ruas da cidade, o “estupraria em praça pública”. Os comentários foram feitos quando Puccinelli falava a empresários em Campo Grande, capital do estado, e criticava o zoneamento do cultivo de cana-de-açúcar no território nacional, decidido pelo governo federal recentemente.
Diante do comentário pusilânime, o ministro Minc reagiu igualmente com o fígado. Com referências às teorias freudianas do inconsciente, sugeriu ao governador que “saísse do armário com tranquilidade”, assumindo o que seriam instintos homossexuais reprimidos, os quais, na leitura que o ministro faz de Freud, explicariam tamanha truculência.
Quem conhece o governador, no entanto, não se surpreendeu. Em seu currículo constam outros dois episódios igualmente lamentáveis. Em abril, Puccinelli disse ter levado “várias vezes os petistas para o motel, para o motel eleitoral”, insinuando que alguns o criticariam apenas em público. Em outra ocasião, sugeriu aos PMs que atirassem em bandidos “para matar”. Além de constranger a parcela esclarecida da população sul-mato-grossense, Puccinelli e seus comentários engrossaram a voga homofóbica, que no ano passado resultou no assassinato de 190 cidadãos no País, de acordo com a ONG Grupo Gay da Bahia. Na quarta-feira 23, Puccinelli divulgou um comunicado, pedindo desculpas e lamentando “a conotação de ofensa dos seus comentários”. Não convenceu.
Ele ainda parece presidente
O ex-presidente americano Bill Clinton está constantemente em campanha. Força do hábito, para quem nunca saiu do cenário político mundial. Por isso, na terça-feira, 22, o curto espaço que o separava da porta da limusine à uma entrada de serviço do Hotel Sheraton, na rua 52, em Manhattan, tomou-lhe 18 minutos cravados. Dedicou o tempo a um afã de apertos de mãos, fotos com admiradores e, até, a resposta à uma pergunta não muito simpática de CartaCapital. “Existem críticos que qualificam seu trabalho na Clinton Global Initiative como benemerência de uma oligarquia sem representação eleitoral. O que o senhor tem a dizer sobre isso?”. Sem deixar de sorrir, Clinton respondeu: “Dentro deste hotel estão cerca de 100 líderes mundiais- a maioria eleita democraticamente por seus conterâneos. E mesmo se estivessem ausentes, é preciso considerar que se aqueles que receberam votos não atuam para a melhoria da qualidade de vida de seus constituintes, alguém tem de tomar o seu lugar”, disse.
Esta pergunta e resposta remeteram a ponderações que Clinton faria mais tarde sobre dados apresentados pela presidente chilena, Michelle Bachelet. Ambos faziam parte do painel de abertura do evento patrocinado pela Clinton Global Initiative, entre os dias 22 e 25 passados. Ao saber que os chilenos têm cobertura de seguro saúde universal, o ex-presidente americano perguntou qual era a renda per capita dos cidadãos do país. Bachelet disse: “US$ 13.500”. Clinton, então, atacou: “Se eu fosse congressista americano, ficaria envergonhado com o fato do Chile poder assegurar todos os seus cidadãos, e eu não no meu país”.
A tirada foi um dos pontos mais comentados da abertura da conferência reunindo lideranças políticas, empresariais, ONGs, celebridades e instituições empenhadas na filantropia em áreas de desenvolvimento sustentável no mundo. Cada participante da Clinton Global Initiative se compromete a encontrar soluções para problemas e colocar em prática iniciativas práticas. Os esforços concentram-se em quatro tópicos abrangentes. Estas metas são: Energia e Mudanças Climáticas; Educação; Saúde Global; e Combate à Pobreza.
O tema principal desta conferência de 2009 foi “Elevação das condições de mulheres e meninas”, mas os outros assuntos também foram debatidos em painéis de convidados especiais. A arrecadação de fundos é, evidentemente, outro propósito fundamental da empreitada. Até este encontro, US$ 2.3 bilhões haviam sido amealhados. Espera-se que a caixa suba agora aos US$ 2.5 bilhões. “Desde o lançamento da fundação, em setembro de 2005, cerca de 200 milhões de pessoas foram beneficiadas em todo o mundo”, diz Robert Harrison, executivo-chefe da instituição. “As iniciativas atingem 100 países e arregimentamos, até esta reunião, 1.400 participantes compromissados”, diz Harrison. Aqui, o vocábulo “compromisso” é considerado ao pé da letra: trata-se de substantivo. Quem não cumprir com as metas a que se obrigou, não é convidado para o próximo evento da CGI.
Veja
Lula abençoa a candidatura de Ciro Gomes
Para o presidente Lula, eleger o sucessor em 2010 é uma obsessão. Ele é dono de índices espetaculares de aprovação, coleciona comendas mundo afora e está convicto de que a história do Brasil será dividida entre os períodos a.L. e d.L. – antes de Lula e depois de Lula. A derrota nas urnas de um herdeiro político não cabe nesse currículo. Há mais de seis meses o presidente está em campanha apresentando nos palanques sua candidata, a ministra Dilma Rousseff. Até agora, porém, a fama de eficiente dela e a popularidade dele não têm se transformado em intenções de voto no volume esperado. O que parecia ser a receita correta para o continuísmo está se mostrando um fracasso na prática. Diante do quadro até agora desfavorável, Lula pôs em andamento um plano alternativo. O governo decidiu dividir as bênçãos da aprovação plebiscitária de Lula entre Dilma e um segundo nome identificado com a atual administração – o deputado Ciro Gomes, do PSB.
Disputar a eleição presidencial com dois candidatos ungidos pelo Planalto parece, à primeira vista, mais uma daquelas obras de arquitetura política muito atraentes no papel, mas que não se sustentam no mundo do concreto. A estratégia faz mais sentido quando examinada em dois tempos. Dar publicidade a esse caminho agora aumenta, pelo menos teoricamente, a perspectiva de continuidade no poder do atual grupo governante. Isso soa como música aos ouvidos dos potenciais aliados que abominam a ideia de sentir saudade das emas do Palácio da Alvorada a partir de janeiro de 2011. Quanto maior a perspectiva de vitória, maior o poder de atração de apoios. Quem se beneficiou disso foi Ciro Gomes. O deputado apareceu na última pesquisa de intenção de voto empatado na segunda colocação com Dilma Rousseff – ambos muito atrás do governador de São Paulo, José Serra. A diferença é que Ciro está em ascensão, enquanto Dilma vem perdendo fôlego, principalmente depois do anúncio da candidatura da senadora Marina Silva, do PV.
Lula relutou em abraçar a candidatura Ciro Gomes. Nos últimos três meses, o presidente se empenhou em tentar convencer o deputado a transferir o domicílio eleitoral para São Paulo e disputar o governo estadual. Assim, com uma única tacada, ele se livraria de um adversário incômodo no plano federal e ganharia um aliado em São Paulo. As últimas pesquisas, porém, mostraram que Ciro e Dilma podem, pelo menos no primeiro turno, constituir uma aliança informal pelo parentesco ideológico e, principalmente, pelo adversário comum. Ciro é um orador inflamado, exímio construtor de frases que, a despeito da falta de lógica e amparo na realidade, têm poderoso efeito comunicador. Os julgamentos sobre o que é certo ou errado, bom ou ruim, velho ou novo, saem da boca de Ciro com a certeza de um pregador protestante. Ele faz o mundo parecer simples. Isso agrada aos ouvidos de certo tipo de eleitor incapaz ou indisposto diante do desafio de destrinchar discursos mais complexos. Nesse particular, Ciro é o oposto de Dilma. A ministra é quase sempre cerebral ao ponto de enregelar as audiências com o fogo frio de seu olhar e a cordilheira de números que deita sobre seus ouvidos.
O pesadelo é nosso
Lula tem na política o instinto matador que caracteriza os grandes artilheiros do futebol tão admirados por ele. Na semana passada, essa habilidade abandonou o presidente da República. Ele esteve em Nova York para discursar na abertura da 64ª Assembleia-Geral da ONU, palco privilegiado para fazer aquilo de que mais gosta e que faz como poucos: enaltecer o Brasil aos olhos do mundo. Em sua fala, Lula assinalou os avanços no uso de energias limpas no Brasil e mesmerizou os burocratas internacionais com ataques à caricatura do mercado onipotente. Ficou nisso. A maior parte do tempo passado sob os holofotes foi dedicada por Lula a falar de um país estrangeiro, Honduras, uma nação paupérrima sem nenhuma relação especial com o Brasil. Politicamente instável, Honduras vem de ejetar do posto e exilar um presidente, Manuel Zelaya, pela tentativa de desrespeitar a Constituição e, por meio da convocação de um plebiscito, perpetuar-se no poder.
Caso típico da contaminação ideológica patrocinada pelo venezuelano Hugo Chávez, Zelaya vendeu a Caracas seu pouco valorizado passado de latifundiário direitista. De repente, começou a se pautar pela cartilha populista chavista de miséria moral e material, supressão de liberdades individuais, desrespeito às leis, aos costumes civilizados, associação com o narcotráfico e, claro, eternização no poder – receita que estranhamente passou a ser chamada de esquerda na América Latina. Em uma operação comandada por Chávez, Zelaya foi conduzido de volta a Honduras e se materializou com numerosa comitiva na casa onde funciona a Embaixada do Brasil em Tegucigalpa. Esse hóspede incômodo, de aparência bizarra e com sinais evidentes de distúrbios mentais – ele se diz vítima de ataques por radiação de alta frequência e gases tóxicos que ninguém mais percebe –, foi o grande assunto de Lula em Nova York. O Brasil pode esperar outra oportunidade.
Zelaya é um problema dos hondurenhos que encurtaram seu mandato antes que ele o espichasse indefinidamente. É um problema também de Chávez, que não se conforma em perder o investimento feito na conversão dele ao seu credo. É um problema dos Estados Unidos pela proximidade geográfica e por estar na sua esfera de influência histórica. Pois a semana acabou com Zelaya sendo um problema e constrangimento para o Brasil. Golpe de mestre de Chávez, que evitou alojar Zelaya na Embaixada da Venezuela, ordenando a seus amigos na paradiplomacia brasileira chefiada por Marco Aurélio Garcia que o acolhessem na representação brasileira. “Hoje, o Brasil tem um problema em Honduras e Chávez, que o produziu, não tem nenhum”, diz Maristela Basso, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo. Chávez age como o líder do subcontinente americano. Faz troça dos Estados Unidos e ignora Lula.
Dia de festa no interior
No Brasil, toda cidade tem pelo menos uma praça, uma igreja, um bar – e uma câmara de vereadores. Nenhum político é tão presente na vida do brasileiro quanto o vereador: existem hoje quase 52 000 representantes nas câmaras municipais. O vereador é tão tradicional na política brasileira que remonta ao longínquo ano de 1532, quando o primeiro deles foi eleito na vila de São Vicente. Cabe a ele encaminhar demandas da população ao governo local, cobrar resultados dos prefeitos e fazer leis municipais. No papel, uma boa ideia. Ficou na intenção. O projeto degenerou numa pálida e triste sombra do que poderia ser. Com o nascimento da República, em 1889, e a consequente concentração de poderes nas mãos de presidentes e governadores, os vereadores entraram num longo crepúsculo de irrelevância. Os gastos com as câmaras municipais passaram a crescer na mesma proporção dos escândalos que delas surgiam. Aos poucos, o posto de vereador perdeu sua nobre função democrática, transfigurando-se num mero carguinho, um meio de atender aos interesses políticos e, não raro, financeiros de seus ocupantes. A Constituição de 1988 consagrou esse duvidoso modelo, que hoje nos custa 6 bilhões de reais por ano – e, na semana passada, os congressistas conseguiram piorá-lo.
Sem resistências de nenhum partido, os parlamentares aprovaram uma emenda à Constituição que aumenta o número de vereadores em cerca de 8.000. Os deputados e senadores ainda deixaram uma sorrateira brecha na emenda, pela qual os atuais suplentes podem ocupar imediatamente essas vagas. Esse é o motivo para a efusiva comemoração estampada na foto acima. A reação ao casuísmo, no entanto, não tardou. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Ayres Britto, referindo-se à possibilidade de posse desse pequeno exército, lembrou que a corte já havia estabelecido o dia 30 de junho deste ano como data-limite para qualquer alteração no cálculo do número de vereadores. Em outras palavras, Ayres Britto deixou claro que o tribunal não permitirá a farra: “A emenda atual chegou tarde para entrar em vigor na corrente legislatura”. As novas regras, portanto, só valem a partir das eleições de 2012 – se as cortes superiores não as derrubarem até lá, o que é provável.
A decisão dos parlamentares configura um retrocesso de cinco anos. Antes das eleições de 2004, o TSE havia cortado mais de 8 000 vagas, por entender que os municípios estavam extrapolando o limite constitucional de número de vereadores. Desde então, os congressistas tentavam aprovar a emenda que multiplicaria novamente os assentos municipais. Não há razões republicanas que justifiquem as novas vagas. Eis o que escreveu na sua proposta o deputado Arnaldo Faria de Sá, do PTB de São Paulo, relator da emenda: “As câmaras de vereadores é (sic) a escola dos políticos estaduais e nacionais. O vereador procura… trazer melhorias àqueles que o rodeiam, bem como ainda (sic), a melhoria num todo”. (Registre-se que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou esse texto.) Não é preciso ter ido à escola para perceber que não foram os argumentos bem construídos do deputado Arnaldo Faria de Sá que conquistaram os parlamentares. Tanto empenho para aprovar a emenda explica-se pela importância eleitoral dos vereadores, especialmente nas pequenas cidades do país. Nesses lugares, o apoio político dos vereadores é essencial para assegurar votos aos candidatos à Presidência, ao governo estadual, ao Senado, à Câmara, a prefeito…
O socialismo não morreu (para eles)
Um fantasma ronda a América Latina: o fantasma do comunismo. Pelo menos é o que acreditam os militantes de um punhado de partidos nanicos de esquerda que ainda sobrevivem na política brasileira. Para esse pessoal, não há nada mais importante do que impedir que as ideias de Karl Marx sejam devoradas pelo fungo e pelo bolor. Os esquerdistas radicais formam um grupo tão curioso quanto inofensivo. A grande aspiração dessa turma é assistir ao dia em que o socialismo, finalmente, vai se tornar o sistema econômico e político dominante no planeta. E esse dia estaria mais próximo, com o capitalismo perto de seus estertores, como demonstraria a crise financeira do ano passado. Apesar de animados, os nossos marxistas não pretendem se esforçar para acelerar a Grande Revolução Vermelha. Acham que basta sentar e esperar, visto que a marcha da história se encarrega de fazer o trabalho pesado.
O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), que integra esse bloco, é provavelmente a única agremiação marxista do mundo fundada depois da virada do século. Sua maior estrela é a ex-senadora Heloísa Helena. Com pouco mais de cinco anos de existência, o partido é um balaio de gatos. Abriga socialistas, trotskistas-cristãos, trabalhistas e até brizolistas. Com tantas correntes, é difícil afinar um discurso homogêneo, mas a maioria dos militantes concorda em um ponto: é preciso implantar um regime socialista no Brasil quanto antes. “Achamos que não há condições de fazer isso agora, mas um bom jeito de começar a transição socialista seria reestatizar a Vale do Rio Doce e expulsar o capital privado da Petrobras”, diz o secretário de mobilização do PSOL, Roberto Robaina, reproduzindo um pensamento que, infelizmente, ronda o Palácio do Planalto.
Uma das agremiações mais barulhentas é o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado). Seu líder, José Maria de Almeida, foi candidato duas vezes a presidente da República. Em 1998, teve 0,30% dos votos. Em 2002, alcançou 0,47%. Zé Maria não se preocupa com essa falta de mais-valia nas urnas: “O importante é a revolução. Ela está chegando, e nós estamos preparados. Haverá uma insurreição do povo. Vamos derrubar o governo e mudar o regime”. Uma revolução no Brasil? “É isso mesmo. Nos últimos anos houve conflagrações no Equador, na Argentina e na Bolívia. Eles só continuam capitalistas porque quando o povo foi para as ruas não havia partidos capazes de guiar a transição para o socialismo. Esse será o nosso papel quando a hora chegar”, acrescenta um Zé Maria animadíssimo.
A foice e o martelo também continuam em riste nas mãos da velha guarda do PCB (Partido Comunista Brasileiro). “Nunca fez tanto sentido ser comunista quanto agora”, garante o secretário-geral da legenda, Ivan Pinheiro. Pare ele, a crise econômica dos últimos doze meses é a senha para a ressurreição do modo de vida soviético. “O capitalismo não vai dar conta dessa crise. Digo mais: haverá uma próxima crise, muito maior. Quando isso acontecer, os trabalhadores do mundo todo vão perder seus empregos e terão de voltar a se organizar para lutar. Isso vai acontecer antes do que se imagina”, entusiasma-se Ivan, o Terrível.
Essa confraria esquerdista se completa com uma obscura organização chamada PCO (Partido da Causa Operária). Como se fossem soldados da Coreia do Norte, seus militantes dificilmente saem em público, não dão bom-dia aos vizinhos e soltam a voz ao cantar a Internacional. Sua única face conhecida é o comissário-geral Rui Costa Pimenta, que em todas as eleições aparece na TV repetindo o slogan: “Quem bate cartão não vota em patrão”. Uma rima, não uma solução, para continuar no pão com macarrão.
De deixar tuiuiú eriçado
Se o leitor é daqueles que acreditam que a política brasileira já produziu toda baixaria possível, engana-se. Sempre surge alguém disposto a nos lembrar que o fundo do poço pode estar muito, muito mais embaixo. Foi o que aconteceu na semana passada, em Mato Grosso do Sul. O governador do estado, André Puccinelli, do PMDB, produziu a mais preconceituosa e destrambelhada declaração pública dos últimos anos. Ele estava furibundo porque o governo federal limitou a área do Pantanal que pode ser ocupada por plantações de cana-de-açúcar. A medida é boa para a preservação da natureza, mas, na visão de Puccinelli, atrapalhará a economia local. Com a sutileza de um jacaré de goela aberta, ele atacou o responsável pela restrição, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. “Ele é veado e fuma maconha. Se viesse aqui, eu ia correr atrás dele e estuprar em praça pública”, disse o governador a jornalistas, em seu gabinete.
Minc, que é casado desde 1974, mas se orgulha de defender todos os tipos de diversidade, tanto a vegetal quanto a sexual, não tolerou a ofensa calado. Retrucou que a ameaça de estupro de Puccinelli revelava um gay enrustido. O ministro começou com ironia: “O governador tem uma visão interessante do homossexualismo: eu é que sou veado, mas ele é quem quer me estuprar”. Depois, enveredou pela psicologia: “Freud explica que algumas pessoas que têm o homossexualismo enrustido tentam matar o homossexual que há dentro de si”. Por fim, soltou também o seu lado jacaré de goela aberta: “O governador devia examinar com carinho o homossexualismo que existe dentro dele e aceitar isso com mais razoabilidade. Ele pode sair do armário que nós defendemos todos os homossexuais, assumidos ou enrustidos”.
Diante da reação, Puccinelli divulgou uma nota naquele estilo consagrado pelos políticos brasileiros de pedir perdão sem pedir com todas as letras. Disse que só estava brincando e que, “na hipótese” de ter ofendido Minc, apresentava suas desculpas. Alguém precisa ensinar ao governador que ele não pode brincar com homofobia e estupro, crime previsto no Código Penal brasileiro. De qualquer forma, não é a primeira vez que Puccinelli se enrosca em metáforas sexuais. No começo do ano, ao falar sobre alianças regionais, causou mal-estar ao dizer que já havia levado todos os petistas de seu estado “para o motel”. Em outra ocasião, ao inaugurar habitações populares, declarou que os novos moradores iriam poder “furunfar à vontade”. Ordinariamente, costuma dizer que há inúmeras pessoas agarradas à sua “região pubiana”, referindo-se aos bajuladores. “Com esse jeito falastrão, Puccinelli tornou-se o rei da pornopolítica. Ele é símbolo de uma elite arrogante e preconceituosa de Mato Grosso do Sul que, felizmente, já está em extinção”, diz o senador Delcídio Amaral, do PT.
A volta com força total
No fim do ano passado, os investidores estrangeiros haviam retirado maciçamente os recursos que tinham aplicado no Brasil. Eles precisavam de seus dólares para cobrir perdas em seu país de origem, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, e também temiam que o Brasil pudesse ser atingido mais intensamente pela crise internacional. Passado o pânico, os dólares começaram a retornar. A principal fonte de capital têm sido os investimentos diretos, aqueles aplicados na expansão de fábricas e na compra de empresas – um termômetro do otimismo dos estrangeiros em relação às perspectivas do país. As exportações, beneficiadas pela rápida recuperação na Ásia, também continuam a irrigar a economia. Agora é a vez de a bolsa de valores retomar importância como fonte de recursos. O retorno dos investidores fez com que o Ibovespa, índice que mede o desempenho das principais ações negociadas na Bolsa de São Paulo, subisse 60% em 2009. Medida em dólares, a alta ultrapassou os 100% – ficou entre as maiores do mundo. O bom momento não deve parar por aí. Motivadas pela renovação do interesse dos estrangeiros, diversas empresas decidiram abrir o seu capital e estrear na bolsa ainda neste ano. Estão previstas seis ofertas públicas de ações, que deverão trazer 8 bilhões de dólares para o país.
Da lista de companhias prestes a lançar ações na Bovespa, o negócio mais significativo será protagonizado pela subsidiária brasileira do banco espanhol Santander. A instituição deverá realizar a maior oferta pública da história do mercado de capitais nacional. A operação poderá atingir 8,7 bilhões de dólares, se a demanda pelas ações do lote inicial, que será leiloado em 8 de outubro, superar as expectativas e os lotes adicionais também forem vendidos. Estima-se que será a maior abertura de capital do mundo neste ano, superando a da estatal chinesa de construção civil CSCEC, que captou 7,3 bilhões de dólares. O Santander pretende crescer no mercado nacional tanto pelo aumento de sua presença física – há planos de abrir 600 agências até 2013 – quanto pela oferta de crédito. A instituição quer ampliar a concessão de empréstimos imobiliários, setor no qual já é líder entre os bancos privados. “A opção do Santander demonstra a confiança do grupo na economia, no consumo interno e no crédito do Brasil”, avalia o professor de finanças da Fundação Getulio Vargas Ricardo Araújo. Assim, o banco se credencia para acirrar a concorrência com os atuais líderes entre os bancos privados, o Itaú Unibanco e o Bradesco. O lançamento das ações contribuirá para a diversificação de opções disponíveis para aqueles investidores interessados em aplicar recursos nos papéis do setor financeiro. “O Santander é uma empresa global, que deverá atrair investidores estrangeiros que ainda não aplicam na bolsa brasileira”, diz o presidente executivo do Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (Ibri), Geraldo Soares.
Exceto por um novo agravamento na turbulência financeira internacional, a afluência de dólares para o país não deverá cessar nos próximos meses. Há a avaliação de que o Brasil passou pelo teste da crise e agora deverá acelerar o crescimento e atrair mais investimentos. Prova disso é que a agência Moody’s comunicou na semana passada que elevou a avaliação do Brasil à categoria de grau de investimento. Nenhum outro país havia sido promovido desde o estouro da crise. “O Brasil saiu-se bem, o que reafirmou a percepção de que as reformas feitas nos últimos anos e a boa condução da política econômica consolidaram nossa estabilidade”, diz o estrategista-chefe do banco WestLB, Roberto Padovani. “Temos também um mercado consumidor enorme. Os investidores, mesmo com menos recursos, olham as opções de países para aplicar e concluem que o Brasil está entre os melhores.”
ISTOÉ
Quem vai lavar essa casa?
Um grupo de baianas lavou, na quarta-feira 23, parte da rampa do Congresso Nacional. Mas a Casa ainda precisa de muita faxina. A mais nova do Senado Federal é a concessão de licença remunerada para funcionários fazerem cursos esdrúxulos – como capoeira, judô e até medicina do sono – que nada têm a ver com as funções legislativas. Nos últimos 15 anos, quase 300 servidores foram estudar no Exterior com financiamento do Senado. Essa prática veio à tona em 26 de junho de 2009, quando ISTOÉ revelou que o funcionário Carlos Alberto Nina Neto, do gabinete do senador Arthur Virgílio (PSDBAM), recebeu salário de R$ 10 mil durante os 18 meses que estudou teatro na Espanha. Não se trata, porém, de um caso isolado.
Depois de admitir sua culpa e devolver o dinheiro, Virgílio pediu um levantamento de todos os servidores que foram estudar no Exterior. Descobriu que a Casa chegou ao cúmulo de pagar especialização em judô no Japão e em capoeira em Singapura. A legislação dá direito ao servidor a tirar, após cinco anos de trabalho, 90 dias de licença remunerada para capacitação. Vinte e três servidores decidiram viajar para aprender línguas. O policial legislativo Tiago Nardelli foi estudar inglês no Havaí porque, segundo ele, lá tem uma das melhores escolas do mundo. A consultora Ana Cláudia Borges foi aprender francês em Estrasburgo e seu colega Vinícius Becker Costa foi para Florença aprimorar o italiano.
Há funcionários dispensados do ponto por até 1.437 dias, como Valéria Rodrigues Motta e o consultor Aldo Assumpção Zagonel. Alguns passam mais tempo no Exterior do que em Brasília. O consultor Tarcisio Dal Maso Jardim, efetivado em 15 de janeiro de 2003, foi fazer doutorado na Universidade de Paris 10, em setembro de 2006, e só voltou em julho de 2009. A servidora Flávia Santinoni Vera pediu várias licenças, algumas sem ônus, como no período de doutorado em direito econômico pela Universidade da Califórnia. “O Senado tem que levar mais a sério as especializações, pois é preciso separar o joio do trigo”, diz Flávia. Porém, se depender do argumento do senador Gilvan Borges (PMDB-AP) tudo vai ficar como está. “Quanto mais longe o curso, maior o choque cultural e a troca de experiências. Isso traz benefícios para o Senado”, defende Borges. Haja vassoura.
Ciro muda o jogo
Especialistas em pesquisas eleitorais são unânimes ao afirmar que a mais de um ano das eleições a intenção de voto atribuída a cada candidato não pode ser considerada consolidada. Essas mesmas pesquisas, no entanto, segundo os analistas, indicam com segurança qual é o desejo do eleitor. Nesse sentido, os resultados da pesquisa CNI/ Ibope divulgada na última semana mostram que a mensagem transmitida aos políticos é muito clara: o eleitor quer novidade. Não necessariamente juventude ou um nome desconhecido, mas sim uma disputa que passe longe das eleições plebiscitárias, entre PT e PSDB, que se repetem no País desde 1994. O crescimento das candidaturas da senadora Marina Silva (PV-AC) e, principalmente, do deputado Ciro Gomes (PSB-CE), hoje com 17% e em segundo lugar, já repercutiram tanto no PT como no PSDB. Em São Paulo, embora ainda se mantenha na liderança da pesquisa, o governador tucano, José Serra, reuniu seu QG para avaliar a queda de quatro pontos percentuais e já admite assumir publicamente a candidatura antes do final do ano.
No PT e entre os partidos aliados do presidente Lula, a queda nas intenções de voto na ministra Dilma Rousseff, também de quatro pontos percentuais, provocou reações mais fortes. A estratégia traçada por setores do governo para os próximos meses será a de desconstruir a candidatura de Ciro Gomes. À frente da operação está o ex-ministro José Dirceu. “Sei que vem muita pancada por aí, preciso ter paciência”, constatou Ciro em entrevista à ISTOÉ na última semana. A intenção dos apoiadores da ministra da Casa Civil é fazer com que o pré-candidato pelo PSB perca musculatura política até o início do próximo ano. “Vamos explorar as incongruências do discurso econômico e político de Ciro”, adianta um petista com trânsito livre no Planalto. A senha foi dada por Dirceu em viagem ao Nordeste durante a semana passada.
Em entrevista para rádios no Ceará, o ex-ministro apontou suas baterias na direção do pré-candidato socialista. “Se o PSB insistir na tese de duas candidaturas na base governista para presidente, vamos fazer o mesmo nos Estados, lançando candidatos do PT onde o PSB tem nomes consolidados”, ameaçou Dirceu numa referência aos Estados do Ceará, Pernambuco e Paraíba. “O Ciro não concorda com a estratégia plebiscitária. Ele quer ser presidente da República com a anuência de Lula. Mas nem o PT nem Lula vão abrir mão da hegemonia do processo”, completou o ex-ministro.
Atos secretos à paulista
O escândalo dos atos secretos não é exclusividade do Senado Federal. Nos últimos três meses, uma investigação de ISTOÉ descobriu que a Mesa Diretora da Assembleia paulista escondeu dos cidadãos 46 decisões administrativas. Para se chegar a este número foram feitas consultas a centenas de páginas do “Diário Oficial Legislativo”, de fevereiro de 2003 a setembro de 2009. Na publicação, a numeração dos atos deve ser sequencial e a publicidade é determinada pelo artigo 37 da Constituição Federal, mas isso não acontece. No apagar das luzes da 14ª legislatura, em março de 2003, poucos dias antes de deixar a presidência da Assembleia, o deputado Celino Cardoso (PSDB), que foi içado ao cargo após a renúncia do titular Walter Feldman (PSDB), presidia a Mesa Diretora da Casa quando nada menos que 27 atos foram escondidos da população entre 6 de fevereiro e 14 de março de 2003. A numeração dos atos salta do número 4 para o 32.
No dia 6 fevereiro, aparece na página 18 o Ato nº 4, que ordena uma nova forma de utilização de transporte oficial pelos deputados e servidores. Na mesma decisão, a Mesa Diretora normatiza o uso de telefones celulares. A partir desse dia até a sexta-feira 14 de março, na véspera da posse dos deputados eleitos em 2002, foi publicado o Ato de nº 32, que dava publicidade à criação do Centro de Estudos da Democracia Brasileira. “Nunca ouvi falar nisso”, defende-se Cardoso. “Vou mandar investigar”, promete. Segundo um ex-presidente da Casa, é certo que tais atos serviram para alimentar o compadrio, esconder contratos de licitações e até tratar sigilosamente o pagamento de diárias de viagens “questionáveis”.
Hildebrando ainda mete medo
Em Rio Branco, é costume se comparar o ex-deputado Hildebrando Pascoal com o insano assassino Jason, do filme “Sexta- Feira 13”. Mas o ex-coronel da PM, preso desde 1999, é acusado de matar mais gente do que o personagem e com uma crueldade de causar inveja ao mais aterrorizante roteiro de cinema. Na quarta-feira 23, Hildebrando foi condenado a 18 anos de cadeia, pela morte do mecânico Agilson Firmino dos Santos, o “Baiano”. A vítima teve braços, pernas e testículos cortados por motosserra e os olhos arrancados antes de ser morto, em 1996, num crime que até hoje apavora a população da capital do Acre.
Somando-se as condenações por narcotráfico, formação de quadrilha e compra de votos, a pena acumulada de Hildebrando sobe para 106 anos de cadeia. Mas, graças ao regime de progressão, o assassino poderá deixar o presídio dentro de três ou quatro anos. O que deixa os parentes das vítimas morrendo de medo. “Estou apavorada, extremamente abalada, temo pela vida dos meus filhos”, diz a esposa de Baiano, Ivanilde Lima de Oliveira. Ela e os filhos Éder e Emanuele foram testemunhas de acusação. Há 13 anos, Ivanilde fugiu com a família para outro Estado, após matarem seu marido e o filho menor.
O clima durante o julgamento foi tenso. Mesmo com o Fórum Barão do Rio Branco protegido por mais de 100 policiais federais, civis e militares, Ivanilde não era a única pessoa amedrontada. “Os jurados pediam para não participar por suposto impedimento legal, mas isso era uma forma de esconder o medo”, disse à ISTOÉ o promotor Leandro Portela Steffen. “O Hildebrando tem um padrão de psicopata e personificou um período de terror no Acre. Ele é um divisor de águas. Da barbárie para a fase da cidadania”, constata Steffen. Quatro jurados choraram no momento em que três promotores exibiram fotografias mostrando o corpo esquartejado de Baiano. O pavor espalhou-se também entre as testemunhas.
Três delas recusaram-se a ir ao tribunal. Responsável pelo dossiê com cerca de 100 mortes causadas pelo esquadrão da morte liderado por Hildebrando, o ouvidor agrário nacional, Gercino José da Silva Filho, preferiu não viajar ao Acre para depor contra Hildebrando temendo as ameaças feitas pelo réu. Como presidente do Tribunal de Justiça do Acre, no final dos anos 90, Gercino foi uma das primeiras autoridades a desafiar o poder do coronel.
Época
Ciro é um aliado que incomoda
Na noite de 19 de agosto, o mundo de Brasília prestava atenção nos movimentos da senadora Marina Silva, que naquele dia deixava o PT, após três décadas de militância. Ninguém reparou na presença de um grande número de autoridades no Palácio da Alvorada, onde o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebia convidados para um jantar em que o cardápio eleitoral estava à mesa. Pelo PT, compareceram a ministra Dilma Rousseff, vários deputados, senadores, ministros e lideranças do partido. Pelo PSB, vieram o deputado Ciro Gomes, o governador Eduardo Campos, de Pernambuco, e outros dirigentes. O encontro foi amistoso e terminou em ambiente de fraternidade. Nas despedidas, estava claro que havia divergência entre os aliados. Convencido de que a transformação da eleição presidencial de 2010 num plebiscito entre seu governo e o de Fernando Henrique Cardoso será a melhor forma de garantir a vitória, Lula defendeu que o conjunto de partidos que apoiam o Planalto entrasse na campanha em defesa de uma candidatura única, da ministra- -chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que ele mesmo escolheu e impôs ao PT.
Com índices de popularidade nada desprezíveis, além de duas campanhas presidenciais no currículo, Ciro deixou claro que também gostaria de concorrer. Argumentou que sua presença poderia ser uma boa estratégia para vencer a oposição. Quando ficou claro que não seria possível chegar a um acordo, todos decidiram adiar a decisão. “Você faz como quiser, e em março a gente resolve”, disse Lula. Ele parecia convencido de que, até lá, seria possível persuadir Ciro a abandonar seus planos presidenciais e entrar na campanha de 2010 como candidato ao governo paulista, num pleito dificílimo contra o tucano Geraldo Alckmin.
Na semana passada, com a divulgação dos números da última pesquisa CNI/Ibope, alguns dos presentes àquele jantar puderam perceber a desvantagem de adiar sua decisão. A pesquisa desenhou um novo panorama para a sucessão:
• como era esperado, Marina cresceu. Com tão pouco tempo de vida útil fora do PT, soma 8% das intenções de voto;
• surpreendentemente, Ciro acumula 17% das intenções de voto, num avanço de 5 pontos em quatro meses;
• Dilma recuou 3 pontos e aparece em empate técnico com Ciro;
• o governador paulista, José Serra, principal candidato no PSDB, ainda lidera a pesquisa, mas perdeu 4 pontos.
É evidente, portanto, que a eleição deixou de se apresentar como um plebiscito entre Dilma e Serra, como desejava o Planalto. A principal novidade é a ascensão de Ciro. “Ele foi o que mais cresceu”, diz Márcia Cavallari, diretora do Ibope. Numa simples simulação, quando o Ibope retirou o nome de Serra entre os pretendentes, Ciro ficou em primeiro lugar, com 25% das intenções de voto, o dobro do governador mineiro, Aécio Neves, segunda opção do PSDB.
A festa dos sem-voto
Não é sempre que a galeria do plenário da Câmara dos Deputados recebe uma plateia grande e barulhenta. Mas, na semana passada, ela estava lotada com uma turma que comemorou a aprovação de uma matéria como se estivesse em um estádio de futebol. Eram suplentes de vereadores, eufóricos com a aprovação de uma emenda constitucional que criou 7.709 novas vagas para vereadores. Existem hoje 51.700 vereadores. A emenda aprovada amplia esse número para 59.400. Ela é fruto de um projeto apresentado para invalidar uma decisão tomada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2004. Na ocasião, o TSE mandou as Câmaras Municipais aplicar um critério de representação proporcional à população. A regra reduziu o número de vereadores. Agora, tudo volta a ser como era. Em cidades com 160 mil habitantes, o número de vereadores subirá de 12 para 21.
Mais vereadores significa mais gastos públicos. Mas os deputados afirmam que isso não vai acontecer porque a emenda reduz o total de recursos que as prefeituras podem passar para o funcionamento das Câmaras Municipais. “Haverá uma economia de R$ 1,4 bilhão por ano”, diz o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), relator da matéria. Na versão dos deputados, mais vereadores vão ter de dividir uma verba menor. Mas a realidade não é essa. Por falta de dinheiro, as prefeituras não passam às Câmaras Municipais tudo o que podem. A Confederação Nacional de Municípios (CNM) calcula que, em 2008, as prefeituras poderiam ter passado R$ 10,4 bilhões para as Câmaras, mas só entregaram R$ 6,3 bilhões. Isso significa que, mesmo com a redução prevista na emenda, há espaço para aumento dos gastos.
O texto da emenda cria ainda uma distorção. Ele abre a possibilidade de os suplentes tomarem posse imediatamente. Mesmo sem ter tido votos suficientes, os suplentes de vereadores querem assumir o mandato na legislatura em curso, por conta de uma canetada. O texto cria uma confusão jurídica, que pode terminar no Supremo Tribunal Federal. O presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto, afirmam que a criação de novas vagas só vale para a próxima eleição, em 2012. “A emenda atual chegou tarde para entrar em vigor na corrente legislatura”, diz Ayres Britto. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, diz que vai recorrer ao Supremo para impedir as posses dos vereadores. Em São Paulo, o procurador regional eleitoral, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, recomendou que os promotores entrem com ações com o mesmo objetivo.
A criação de novas vagas de vereadores melhora a vida dos suplentes, que passarão a ter salário, gabinete, assessores e o direito de exercer o poder. Mas não traz mudança substancial para o eleitor. “Não é o aumento do número de vereadores que vai melhorar a representação”, afirma o cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas. Para os deputados, no entanto, a aprovação da emenda é de grande ajuda. Em 2010, vereadores e prefeitos serão essenciais para as campanhas eleitorais. Um ano antes, nenhum parlamentar quer ficar mal com eles.
Por que o Brasil merece os Jogos
Às 13h30 (hora de Brasília) da próxima sexta-feira, 2 de outubro, o presidente do Comitê Olímpico Internacional, Jacques Rogge, ocupará o púlpito do auditório do Bella Center, um centro de convenções de Copenhague, a capital da Dinamarca. Fará um breve discurso protocolar, em inglês e francês, elogiando as quatro cidades candidatas a sede dos Jogos Olímpicos de 2016 – Chicago, nos Estados Unidos; Madri, na Espanha; Rio de Janeiro, no Brasil; e Tóquio, no Japão. Dirá que qualquer uma das quatro poderia ser escolhida, mas que infelizmente só pode haver um vencedor. Na plateia, provavelmente estarão de mãos dadas, sentados lado a lado, o presidente Lula; o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho; o prefeito carioca, Eduardo Paes; e o secretário-geral da candidatura carioca, Carlos Roberto Osório. Rogge abrirá, então, um envelope branco onde estará escrito o nome da cidade eleita minutos antes, por voto secreto, pelos 106 membros do COI. Há uma grande chance de que diga, então, enquanto vira para as câmeras a face escrita do papel: “O Comitê Olímpico Internacional tem a honra de anunciar que os 31º Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de verão, em 2016, são agraciados à cidade do Rio de Janeiro”. Caso isso ocorra, a festa começará na Praia de Copacabana, e o trabalho de 2.499 dias até a cerimônia de abertura da primeira edição dos Jogos Olímpicos na América do Sul – que envolverá não apenas uma cidade, mas o país inteiro – estará só começando.
A cena descrita no parágrafo anterior pode não ocorrer, mas pela primeira vez na história ela é plausível. Para que isso ocorresse, muita coisa mudou em relação às candidaturas olímpicas anteriores de cidades brasileiras. O último relatório de avaliação, publicado por uma comissão do COI no início de setembro, qualificou o dossiê de Madri como “de qualidade variável”, os de Chicago e Tóquio como “de alta qualidade” e o do Rio de Janeiro como “de muito alta qualidade”. Sutilezas assim fizeram a cotação carioca subir nas bolsas de apostas. Segundo uma média de sete sites de apostadores na tarde da última sexta-feira, Chicago seria a favorita, com 51% de chances de ser escolhida, mas o Rio não estava muito atrás, com 28%, em comparação a 13% de Tóquio e 8% de Madri.
Sites de apostas, porém, erraram quatro anos atrás, quando Londres surpreendeu a favorita Paris e foi escolhida como sede dos Jogos de 2012. Isso ocorre devido ao sistema de escolha do Comitê Olímpico Internacional, que depende das idiossincrasias de seus membros – um clube fechado e eclético que vai do brasileiro João Havelange, de 93 anos, ex-presidente da Federação Internacional de Futebol, à ex-capitã da seleção cubana de vôlei, Yumilka Ruiz, de 31 anos. Há de tudo: um general ugandense, uma princesa de Liechtenstein, um xeque do Kuwait, um empresário de Hong Kong, um ex-campeão de natação da Rússia. Cada um deles recebeu o relatório de avaliação das quatro candidatas, mas votará na sexta-feira segundo a própria consciência.
É aí que os critérios técnicos ficam de lado e entra o lobby junto aos eleitores. Há meses o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, ele próprio integrante do COI, percorre o mundo visitando seus colegas e caçando votos. Havelange, o outro membro brasileiro do COI, valeu-se de sua condição de decano para, segundo ele, assegurar pelo menos 20 votos. Quer assistir aos Jogos no Rio no ano em que completará 100 anos. “Se estiver vivo até lá, será uma felicidade indescritível”, costuma dizer.
Até a delegação que cada cidade enviará a Copenhague se tornou um fator-chave. Creditam-se à presença do primeiro-ministro britânico Tony Blair e do presidente da Rússia Vladimir Putin as vitórias das candidaturas de Londres para os Jogos de verão de 2012 e de Sochi para os Jogos de inverno de 2014, respectivamente. Desde então, virou quase uma obrigação levar as autoridades as mais altas possíveis para massagear o ego dos membros do COI. Lula e o rei Juan Carlos, da Espanha, já garantiram presença. O recém-empossado primeiro-ministro japonês, Yukio Hatoyama, ainda hesitava até a sexta-feira passada. Depois de dizer que enviaria a primeira-dama, Michelle, Barack Obama (que fez carreira política em Chicago) abriu a possibilidade de dar um pulo na Dinamarca na sexta-feira.
Zelaya, o hóspede inconveniente
No trajeto de 400 quilômetros de San Salvador, a capital de El Salvador, a Tegucigalpa, a capital hondurenha, há poucos sinais de que Honduras, um dos menores e mais pobres países da América Central, está em convulsão. Afora uma barreira na fronteira entre os dois países, onde funcionários da imigração hondurenha retêm brasileiros para verificar se o visto foi emitido no Brasil, é possível fazer o percurso, sem contratempos, em cinco horas de carro. Esse é o meio mais fácil de acesso ao país, desde a semana passada, quando os aeroportos foram fechados pelo governo do presidente Roberto Micheletti. Na bem conservada estrada, observam-se ônibus escolares amarelos que transportam alunos de comunidades rurais em paz. Bares e restaurantes também funcionam normalmente.
Os primeiros sinais de anormalidade só aparecem nos arredores de Tegucigalpa, uma cidade que, por sua topografia, cercada de morros, lembra Belo Horizonte. Nas ruas, há a presença ostensiva de soldados armados. Às 19 horas, há um intenso fluxo de transeuntes e carros. São pessoas com pressa para voltar para casa. Duas horas depois, Tegucigalpa já parece uma cidade morta. Não há mais gente nas ruas e os velhos e barulhentos táxis brancos sumiram. É o efeito do toque de recolher, decretado por Micheletti desde que Manuel Zelaya, o presidente deposto por um golpe e mandado para o exílio em 28 de junho, retornou ao país na segunda-feira 21. Após o retorno de Zelaya, que surpreendeu Micheletti, a disputa política transbordou para a violência, com saques a supermercados e confrontos entre simpatizantes do presidente deposto e a polícia. Na repressão às manifestações pró-Zelaya, um operário morreu e dezenas de pessoas ficaram feridas.
Com a volta de Zelaya, o Brasil foi arrastado para o centro desse conflito. Ao retornar a Honduras, Zelaya, com o seu inconfundível chapéu de vaqueiro e seu vasto bigode tingido de preto, procurou a embaixada do Brasil e lá encontrou abrigo, com o aval do governo Lula. A reação do governo Micheletti à presença de Zelaya foi dura. Ele mandou soldados cercar a embaixada, um imóvel de 600 metros quadrados, no bairro Colónia Palmira, uma área nobre de Tegucigalpa. Nos primeiros dias após a chegada de Zelaya, o governo Micheletti, além de usar a força para dispersar milhares de manifestantes que se aglomeraram nas cercanias da embaixada, também cortou a eletricidade e a água da representação diplomática brasileira.
Foi um ataque direto ao Brasil. Pelas convenções internacionais, a sede da embaixada é considerada território brasileiro e inviolável. No fim da semana, o fornecimento de eletricidade e o de água haviam sido restabelecidos, mas a embaixada continuava sob cerco. Na sexta-feira, a embaixada, um sobrado de dois andares, foi tomada por um gás que provocou sangramentos, dores de cabeça e dificuldades de respiração nas 60 pessoas que lá permaneciam em condições complicadas – a maioria sem poder tomar banho e com dificuldades para se alimentar. O objetivo aparente do ataque era forçar a saída de Zelaya, já que os soldados haviam esvaziado lojas ao redor da embaixada. Zelaya disse que foi atingido pelo gás e que pediu calma a seus apoiadores, mas houve manifestações no centro de Tegucigalpa.
O pior já passou. Eis o problema
A crise econômica amenizou e já não transmite mais a mesma sensação de urgência aos líderes das principais economias do mundo. Na semana passada, eles se reuniram em Pittsburgh, Estados Unidos, sem a mesma carga de tensão que marcou os dois últimos encontros do G20 – grupo formado por 19 países mais a União Europeia. Em Washington (novembro de 2008) e Londres (abril deste ano), a crise nos mercados financeiros ainda parecia fora de controle, e a preocupação era conter o desastre. Pacotes de estímulo de trilhões de dólares conseguiram evitar as previsões mais pessimistas. O saldo do encontro de Pittsburgh – que não terminara até a conclusão desta reportagem – parece trazer outro tipo de apreensão. Os principais atores da economia mundial não chegaram a um consenso sobre como regular o sistema financeiro, justamente o cerne da turbulência iniciada com o pedido de concordata do gigante banco americano Lehman Brothers, há um ano. O arrefecimento da crise, paradoxalmente, pode ter contribuído para dificultar essa tarefa. Sem uma regulação eficaz, será impossível lidar com a ameaça de novos vendavais financeiros e, portanto, aumentará a probabilidade de novas crises futuras.
Durante a crise do ano passado, ficou evidente o grau de interconexão entre os bancos como o Lehman, as seguradoras como a AIG, as empresas que emitem papéis para financiar suas atividades e até fundos usados pela população e tidos como seguros para a poupança. A falta de um sistema que permitisse às autoridades detectar riscos nessa complexa teia de relacionamentos e tomar ações capazes de proteger o interesse público foi vista como uma das principais causas do descontrole que se apoderou do sistema financeiro.
Num jantar na quinta-feira 24, os participantes da cúpula do G20 fizeram afirmações genéricas. Disseram que buscarão uma “recuperação sólida” e evitarão as “fragilidades financeiras” que levaram à turbulência. Mas não chegaram a um acordo sobre a regulação financeira, em escala regional ou global. “O que mais importa para as nações emergentes e também pobres é uma instituição que garanta um mínimo de estabilidade financeira e sirva como última fonte de recursos quando houver desequilíbrios”, afirma Mauricio Cárdenas, presidente da Associação Econômica da América Latina e Caribe e pesquisador do Instituto Brookings, de Washington. A primeira pergunta é a mais óbvia: quem faria esse papel regulador? Os europeus fizeram uma proposta: às vésperas de desembarcar em Pittsburgh, anunciaram que, a partir do ano que vem, um Comitê Europeu de Risco Sistêmico será criado para acompanhar as operações dos bancos no bloco e emitir alertas ou recomendações quando um deles der sinais de fragilidade. A decisão ainda depende da aprovação do Parlamento Europeu, mas já foi encampada por Alemanha, França e Reino Unido. As três potências europeias viam na proposta uma forma de pressionar os outros integrantes da UE e do G20 a criar uma nova instituição de supervisão global, mas não convenceram os EUA.
Os americanos acreditam que o Fundo Monetário Internacional (FMI) seja o organismo ideal para a tarefa. Pela proposta do presidente americano, Barack Obama, o FMI deveria fazer recomendações semestrais aos membros do G20 sobre países com desequilíbrio na cotação da moeda ou dependência excessiva de exportações. Obama gostaria que grandes potências exportadoras, como China, Japão e Alemanha, se comprometessem a estimular o mercado doméstico e, consequentemente, a diminuir o volume de poupança. E os EUA fariam o contrário: gastariam menos para conter a dívida pública. Mas Obama não fez nenhuma proposta concreta sobre a regulação de bancos e seguradoras – provavelmente porque nem o Congresso americano chegou a um consenso a respeito disso. Um projeto da Casa Branca que dá ao Fed, o banco central americano, o poder de ser um regulador de riscos no mercado financeiro está empacado no Congresso. A medida poderia detectar a tempo grandes empresas em dificuldade e evitar os gastos para salvá-las da falência.
Capitã Hildelene
Quando o navio-tanque Carangola zarpar do Rio de Janeiro nesta semana, terá no comando a paraense Hildelene Lobato Bahia. Aos 35 anos, ela é a primeira mulher comandante da Marinha Mercante brasileira – e uma das raríssimas com essa função no mundo. Com pouco mais de 1,50 metro de altura, Hildelene será a autoridade máxima do navio de 160 metros de comprimento e 18 mil toneladas. Sob suas ordens, uma tripulação de 26 pessoas, a maioria homens. Nessa primeira viagem, seu destino é Manaus. “Estar à frente de um petroleiro permite que outras mulheres venham atrás”, diz Hildelene.
Nascida em Icoaraci, a uma hora de Belém, Pará, ela sempre estudou em colégios públicos. Boa aluna, conseguiu bolsa integral numa escola particular e se preparou bem para o vestibular. Ingressou na Universidade Federal do Pará, onde cursou ciências contábeis. Sua entrada na Marinha aconteceu por acaso. Ela diz ter feito a prova para a Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (Efomm), em 1997, apenas para acompanhar um irmão. Ele foi reprovado. Hildelene passou. Ela fez parte da primeira turma feminina do Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar (Ciaba), em Belém. Com outras 13 alunas, precisou aprender a quebrar a resistência inicial dos colegas. “Eles estavam acostumados ao universo exclusivamente masculino da Marinha. Tinham ciúme de sermos assediadas pela imprensa”, diz.
Em 2000, já formada, Hildelene entrou na Transpetro, operadora da maior frota de petroleiros da América do Sul. Foi onde, na prática, aprendeu o ofício. Passados cinco anos, foi convidada a assumir a função de imediato, o segundo posto na hierarquia de um navio. Ela foi também a primeira brasileira a chegar a esse posto. Em agosto do ano passado, foi a primeira mais uma vez, ao receber a Carta de Capitão de Cabotagem. “Foi um momento muito especial, porque essa carta é um certificado de eficiência, significava que eu estava apta a comandar um navio”, diz.
Agora, na primeira viagem como comandante, ela tem as decisões em suas mãos. “Hoje, vejo que a resistência e o preconceito realmente ficaram para trás”, afirma. Pelo menos, segundo ela, no Brasil. Hildelene coleciona histórias de olhares estranhos sobre sua figura feminina em funções de comando. Numa delas, numa viagem a Cingapura como imediata, parou em Bahrein, no Golfo Pérsico, para que o navio fizesse um reparo. “A imagem de uma mulher liderando a embarcação surpreendeu os muçulmanos.” Há cinco anos, Hildelene é casada com Paulo Roberto de Moraes, de 27 anos. Os dois se conheceram no mar. Ela era piloto, ele estagiário. A rotina de Hildelene não é fácil para o casal. Ela passa 120 dias embarcada, alternados com apenas 56 em terra firme. “Tentamos aproveitar ao máximo o tempo de folga”, diz Hildelene. Em dois anos, eles pretendem ter um filho. “Sei que vou conseguir conciliar a casa e o trabalho”, afirma.