A célebre alegoria da criatura que se volta contra o criador está, uma vez mais, em cartaz na política brasileira. Protagonistas dessa trama, os ex-presidentes Lula e Dilma tentam escapar do rigor de leis às quais deram vida na condição de chefes do Executivo.
Condenado a mais de 12 anos de prisão pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), Lula está ameaçado de não disputar as eleições deste ano por causa da Lei da Ficha Limpa, sancionada por ele em 2010.
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Destituída do poder em um processo de impeachment, Dilma teve sua situação política e criminal agravada pela divulgação de trechos de depoimentos de delações premiadas. O mecanismo, que garante vantagens como o perdão ou a redução da pena para o acusado que colaborar com as investigações, foi regulamentado em 2013 com a assinatura da então presidente.
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Embora questionem com veemência as decisões do juiz Sérgio Moro e do TRT-4 que o mandam para a prisão, Lula e o PT não atacaram até o momento a Lei da Ficha Limpa, que proíbe a candidatura de políticos com condenação em órgãos colegiados, entre outras coisas. Só o PCO, pequeno partido de extrema-esquerda que apoia o petista na luta pelo seu direito de se candidatar, defende abertamente a revogação da Ficha Limpa.
O deputado Paulo Pimenta, líder do PT na Câmara, defendeu que as leis sancionadas pelos ex-presidentes petistas reforçam o compromisso contra a corrupção. Para ele, o problema são as interpretações que estão sendo usadas como mecanismos de perseguição. “Não temos qualquer questão de princípio com as leis em discussão. A questão não são as leis, e sim a aplicação delas”, disse o líder petista ao Congresso em Foco. De acordo com Pimenta, parte do órgãos do poder Judiciário têm se “apropriado” da legislação e está “reinterpretando a vontade do legislador”.
Ainda como presidente, Dilma trocou o entusiasmo pelo instrumento pela irritação depois que virou alvo das delações. Em outubro de 2014, dias antes de se reeleger, a presidente saiu em defesa das colaborações, que, àquela altura, já sacudiam a Operação Lava Jato e a política brasileira, mas que ainda não a haviam atingido diretamente.
“Para obter as provas, a Justiça e o Ministério Público valeram-se da delação premiada, um método legítimo, previsto em lei. E muito útil para desmontar esquemas de corrupção. Na Itália, contra a máfia, funcionou muito bem”, disse em entrevista à Carta Capital.
Em julho de 2015, após ser acusada pelo empresário e delator Ricardo Pessoa, da UTC Engenharia, de ter recebido dinheiro da empreiteira para a campanha eleitoral em troca de contratos na Petrobras, a então presidente foi dura na crítica à lei. E misturou o conceito de delação, previsto na lei, e os casos de traição em regime de exceção, como a ditadura militar.
“Em Minas (Gerais), na escola, quando você aprende sobre a Inconfidência Mineira, tem um personagem que a gente não gosta porque as professoras nos ensinam a não gostar dele. Ele se chama Joaquim Silvério dos Reis, o delator. Eu não respeito delator. Até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é. Tentaram me transformar em uma delatora; a ditadura fazia isso com as pessoas presas. E eu garanto para vocês que eu resisti bravamente, até em alguns momentos fui mal interpretada, quando eu disse que, em tortura, a gente tem de resistir, porque senão você entrega seus presos. Então, não respeito nenhum”, afirmou em 1º de julho de 2015, após deixar um evento em Nova York.
Após ter deixado o Palácio do Planalto, Dilma enfrentou as duas delações que mais lhe trouxeram complicações na Justiça: a dos ex-executivos da Odebrecht e a do casal de publicitários João Santana e Mônica Moura, que fizeram as suas duas campanhas eleitorais. Em todos os casos, a petista foi acusada pelos delatores de ter conhecimento do esquema de corrupção montado na estatal e outras estatais com o objetivo, segundo eles, de levantar dinheiro para as eleições do PT e aliados. Denúncias rebatidas por ela.
Pimenta afirma que a lei das delações premiadas sancionada por Dilma nunca foi regulamentada, o que abre margem para interpretações conflituosas. Segundo ele, uma delas é a possibilidade de negociar a pena a partir da delação, o que faz com que os órgãos, especialmente o Ministério Público, ajam “à revelia da lei”.
De lá para cá, centenas de delações premiadas foram reconhecidas pela Justiça. A maioria tem negociações feitas nos governos Lula e Dilma em suas narrativas. Além de petistas, também estão entre os mais atingidos pelas delações políticos do PMDB, do PP e do PSDB.
Dias antes de sancionar a Lei de Organizações Criminosas, que introduziu a colaboração premiada no ordenamento jurídico brasileiro, Dilma avalizou a Lei Anticorrupção. Entre outras inovações, a lei permitiu o fechamento dos acordos de leniência (espécie de delação para empresas) por parte da Controladoria-Geral da União (CGU). O instrumento também foi utilizado por empreiteiras que admitiram a prática de crimes, como doações eleitorais via caixa dois em troca de favorecimento, para escapar de multas e outras punições. Antes, em 2011, Dilma já havia assinado a Lei Antitruste, que regulamentou acordos de leniência firmados por tribunais.
Criada a partir de um projeto de lei de iniciativa popular idealizado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), a Lei da Ficha Limpa reuniu 1,6 milhão de assinaturas. A proposta enfrentou a resistência inicial do Congresso, que praticamente ignorou o projeto em sua chegada. Mas o cenário mudou com o crescimento da pressão popular. Por fim, acabou aprovado em maio de 2010 por unanimidade na Câmara e no Senado.
Críticos da lei alegam que a norma fere a soberania do eleitor de escolher seus candidatos e atenta contra o princípio da presunção da inocência, já que o candidato fica inelegível sem a Justiça ter concluído seu processo. Desde sua implantação, magistrados têm divergido sobre a forma de aplicação da lei, o que deixa incerto o cenário em relação a Lula.
Idealizador da Ficha Limpa, o ex-juiz eleitoral Márlon Reis defende a aplicação da lei a quem for, inclusive o ex-presidente Lula. “Se há alguma crença de injustiça no caso dele, ela deve ser dirigida à Justiça Criminal, não à Lei da Ficha Limpa, que não tem nada a ver com isso. A Lei da Ficha Limpa é abstrata, não foi pensada para atingir ninguém em particular. Ela precisa ser defendida com afinco, porque chama atenção para a necessidade de mudança de comportamento na política”, disse ao Congresso em Foco.
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