Ao cunhar a expressão “aldeia global”, o filósofo canadense e teórico da comunicação Marshall McLuhan foi fundo na observação do efeito da tecnologia nas relações do homem em sociedade. Era 1968, ano de trevas de um lado, por parte da ditadura militar instalada no Brasil, e luzes por parte de quem a ousava contestar. Muitos contradizem o conceito central de Guerra e paz na aldeia global, livro que McLuhan lançou naquele ano – o avanço tecnológico isola e exclui os indivíduos, e a internet está aí para mostrar isso, argumentam. Mas não há como discordar de que, como areia escorrendo entre os dedos, a informação sempre teve a tendência de se espraiar, quanto mais impositiva fosse a tentativa de se coibir seu fluxo. Quanto mais o militarismo tentava cercear o livre trânsito das ideias. É – e sempre foi, sempre será – assim: seja aqui ou na França, por meio do rádio, do jornal, da televisão ou da internet, boa parte dos aldeões, cada vez mais interligados, sempre acaba dando um jeito de se comunicar.
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E foi com conceitos como o de McLuhan na cabeça e muita coragem que um grupo de intrépidos jornalistas dos anos 60-70 se lançaram à guerrilha jornalística em nome das liberdades civis, como um bando de índios predestinados a absorver – e disseminar – conhecimento e cultura. Foi assim que, em dois momentos-chave da recente trajetória sócio-cultural brasileira, nasceram os jornais Tribo, em 1968, e Cidade Livre, em 1977. Como gosta de lembrar um dos fundadores, Antonio de Pádua Gurgel, uma viagem que começaria com a decretação do Ato Institucional nº 5, o mais arbitrário entre os baixados nos anos de chumbo, e a decretação da Anistia, um limite que se mostraria mais tênue do que o recomendável. Afinal, como o jornal Folha de S.Paulo mostrou na última quinta-feira (21), a presidenta Dilma Rousseff, ela mesmo ex-insurgente contra o regime de exceção, continuou a ser monitorada por órgãos de inteligência em pleno período de redemocratização, já no governo José Sarney (1985-1990).
Se os militares queriam manter estudantes, trabalhadores e formadores de opinião em uma aldeia sem vocação para a difusão do pensamento, com uma classe média obediente e muda, os caciques da Tribo se encarregaram de vocalizar o descontentamento geral. Aos trancos e barrancos, em esquema meio mambembe, meio beatnik, o braço da imprensa nanica, que tinha de driblar censores e bolso vazio, em 1968 foi finalmente concretizado por jovens estudantes de jornalismo, que ali formaram o embrião do Cidade Livre – aqui, nove anos depois, os “índios” já estavam crescidinhos e devidamente profissionalizados, muitos deles já contratados em veículos como revista Veja e O Estado de S. Paulo.
“Tinha muitas matérias que a gente não podia publicar onde a gente trabalhava – não necessariamente por causa da censura, mas devido a um outro fenômeno, a autocensura. Com a economia do Brasil menos desenvolvida, menos pujante àquela época, o jornal dependia muito de anúncio oficial. Era impensável naquele momento uma Veja, ou mesmo um jornal de oposição – até para importar o próprio papel de imprensa, que não eram produzidos no Brasil, os veículos precisavam de autorização do governo”, relatou Antonio “Padu” Gurgel, sobrevivente do embate ideológico contra os militares, em entrevista ao Congresso em Foco.
Leia a íntegra da entrevista com Antônio “Padu” Gurgel
Desses dribles executados em adversários que, em lugar de chuteiras, usavam pesados coturnos, nascia um jornalismo que destoava – em liberdade, alcance e propósitos – da práxis dominante na chamada grande imprensa e sua liberdade condicionada à boa vontade do patrocinador. E (quase) todo o material veiculado naquela época por esses dois jornais de trincheira, além daquele publicado no Jornal do Século (publicação do Jornal do Brasil), está reunido em Jornal da década de 70, garimpo histórico que, em cerca de 220 páginas, traz de volta à tona a importância da imprensa alternativa brasiliense, em registros feitos entre dezembro de 1968 e agosto de 1979, na luta contra os desmandos do militarismo e na multiplicação da contracultura.
“No rastro do Pasquim, surgiram inúmeras publicações em todo o Brasil que passaram a expressar a inconformidade de amplas camadas da classe média contra os militares. Em Brasília, não poderia ser diferente. Até então, o formato dos jornais era extremamente careta: standard (jornalão), seis ou oito colunas, uma ou outra foto, algumas ainda em clichê, pouquíssimas ilustrações, praticamente nenhum espaço em branco. […] Também era necessária muita criatividade para transmitir mensagens de protesto contra a situação política, pois um vacilo poderia render no mínimo uma sanção contra o jornal. A cadeia era também um destino possível, e a história de Vladimir Herzog mostra que a raiva dos militares podia chegar a situações extremas”, testemunha Padu, hoje editor a quem coube reunir o material jornalístico, enriquecido por colaborações de colegas jornalistas. “Naquela época a sociedade toda estava mobilizada para derrubar os militares.”
“Anarco-tropicalismo”
São dezenas de imagens, ilustrações e reproduções de jornal entremeados por textos jornalísticos, analíticos, provocadores ou meramente poéticos. Com linha editorial sem pretensões de esconder o caráter libertário da publicação, numa linguagem gráfica ora irreverente, ora formal. Mas sempre instigadora da reflexão. Na orelha do livro, Eliane Cantanhêde. “Os textos, as fotos, a emoção e a história que Padu nos traz de forma tão despojada são um alento. É da história e da saudade que se pode produzir um futuro melhor”, arremata a colunista, “brasiliense nascida no Rio” que estudou na UnB em uma época em que não era tão fácil estudar.
Um estado de coisas e pulsações prestes a explodir, e os atentos guerrilheiros da informação aproveitaram a maré. O próprio Antonio de Pádua, no texto intitulado “150 anos de Brasil livre”, fez um libelo contra a “capitalização”, por parte dos militares, do espírito patriótico ensejado por ocasião do sesquicentenário da Independência, em 1972. “Eles pintaram o patriotismo como se fosse uma coisa a favor do governo. Então eu fiz um texto esculhambando com isso, mas dentro do possível”, disse o jornalista a este site, sugerindo certo orgulho de seu manifesto “anarco-tropicalista”.
Trecho do desabafo: “As dívidas começam a se avolumar, compramos o Acre, vendemos o Uruguai, ninguém sabe o que aconteceu com a Amazônia, ah, sim, estamos construindo a Transamazônica, temos de sacrificar a selva e a fauna, é a necessidade do progresso, o progresso pinta, o progresso é bom, a civilização está aí. […] Em 1922 [ano da Semana de Arte Moderna, que inspirou o conteúdo dos jornais], fizemos 100 anos de Brasil livre. É necessário que cada um medite profundamente nos destinos, intestinos, grosso ou delgado, a quebrada do Oros na academia mineira, enquanto Cláudio Manoel da Costa morre no exílio”, fustigou o não mais infante Padu.
De Brasília…
Há uma entrevista com o então aprendiz de cineasta Arnaldo Jabor, cinco anos de estrada com as películas, socialista utópico que hoje, no maior grupo de comunicação da América Latina, destila seu desalento ante as cinzas do velho ideário esquerdista. Há também um poema de Mao Tsé-Tung, “À cordilheira de Kulun”. E tem também – o “apaixonado” Padu não deixaria de fora – a já antológica foto de Leila Diniz grávida, banhando-se no mar do Rio de Janeiro de biquíni e chapéu. E ainda a musa maior da literatura brasileira, Clarice Lispector, tão bela quanto absorta nas entrelinhas de Perto do coração selvagem (1941). Flores na escuridão.
À página 78, em reprodução do Jornal do Século, a tristemente famosa foto do jornalista Vladimir Herzog enforcado em uma sala do DOI-Codi, o departamento encarregado de manter a “ordem”, nem que para isso fosse necessário torturar e matar. “Mais de 10 mil pessoas participaram de um ato ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, em memória do jornalista Vladimir Herzog, que, segundo o laudo médico, teria cometido suicídio e, de acordo com parentes e amigos, teria sido torturado até a morte no DOI-Codi. A certeza de que o laudo é fraudulento é tanta que o rabino Henry Sobel fez questão de enterrar o suicida Herzog em campo santo”, diz trecho da chamada de capa da edição de 22 de novembro de 1975, ao lado da imagem do membro do Partido Comunista Brasileiro morto.
E tem muita Brasília no livro. Fotos da Rodoviária quando a frota de ônibus não chegava às centenas e ainda existia a “linha 152”; cenas da invasão da Universidade de Brasília pelos militares, em 1964; fotos desoladoras de retirantes em cidades-satélite instaladas em barro e cerrado; protestos ingênuos na Esplanada; a escrachada alegria carnavalesca do Pacotão, o “bloco que assustava militares”, como o livro registra à página 213 – no desfile de 1979, ao som da “Marcha do Aiatolá”, a sátira contagiava “na porta do Chorão, na 302 Norte”, e uma profusão de charges, abundantes na excelência crítica. No mais, textos caprichados e elogiosos de gente como Teresa Cruvinel, Eliane Cantanhêde e Merval Pereira, jornalistas de primeiro time que, tendo passado incólumes pela ditadura, ainda desferem golpes de pena nos principais periódicos nacionais.
Por fim, registre-se as psico-sensacionalistas reportagens do repórter policial Mário Eugênio, que ousou denunciar grupos criminosos e acabou assassinado com sete tiros na cabeça em 1984, depois de gravar o programa “Gogó” (“Ninguém vai me calar”, dizia a vinheta), na saudosa Rádio Planalto. Há décadas, como narrou o repórter em entrevista à moda antiga, Senado e Câmara não diferiam em muito do que são hoje. “Em Brasília, o jogo corre solto. Na 410 Sul tem muita safadeza. Funcionários do Senado e da Câmara transam nos apartamentos. Altas Zonas. Tem cara que tem seis, oito apartamentos, só pra isso. Nós conhecemos praticamente todos os puteiros da 410 Sul”, são algumas das frases proferidas pelo entrevistado, um tal de “Marão”. Qualquer semelhança com a atualidade é mera perseverança. De hábitos.
Serviço:
Jornal da Década de 70
De Antonio de Pádua Gurgel (Pro Texto Editora, R$ 50)
Lançamento:
Dia 28 de junho, às 19h, no restaurante Carpe Diem da 104 Sul (Brasília)
Mais informações: www.editoraprotexto.com.br