Depois de chamar o presidente Michel Temer (MDB) de “leviano, inconsequente e calunioso”, o procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, da força-tarefa da Operação Lava Jato, recebeu o apoio de mais de 400 operadores do Direito, entre colegas procuradores, promotores e magistrados, em nome da liberdade de expressão. Por meio de manifesto (íntegra abaixo), o grupo se antecipa ao julgamento, a ser realizado hoje (terça, 15), de um processo disciplinar aberto no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) contra Carlos Fernando em razão do que ele escreveu sobre Temer nas redes sociais (reprodução abaixo).
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Em 28 de junho de 2017, o procurador escreveu no Facebook que o presidente era “leviano” ao fazer acusações sem prova contra a Procuradoria-Geral da República (PGR). Trata-se de referência aos discursos em que Temer, fustigado por denúncias de corrupção, por mais de uma vez foi a público acusar membros da PGR de desvios como recebimento de valores em processos de delação premiada. Na época, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou duas denúncias contra o emedebista e o acusou de corrupção, obstrução de Justiça e participação em organização criminosa.
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“Temer foi leviano, inconsequente e calunioso ao insinuar recebimento de valores por parte do PGR. Já vi muitas vezes a tática de ‘acusar o acusador’. Lula faz isso direto conosco. Entretanto, nunca vi falta de coragem tamanha, usando de subterfúgios para dizer que não queria dizer o que quis dizer efetivamente. Isso é covardia e só mostra que não tem qualificação para continuar no cargo”, criticou Carlos Fernando.
“Do jeito que vai tocar esse país é capaz de atuais acusados pela Lava Jato, também não qualificados para o cargo, consigam apoio da sociedade para voltar para a Presidência. É só lembrar que o governo incompetente de José Sarney levou ao desastre do governo [Fernando] Collor”, acrescentou o procurador, que pode receber punições como advertência verbal, suspensão das funções ou até sofrer processo que culmine em exoneração do cargo.
No “Manifesto pela liberdade de expressão”, os procuradores, promotores e magistrados fazem alusão a pensadores e citam leis sobre direito à livre manifestação, sem citar o presidente e apenas sugerindo seu nome. “É temerário pretender regular a liberdade de manifestação dos membros do Ministério Público pela via disciplinar punitiva. Diante da acentuada complexidade do tema, com dimensão no marco internacional de proteção de garantias, é preciso antes deixar que a questão, no plano dos direitos, amadureça na esfera apropriada para a definição de seus reais contornos: o Parlamento e a Suprema Corte, intérprete última da Constituição”, diz trecho da carta de apoio.
Confira a íntegra do manifesto:
Manifesto pela liberdade de expressão
Grande polemista, Gregório de Matos Guerra (1636-1696) entrou para a história da Literatura brasileira. O maior poeta satírico do período colonial recebeu do Senado da Câmara da Bahia o cargo de procurador. Depois foi desembargador do Tribunal da Relação Eclesiástica da Bahia. Satirizou os costumes do povo e a alta classe baiana.
Sua poesia era corrosiva e genial. Pela sua incisividade e franqueza, em 1685 foi denunciado ao tribunal da Inquisição por ter supostamente difamado Jesus Cristo e por faltar com a reverência devida a uma procissão. Como era de esperar naquele tempo, foi degredado para Angola.
Imaginavam assim calá-lo.
Passados quatro séculos, a questão da liberdade de expressão permanece candente. Embora consolidada na cultura ocidental, do ponto de vista abstrato, a sombra do autoritarismo, sob vários mantos, ainda se projeta sobre a liberdade de pensamento.
Sabem os inimigos dissimulados da República que calar uma voz dissonante é o atalho mais curto para matar a democracia e seus valores.
É nesse contexto que, após a intensificação das revelações da Lava Jato e, em boa medida, por causa dela, vê-se uma tendência de certos atores da vida nacional de provocar órgãos de controle para restringir a liberdade de expressão de procuradores e promotores de Justiça, mas também de juízes e policiais. Um respeitado membro do Ministério Público brasileiro corre risco de ser submetido a pena disciplinar de censura pública, apenas por dizer o que pensa.
A atuação destemida e exemplar do procurador regional da República Carlos Fernando dos Santos Lima tem sido uma constante ao longo de quase 30 anos de Ministério Público.
Seu tirocínio e sua verve têm servido a um propósito de interesse público e a uma finalidade cívica. Ao chamar a atenção de todos os cidadãos para os terríveis males que a corrupção representa para o País e para os direitos do povo, o procurador Santos Lima também exerce um ministério público, absolutamente compatível com as funções que desempenha no sistema de Justiça brasileira.
Diferentemente do que se acredita, o Ministério Público não fala apenas nos autos. Como parte, deve defender também suas opiniões oficiais nos vários ambientes de debate público, eis que todos eles são legítimos conforme a Constituição e são também necessários à promoção do bem comum e da Justiça.
Opiniões são ouvidas pelos membros do Parlamento e merecem a reflexão dos demais integrantes dos poderes da República.
Opiniões são consideradas pelos cidadãos que têm nessas autoridades seus servidores, os quais lhes devem contas dos seus fazeres e afazeres.
Calar um membro do Ministério Público é impor uma mordaça a todos os seus integrantes. Silenciar a livre expressão do pensamento seja de quem for impede a evolução das ideias e contribui para sedimentação de vícios.
A crítica franca e aberta é motor do progresso. E o progresso, como se diz, é uma locomotiva que não pode ser parada.
Devido às suas dimensões transnacionais e à sua evidente complexidade, nos campos social, político e econômico, o caso Lava Jato tem na comunicação social um dos seus mais importantes pilares.
É preciso comunicar as ações de procuradores, policiais e auditores, agir de modo transparente, rebater críticas públicas e refutar ataques. Esses sempre virão e é fundamental que haja o contraponto, tão louvável mediante o debate público pela imprensa tradicional e no ciberespaço.
O diálogo de funcionários públicos, inclusive de procuradores e promotores, com a sociedade também nas redes sociais é um ganho civilizatório.
Um promotor ou procurador não se despe dessa condição quando vive sua vida privada, nem deixa de ser cidadão quando age nas suas lides públicas.
Os membros do Ministério Público não têm meia cidadania.
A liberdade de expressão é um direito universal que está protegido pelo art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e pelo inciso XIV do mesmo artigo, que assegura a todos o acesso à informação.
Tal é a dimensão constitucional desse direito civil e dessa prerrogativa de participação política, que o artigo 220 da Constituição dispõe que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na Constituição”, o que inclui a previsão de que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço àplena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV, sendo ao fim vedada “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
É temerário pretender regular a liberdade de manifestação dos membros do Ministério Público pela via disciplinar punitiva. Diante da acentuada complexidade do tema, com dimensão no marco internacional de proteção de garantias, é preciso antes deixar que a questão, no plano dos direitos, amadureça na esfera apropriada para a definição de seus reais contornos: o Parlamento e a Suprema Corte, intérprete última da Constituição.
Este MANIFESTO não é a defesa de um procurador da República, mas da liberdade de expressão de todos os membros do Ministério Público. Embora integrantes de uma magistratura de pé – e por isso mesmo – os membros do Ministério Público devem estar prontos a falar em prol dos elevados interesses cuja defesa a Constituição lhes impõe. Respeitar a liberdade de expressão dos cidadãos, servidores públicos ou não, consiste em aceitar, sem horror nem assombro, que o mais rigoroso adversário pronuncie em voz alta até aquilo que consideramos vil e detestável. Já dizia Rosa Luxemburgo no fim do século XIX que a liberdade só tem real valor e utilidade se atende ao interesse do que pensa diferente. Dar a voz apenas àqueles com quem concordamos não define uma conduta republicana e democrática; define talvez as práticas de um regime absolutista e autoritário. A beleza da democracia está em dar espaço, vez e voz a quem nos incomoda, a quem nos instiga com o alfinete da dúvida, a quem nos provoca com o argumento afiado, a quem nos traz perplexidade com a palavra cortante.
A liberdade de expressão dos homens e das mulheres que se dedicam à vida pública não é menor do que as dos cidadãos em geral, não custa repetir. Esta é uma ideia-força que deve ser enunciada e compreendida. Promotores e procuradores estão proibidos de dedicar-se a atividades político-partidárias, mas não são privados de opinião sobre a vida da pólis em que vivem, seja o seu torrão ou o seu País. Em outras palavras, como qualquer cidadão, têm eles direito à opinião e a expressão como atitudes políticas, no sentido mais nobre deste adjetivo, em condutas de inegável conteúdo cívico, não ligadas a quaisquer partidarismos.
Na obra A Liberdade, de 1859, John Stuart Mill (1806–1873) foi categórico: a livre expressão das ideias, falsas ou verdadeiras, não deve ser temida e o direito de opinião não pode ser suprimido ou cerceado por considerações econômicas ou morais, mas somente quando cause dano injusto. Sustentava ele que sem a plena liberdade não pode haver progresso científico, jurídico ou político. Somente a livre discussão das ideias pode levar à evolução da sociedade. Essas ideias estão hoje cristalizadas no Direito Internacional, inclusive para as magistraturas. Entre os Princípios Orientadores da Função dos Magistrados do Ministério Público, aprovados no Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Havana em 1990, está o direito de livre expressão do pensamento. A Regra 8 declara que “Os magistrados do Ministério Público têm, como os restantes cidadãos, liberdade de expressão, de crença, de associação e de reunião.
Têm, nomeadamente, o direito de tomar parte em debates públicos sobre a lei, a administração da justiça e a promoção da protecção dos direitos do homem”. Quer seja nos escritos, nos auditórios ou na grande praça digital, a voz dos cidadãos não pode ser cerceada. Promotores de Justiça, procuradores da República e juízes são cidadãos e não têm menos direitos do que os integrantes da sociedade a que servem.
O Conselho Nacional também tem liberdade de escolher o caminho a seguir. Mas, para os órgãos de Estado, essa rota nunca pode afastar-se das garantias individuais de que depende a existência de uma democracia. As escolhas do CNMP também marcarão sua existência e o maior ou menor respeito que merecerá da sociedade e dos membros da instituição sujeita a seu controle externo. Ser a favor da liberdade de expressão significa tolerar a livre emissão e circulação das opiniões que desprezamos ou das quais discordamos, ainda que veementemente.
A discordância é a engrenagem que promove avanços sociais. O debate público de ideias forma o saudável contraditório que promove a evolução política, jurídica e social. Ainda que se discorde do que o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima diz, a crítica, mesmo ácida, desde que não progrida para a vulgaridade ou busque inspiração em pura má-fé, é constitucionalmente protegida, sob pena de se estabelecer uma mordaça aos membros do Ministério Público, sem lei e sem franquia constitucional ou convencional.
Nas democracias, o direito à crítica é uma forma irrefreável de controle social dos governantes. A história já mostrou que punir pessoas por suas ideias e palavras, ainda que excêntricas ou incisivas, é um erro de consequências trágicas. Ninguém deve ser punido por ser ácido ou agudo nas críticas. Ninguém deve ser punido pelo que pensa nem por expressar honestamente esse pensamento, sobretudo quando há nítido interesse público no debate de pontos de vista fundamentais à implementação do rule of law, como direito de todos e objetivo último da Nação.
Não se trata apenas de proteger a liberdade de expressão do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima ou de outros membros que tenham feito uso da mesma franquia constitucional, mas de assegurar a voz pública do Ministério Público e de seus integrantes, como profissionais e cidadãos, na construção de uma democracia mais sólida, e, em consequência, da voz de juízes e de integrantes de outras categorias profissionais que, ao longo deste intenso processo histórico dos últimos 40 anos, vêm contribuindo para a construção de um Estado de Direito inclusivo, garantidor e probo no Brasil. Que a decisão do CNMP neste importantíssimo precedente, crucial para sua própria história, revele seu apreço pela liberdade e pelo valor da livre circulação das ideias. Que o tempo definido outrora por Carlos Drummond de Andrade tenha mesmo encontrado o seu fim em 1984.
Como dizia o poeta, a liberdade que desperta consciências não pode ser defendida apenas com discursos anódinos, quando sofre o ataque de metralhadoras ou de mordaças.
Palavras são os tijolos da construção do progresso e da liberdade.
ASSINAM ESTE MANIFESTO PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DOS JUÍZES BRASILEIROS
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