O Brasil está vivenciando, nos últimos dias, manifestações populares de uma magnitude que não se via em décadas. O povo sai às ruas novamente reivindicando o atendimento de demandas da cidadania: redução nas tarifas de ônibus, melhoria dos serviços públicos, fim da impunidade dos mandatários corruptos. Não é impossível observar nas passeatas cartazes que se utilizam de uma retórica revolucionária e anticapitalista. Mas essa não é a tônica principal dos protestos: a maior parte da pauta se concentra em demandas típicas da pós-modernidade. Os manifestantes expressam, também, a insatisfação diante de um tecido social carregado de violência. Ao mesmo tempo que diz “consuma para ser respeitado”, a sociedade nega-lhe o direito de consumir.
As manifestações dos últimos dias expressam também, e principalmente, um profundo descontentamento com a forma atual da democracia representativa. Os jovens que ocupam as ruas não se sentem mais representados pela institucionalidade vigente. Isso é próprio, penso eu, daquilo que o filósofo polonês Zygmunt Bauman chamou de “modernidade líquida”: saímos da modernidade sólida, forjada pelo proletariado industrial e pelas máquinas de ferro bruto da primeira revolução industrial, e caímos nesse momento de fluidez: fluidez das relações humanas, das formas organizativas, da própria sociedade e é claro, dos movimentos sociais. É preciso rechaçar, entretanto, o antipartidarismo manifestado por alguns dos manifestantes. Caçar o direito de organização nos partidos políticos é próprio de regimes fascistas e ditatoriais.
O comentário geral de que as manifestações “não teriam pautas” é, na minha opinião, impreciso: o movimento tem sim reivindicações, mas estas são fluidas, descentralizadas. Não foram ainda, e talvez nem o sejam, organizadas em uma pauta fechada, a ser discutida entre uma liderança fixa e o poder instituído. Mesmo assim, o movimento vem dando mostras de sua capacidade de influenciar a agenda política nacional. Foi o que aconteceu na noite da última quarta (26), quando a Câmara enterrou a PEC 37 e aprovou a destinação dos royalties do petróleo.
Este é um momento de crise, mas é também uma oportunidade ímpar, uma oportunidade que não se manifestava há vinte anos, de oxigenarmos e revigorarmos a nossa democracia. É preciso, no dizer feliz do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, democratizar a democracia. Os partidos e o próprio poder público precisam incorporar novas formas de participação da cidadania, e também aprimorar e intensificar o uso dos mecanismos de democracia participativa já existentes. A democracia é o único regime que pressupõe, para sobreviver, a existência de consciência política da parte dos envolvidos. Sem isso, teremos um arremedo de democracia, e não um regime democrático. Mais do que representação, que é o paradigma da nossa democracia atual, as pessoas anseiam por participação, para que possam ser verdadeiramente sujeitos dos processos decisórios e de seus destinos.