É um bocado curioso que o personagem-chave de “O Leopardo”, de Giuseppe di Lampeduza, talvez o mais importante romance político da história, se chame Tancredi. No romance de Lampeduza, Tancredi é a chave para o casamento da velha aristocracia com a burguesia que ascende. Troque-se o “i” do nome italiano pelo “o” do quase homônimo brasileiro, e temos Tancredo… Neves… E o nosso casamento dos velhos grupos políticos com os novos que surgem. “Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”…
“O Leopardo” conta a história de Fabrizio de Córbera, príncipe de Salina, que carrega consigo o epíteto de “Il Gattopardo” (O Leopardo), que dá título ao romance. No final do século 19, com a unificação da Itália, O Leopardo perderá seu principado. E, com isso, corre claramente o risco de perder seu perder político. Mas O Leopardo tem um sobrinho, Tancredi, que, apesar da linhagem nobre, incorporou-se às tropas de Giuseppe Garibaldi para conseguir a unificação italiana. O que faz então O Leopardo? Promove o casamente de Tancredi com Angelica, a filha de Dom Calegaro, integrante da nova burguesia que ascende com a unificação. Tancredi, então, diz a famosa frase: “Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”…
Leia também
Veja o comentário em vídeo:
A alegoria contada em “O Leopardo” é o grande exemplo de como se dão os arranjos políticos, que promovem as mudanças, “ma non tropo”, recorrendo ao italiano original do romance. Como aconteceu no início da redemocratização do país, o fim da ditadura só se tornou possível e estável porque o nosso Tancredo Neves promoveu, como o Tancredi do romance, o casamento de parte importante das velhas forças que amparavam o regime militar com as novas forças que ascendiam nos estertores da ditadura. Tancredi casava-se com Angelica, Tancredo com José Sarney.
Trinta e sete anos depois de Tancredo Neves e José Sarney promoverem o casamento que deu fim à ditadura militar, o Brasil enfrentou uma renhida disputa entre a manutenção da sua democracia e o risco real de retrocesso autoritário. A democracia venceu por uma margem apertadíssima. O que ainda dá ânimo para que radicais renitentes rezem e marchem em acampamentos patéticos pelo país.
È Lula agora quem assume o papel de Tancredi, a promover o casamento entre o novo e o velho para fazer com que o país que muda possa permanecer como está. Na manhã desta quarta-feira (9), ele esteve na residência oficial do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Lira é o principal líder de fato da base de sustentação do presidente que se despede e ameaçava a democracia, Jair Bolsonaro. Talvez tenha se tornado mais poderoso que o próprio Bolsonaro que foi cedendo a ele cada vez mais nacos de poder refém que era dos mais de cem pedidos de impeachment que Lira manteve guardados na sua gaveta.
Lira quer se manter no ano que vem presidente da Câmara. Provavelmente Lula não irá se opor a isso. Lira quer manter o seu orçamento secreto. Lula talvez altere de forma negociada isso, mas sem retirar completamente a principal ferramenta de poder de que Lira hoje dispõe. Em troca, Lira deve garantir a Lula as condições de governabilidade que ele precisa para avançar e para manter no país a democracia. É o novo casamento do velho com o novo. “Se quisermos que tudo continue, é preciso que tudo mude”…