Um processo judicial de mais de 3.500 páginas no Fórum de Campinas (SP) e que se arrasta há seis anos traz uma grave acusação: a de que o banco dirigido pelo segundo homem mais rico do Brasil aplicou um golpe contra uma família de lojistas da cidade. Empréstimos que antecipavam vendas feitas no cartão de crédito pela loja eram baseados em contratos assinados em branco. Depois, por ordem da Justiça, como depôs uma ex-gerente da instituição financeira, os documentos foram assinados com data retroativa. A surpresa vinha aí: as taxas cobradas eram o dobro do valor combinado com o cliente, segundo a acusação.
Laudo pericial entregue à Justiça aponta que, de devedora, a família de lojistas na verdade é credora do Banco Safra, de propriedade do banqueiro Joseph Safra, cuja fortuna é estimada em US$ 13,8 bilhões, atrás apenas do empresário de energia Eike Batista, com US$ 30 bilhões, segundo a revista Forbes.
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Procurada pelo Congresso em Foco, a instituição financeira preferiu o silêncio. Mas, em defesa apresentada à 3ª Vara Cível de Campinas, o banco disse que o fato de existirem contratos em brancos, preenchidos só depois e com taxas de juros diferentes, não torna nulos os documentos. “Nestes dias de pós-modernidade, (…) as condições contratadas permanecem num espaço cibernético ou virtual”, afirma o Safra à Justiça. Na defesa, o banco disse que só depois de as condições serem acertadas com o cliente é que o consumidor descobre as taxas “efetivamente praticadas”.
A Federação Nacional de Bancos (Febraban) afirmou ao site que eventuais golpes cometidos pelas próprias instituições financeiras não são a prática do mercado bancário.
A confusão está exposta em 18 processos judiciais que tramitam no Fórum de Campinas, entre ações de execução, de busca e apreensão de bens e de revisão de contratos, movidos pelo banco e pela família Gobbo, de tradicionais lojistas da região. Um inquérito policial chegou a ser aberto, mas a investigação foi arquivada.
Publicidade70 anos no mercado
A história começa por volta de 2003 e envolve as lojas de calçados Bootco, que pertencem à família Gobbo. Eles atuam no mercado há 70 anos e têm sete lojas, que depois se tornaram franquias. O principal sócio, o empresário Carlos Gobbo, preside o Sindicato dos Lojistas do Comércio de Campinas e Região. Seu filho Carlos Augusto Gobbo, o Guto, cuida do design dos sapatos e, agora, dos processos judiciais que ajudam a contar o problema.
Ele disse ao Congresso em Foco que a então gerente do banco Safra da agência do bairro Cambuí, Marilene Celani Spadaccia, procurou a rede de lojas oferecendo um empréstimo interessante e comum no sistema financeiro, o “crédito fumaça”. Toda vez que um cliente comprasse sapatos com cartão de crédito de maneira parcelada, a Bootco não precisaria esperar a administradora de cartões depositar cada prestação paga pelo consumidor. Os empresários poderiam antecipar a venda com banco, pagando uma taxa que girava entre 2% e 2,5% ao mês.
Papel em branco
No início, tudo era transparente e por escrito. “As taxas negociadas tinham os contratos devolvidos assinados. Depois de alguns meses, a coisa começou virar”, afirmou Guto, em entrevista. Com o grande volume de vendas de todas as lojas, a sistemática mudou. O banco entregava um formulário com os pedidos de empréstimo à loja, anotando a lápis, na parte de cima do documento, o valor e a taxa de juros a ser cobrada. Os lojistas assinavam o papel em branco e entregavam ao Safra “na confiança que tinham” nas gerentes Marilene Spadaccia e Denise Artem, conforme escritura declaratória da própria Denise, que integra um inquérito policial. O correto seria que, de tempos em tempos, voltassem com os contratos preenchidos e assinados pelo banco, mas isso não aconteceu mais.
O próprio Safra admite. A papelada era assinada em branco pelo cliente, mas os contratos não voltavam assinados e com os valores cobrados, para conferência. Pior, as taxas variavam, fugindo do combinado. “É possível que tenham ocorrido variações nas taxas de juros combinadas, porém, essas variações podem ocorrer tanto para mais quanto para menos”, atestou ao 13º Distrito Policial de Campinas a então gerente da agência do Safra, Marilene. Hoje fora do banco, a gerente não quis conversar com Congresso em Foco e desligou o telefone abruptamente quando soube do assunto da entrevista.
Taxas dobradas
O motivo da sonegação da papelada, afirmou Guto, eram as elevações das taxas de juros, mais que o dobro dos 2,5% acertados. “Tem contrato que tem até 5,29%. Sempre foi mais do que 4%”, afirmou ele. Não havia como reclamar porque não havia contratos preenchidos. De acordo com Guto, quando começava a exigir a documentação de volta, a empresa passava a sofrer represálias, como a negativa de crédito, o que atrapalhava o caixa da rede de lojas. Sem o dinheiro da antecipação, o Safra oferecia outras modalidades de empréstimo, ainda mais caras como a conta-garantia, uma espécie de cheque especial.
Em determinado momento, contou Guto, a empresa se viu endividada de tal forma que os sócios estavam com os nomes sujos, com pedidos de busca e apreensão de bens. Resultado: os empresários tiveram de mudar de ramo. As lojas deixaram de pertencer à família Gobbo e foi aberta uma rede franquias com a marca Bootco.
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