SENADO FEDERAL
CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR
REPRESENTAÇÃO Nº 01/2012
REPRESENTANTE: PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL
REPRESENTADO: SENADOR DEMÓSTENES TORRES
RELATOR: SENADOR HUMBERTO COSTA
RELATÓRIO PRELIMINAR (ART. 17-A, DA RESOLUÇÃO Nº 20, DE 1993)
1. RELATÓRIO
1.1 DA REPRESENTAÇÃO
Vem a este Conselho de Ética e Decoro Parlamentar a presente Representação, ofertada pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, pessoa jurídica de direito privado, devidamente qualificada nos autos, em desfavor do Senador Demóstenes Torres (sem partido/GO), com fulcro no art. 55, II e § 2º, da Constituição Federal de 1988, combinado com o art. 5º, incisos II e III, art. 17 e seguintes da Resolução nº 20, de 1993 (SF), que institui o “Código de Ética e Decoro Parlamentar” do Senado Federal, com vistas a verificar quebra de decoro, decorrente de denúncias que vinculam o parlamentar ao empresário do ramo de jogos Carlos Augusto de Almeida Ramos, conhecido pela alcunha de Carlinhos Cachoeira, com indícios da prática de diversos atos ilícitos narrados na peça inicial, que sujeitam o Representado à perda de seu mandato.
De acordo com o Representante, órgãos de imprensa veicularam matérias acerca das investigações realizadas pela Polícia Federal no âmbito da assim denominada “Operação Monte Carlo”, destinada a desbaratar quadrilha envolvida com o jogo ilegal em vários Estados da Federação, cujo principal investigado é o empresário Carlos Augusto de Almeida Ramos.
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Assevera o Representante que as primeiras informações trazidas pela imprensa davam conta de que, no período compreendido entre fevereiro e agosto de 2011, o investigado teria trocado 298 (duzentas e noventa e oito) ligações telefônicas com o Senador Demóstenes Torres. Tais registros foram conseguidos por meio de monitoramento autorizado pela Justiça.
Após a explicação pessoal oferecida pelo ora Representado, em seu pronunciamento no Senado Federal no dia 6 de março próximo passado, foi noticiado pela revista Época (edição nº 721, distribuída em 14/04/2012) que Carlinhos Cachoeira teria habilitado nos Estados Unidos 15 (quinze) aparelhos de rádios vinculados à operadora “Nextel” e os teria distribuído entre pessoas de sua mais estrita confiança. A habilitação em país estrangeiro teria a finalidade – consoante a fonte – de impedir que os mesmos fossem alvo de monitoramento pela polícia. Entre aqueles que teriam recebido tais equipamentos encontrar-se-iam alguns foragidos e também pessoas que foram presas durante a “Operação Monte Carlo”, além – segundo aquele noticioso – do Senador Demóstenes Torres.
Complementa que, com o decorrer do tempo, foram aparecendo mais denúncias que mostrariam o envolvimento do Senador Demóstenes Torres com Carlinhos Cachoeira, tais como a existência de relatórios assinados pelo delegado da Polícia Federal Deuselino Valadares dos Santos, datados do ano de 2006, que apontam o Representado como receptor de 30% (trinta por cento) de todo o valor recebido por Carlinhos Cachoeira na exploração do jogo ilegal. O dinheiro, avaliado num montante de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), seria utilizado na campanha de Demóstenes ao Governo do Estado de Goiás, via “caixa dois”. Dá conta ainda, da divulgação de uma gravação entre o Representado e Cachoeira, onde aquele pedia R$ 3.000,00 (três mil reais), para que fosse efetuado o pagamento de um taxi aéreo.
Mais adiante, o Representante traz a lume notícia de provocação do Supremo Tribunal Federal, pelo Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral da República, no dia 27 de março de 2012, para abertura de inquérito destinado a investigar as condutas do Senador Demóstenes e sua relação com o grupo chefiado por Carlinhos Cachoeira, ante a consideração, por aquela autoridade, da seriedade dos conteúdos e quantidade de gravações.
Conclui, por fim, o Representante que a gravidade dos fatos que ligam o Senador Demóstenes Torres a Carlos Augusto de Almeida Ramos caracterizariam procedimento incompatível com o decoro parlamentar, por abuso de prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional e por percepção de vantagens indevidas, com prejuízo para a imagem do Senado Federal.
Nesses termos, afirma que os fatos imputados ao Representado o sujeitam à pena de perda do mandato, por quebra de decoro parlamentar, conforme dispõe o art. 55, inciso II, da Constituição Federal, pelo que requer:
– o recebimento da Representação pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar e a competente instauração do Processo Disciplinar, ante a suposta quebra de decoro parlamentar do Senador Demóstenes Torres;
– depoimento pessoal do Representado ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal;
– oitiva de testemunhas e demais pessoas envolvidas, especialmente o Sr. Carlos Augusto Ramos;
– solicitação ao Ministério Público Federal, nos termos do art. 19 da Resolução n° 20 de 1993, das provas que envolvam o Representado enviadas ao Supremo Tribunal Federal no pedido de abertura de inquérito para a investigação dos fatos aqui descritos;
– ao final, a procedência da presente Representação com a recomendação ao Plenário do Senado das sanções cabíveis.
A Representação foi recebida e autuada no dia 28 de março de 2012.
Admitida a Representação pelo Presidente deste Conselho de Ética, nos termos do arts. 14, § 1º e 15, da Resolução nº 20, de 1993, procedeu-se à notificação do Representado no dia 11 de abril de 2012. Em reunião realizada no dia 12 de abril de 2012, fui designado relator, por sorteio, tudo nos termos que dispõe o art. 15, incisos I, II e III, da Resolução nº 20, de 1993, com a redação dada pela Resolução nº 25, de 2008.
1.2 DA DEFESA DO REPRESENTADO
Notificado no dia 11 de abril de 2012, o Representado apresentou sua defesa prévia no dia 25 do mesmo mês, em peça assinada por seus procuradores legais, nos moldes preconizados pelo art. 15, II, da Resolução nº 20, de 1993.
Alicerça a defesa de sua inocência na inépcia da peça vestibular, por imprecisão dos fatos imputados, na impossibilidade de se respaldar a Representação em matérias jornalísticas, que padeceriam de vícios de confiabilidade e verificabilidade, sendo repudiável sua utilização como fundamento para instauração de investigação ou ação penal, bem como de processo disciplinar; e na extemporaneidade dos fatos em face do mandato correspondente à legislatura em vigência.
Aduz, ainda, a patente nulidade das provas no caso dos áudios de interceptação telefônica empregados nas matérias jornalísticas, que teriam dado causa à Representação subscrita pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL.
Alega, por fim, que apresentou os devidos esclarecimentos em relação a cada um dos tópicos tidos por supostas hipóteses de quebra de decoro parlamentar, demonstrando que não há que se falar em percepção de vantagens indevidas, tampouco prática de irregularidades graves no desempenho do mandato.
Pugna o Representado, como consequência do acolhimento de sua tese, preliminarmente:
– a suspensão do presente processo disciplinar, até que o Supremo Tribunal Federal possa se manifestar sobre a nulidade das provas realizadas nos autos das operações Monte Carlo e Vegas;
– a suspensão do presente processo disciplinar até a conclusão dos trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instaurada para apurar os fatos constantes da presente Representação;
– seja reconhecida a inépcia da inicial diante da impossibilidade de procedimento disciplinar baseado em matérias jornalísticas e da nulidade das provas empregadas , originadas a partir da prática de crime de vazamento de informações;
– a exclusão do corpo da Representação de todos os fatos anteriores ao exercício do mandato parlamentar que corresponde à presente legislatura;
No mérito, clama pelo arquivamento da Representação, com fulcro no art. 1º, § 1º, incisos I e II, combinado com o art. 2º, do Ato da Mesa nº 37/2009, bem como do art. 14, § 1º, inciso II, da Resolução nº 20/1993, ao fundamento de que os fatos narrados não constituiriam quebra de decoro parlamentar, tampouco haveria qualquer indício de existência de fato indecoroso ou falta ética.
Alternativamente, na hipótese de não ser concedida a suspensão condicional do processo disciplinar, requer a nomeação de assistente técnico para realizar perícia, com vistas à produção de provas técnicas a partir das seguintes requisições: 1) cópia de segurança com os “dados brutos das gravações” dos arquivos resultantes da Operação Monte Carlo; 2) cópia perfeita dos arquivos de sons originais; 3) a localização das Estações de Rádio Bases – ERBs que foram utilizadas pelos aparelhos durante as ligações interceptadas.
Reclama a realização de exames no material realmente original ou em sua cópia tecnicamente perfeita, para a comprovação da idoneidade e integralidade do material apresentado; a determinação de que as operadoras de telefonia informem data e horário, nas quais foram implantadas escutas nas linhas telefônicas e os extratos telefônicos das linhas nos períodos, nos quais estiveram sob interceptação.
Requer, alfim, a produção de prova testemunhal, para o que indica os seguintes nomes: 1) Carlos Augusto Ramos; 2) Ruy Cruvinel.
É o Relatório.
2. ANÁLISE
2.1 PRELIMINARES
2.1.1 DA COMPETÊNCIA DO REPRESENTANTE
Nos termos dispostos no § 2º do art. 55, da Constituição Federal, de 1988 e no caput do art. 13 da Resolução nº 20/1993 (SF), o partido político representado no Congresso Nacional possui competência para provocar o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Casa, quando se tratar da possibilidade de aplicação de sanção da perda de mandato, de que trata o art.11, do mesmo estatuto regimental interno.
Na hipótese, o Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, por seu presidente, o Deputado Federal Ivan Valente, exerce seu pleno direito de peticionar junto ao Órgão.
2.1.2 DA COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR DO SENADO PARA ANALISAR A MATÉRIA E OS LIMITES DA QUEBRA DE DECORO
A natureza regimental informa os Códigos de Ética do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, sorvendo sua fundamentação da própria Constituição Federal, que atribui expressa competência às Casas Legislativas para elaborar seus respectivos Regimentos Internos, na forma posta nos artigos 51, inciso III e 52, inciso XII, da nossa Constituição Federal.
O processo de cassação de mandato por falta de decoro parlamentar traduz-se na competência de aferição política que o Parlamento possui para averiguar se o representado incorreu na falta de decência no comportamento pessoal, em abuso de prerrogativas, ou conduta incompatível com o cargo, isto é, em atos capazes de desmerecer o Congresso Nacional. O faz com base nos fatos narrados na peça de representação, na defesa e no conjunto da instrução processual disciplinar.
O momento presente, que antecede a instauração de processo disciplinar, justifica-se como a fase de verificação dos indícios de prática que possam dar fundamento legal à investigação. A exigência de relatório preliminar deu-se com as alterações promovidas a partir da Resolução nº 25, de 2008 (SF), que deram uma melhor instrumentalidade ao processo, supriram lacunas e contradições com o texto geral do Regimento Interno do Senado.
A instauração do processo disciplinar terá início, sendo o caso, com a publicação da decisão colegiada tomada por este Órgão no Diário do Senado Federal, no dia seguinte ao da reunião em que se deliberar, nos termos do § 4º do art. 15 da Resolução nº 20, de 1993. Dar-se-á, então, curso a toda a instrução probatória.
O Congresso Nacional, para seu infortúnio, já passou por diversas circunstâncias em que teve de enfrentar questões desta natureza. Essas situações representaram momentos de desgaste político para a instituição legislativa.
A compreensão da natureza do processo de perda do mandato de parlamentar e do entendimento do que seja decoro já foi, por inúmeras vezes, objeto de debates, explicações, comentários, análises e, por fim, matéria submetida à deliberação deste Senado Federal.
Creio ser desnecessário fomentar a repetição desses debates, na medida em que, desde o julgamento do ex-senador Luiz Estevão por esta Casa – que teve por base precedentes oriundos da Câmara dos Deputados – restou consolidado pelo relatório do saudoso Senador Jefferson Peres, nos autos da Representação nº 02, de 1999, que a apreciação realizada pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar não se confunde com os julgamentos do Poder Judiciário, que são julgamentos presos a rigorosos formalismos procedimentais, inclusive obrigados a buscar provas materiais irrefutáveis. Tal não se aplica ao processo disciplinar de falta de decoro parlamentar.
Interessante destacar, para efeito de consignação de precedente, trecho da parte dispositiva daquele Relatório:
“Preliminarmente, parece-me relevante reiterar o alerta quanto às características de um julgamento realizado por este Conselho, que não se confunde com uma corte judicial, presa a rigoroso formalismo procedimental e obrigada a buscar provas materiais irrefutáveis. A nós, a questão fundamental se traduz no enunciado feito pelo relator, na Câmara dos Deputados, no processo de cassação do deputado Talvane Albuquerque, contido num trecho do seu parecer, que transcrevo a seguir:
‘A falta de decoro parlamentar é a falta de decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa, e a falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis. (…) Para que se configure a quebra de decoro, não é necessário ter o deputado praticado conduta tipificada no Código Penal. Basta que a conduta seja considerada, em juízo político, como indecorosa. Não cabem, pois, quaisquer paralelos que se pretenda efetuar com a tipificação de natureza penal, que possui requisitos próprios.
O mesmo ocorre em relação à valoração das provas: no processo penal, a avaliação, pelo juiz, da prova produzida no processo, liga-se a procedimentos rígidos, previstos na legislação penal. Este é um processo político, que será concluído por decisão política a ser tomada por esta Comissão. Não é um processo judicial, ainda que seja judicialiforme. (…) Basta que haja o convencimento político de que seu proceder (do parlamentar) difere do homem honrado, do homem de bem.’
E àqueles que vacilarem na tomada de uma decisão drástica, com a dúvida a verrumar a consciência, na forma da pergunta: “algumas dezenas de parlamentares terão legitimidade para tirar de alguém um mandato que lhe foi conferido por centenas de milhares de eleitores?”, pode-se responder contrapondo outra indagação: “se esses eleitores, antes da eleição, tivessem conhecimento desses fatos desabonadores, ter-lhe-iam outorgado o mandato?”
Em conclusão: o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal, instituído pela Resolução nº 20 de 1993, alterado pela Resolução nº 25, de 2008, quando provocado, possui competência para dar curso às etapas de verificação de indícios e instaurar processo disciplinar, com vistas à verificação de atos contrários à ética e ao decoro parlamentar, para os fins de que trata o art. 55, II da Carta da República e os dispositivos que compõem o Capítulo III da própria resolução, independentemente de processos judiciais e de investigações paralelas, por comissões de inquérito parlamentar ou quaisquer outras.
2.1.3 DAS PRELIMINARES SUSCITADAS PELO REPRESENTADO
2.1.3.1 Da Suspensão do Processo
Os pedidos preliminares de suspensão do processo formulados pelo Requerido, “até que o Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL possa se manifestar expressamente sobre a realidade das provas decorrentes de escutas telefônicas realizadas nos autos das operações MONTE CARLO e VEGAS” e/ ou “até a conclusão dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada justamente para apurar os fatos constantes da presente Representação” são manifestamente incabíveis, de plano.
É que, a rigor, não há processo disciplinar em curso, sendo esta a fase preliminar de análise inicial do mérito da Representação, nos termos do art. 15-A da Resolução nº 20/1993, não portando, pois, qualquer razoabilidade os pedidos de que tratam os itens A e B, do bloco de postulações da defesa prévia, motivo pelo qual opino pela rejeição da solicitação.
2.1.3.2 Da Inépcia da Representação
Três são os argumentos da defesa na sustentação da tese de inépcia da inicial.
O primeiro deles é a imprecisão dos fatos narrados. Com a devida vênia, o Representado busca transformar em centro da narrativa o que é exemplificativo na exposição do PSOL. Da petição protocolizada por aquele partido político são perfeitamente deduzíveis os fatos que deveriam ser apurados e avaliados por este Conselho de Ética: a) a natureza do relacionamento entre o Representado e o Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos; b) a avaliação da legalidade ou não das atividades do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos; c) a condução ou não do mandato parlamentar do Representado de forma a fazer prevalecer interesses do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos, eventualmente a agir como empresário, na ilegalidade; e d) obtenção ou não de vantagens indevidas, pelo Representado, em decorrência da relação em questão e do exercício do mandato em função dela.
O Representado entende que a Representação deveria ser oferecida com todos os rigores pertinentes à denúncia no processo penal, notadamente com a explicitação das imputações e todas as circunstâncias, como dispõe o art. 41 do Código de Processo Penal.
Admitir tal imperativo implicaria subverter totalmente o propósito deste feito e o papel conferido a este Órgão que, não obstante deva respeito incondicional ao contraditório e à ampla defesa, não se confunde com o Ministério Público.
É de se anotar que o inciso IX do art. 2º da Lei nº 9.784, de 1999, invocada pelo próprio Representado como âncora de seus direitos, prevê a observância da “adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos do administrado”.
Quanto à imprestabilidade das matérias jornalísticas como supedâneo de acusação, o próprio Representado cuidou de trazer à baila o argumento de que “notícias de jornal constituem peças de informação que, de fato, poderiam originar expedientes investigativos, desde que inequivocamente respaldadas em elementos de prova”. (item 56, defesa prévia)
Outra não foi a minha postura, conforme adiante se verá, senão aquela descrita em acórdão mencionado pelo Representado em sua defesa: buscar novos elementos de prova que não guardassem qualquer relação de dependência com evidências que, por hipótese, se pudessem rotular como ilícitas ou que com elas mantivessem vinculação causal.
Não é despiciendo recordar, apenas para registro que, quando se debateu neste Conselho, a possibilidade, ou não, do uso exclusivo de matéria jornalística como base para recebimento de Representação contra parlamentar, a postura do Senador Demóstenes Torres, como membro do Órgão, foi no sentido do acolhimento. A propósito, pode-se conferir a decisão de arquivamento, por maioria de 9 a 6 na admissibilidade das Representações nºs 01, 03, 04, 05, 06, todas do ano de 2009, ajuizadas pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB e pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL contra o Presidente da Casa, Senador José Sarney.
Mesmo assim, é preciso aqui consignar que, a despeito de inúmeras falhas que a imprensa possa cometer, é dever de todo homem público, no regime democrático, prestigiar, como frisou Thomas Jefferson, em seu discurso inaugural, “a difusão da informação e a denúncia de todos os abusos à barra da razão pública”. Ou como sustentava Rosa Luxemburgo: “Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem luta livre entre as opiniões, a vida morre em todas as instituições públicas, torna-se uma vida aparente, na qual a burocracia resta como o único elemento ativo”.
Ademais, é inequívoco que a peça exordial lastreia-se no disposto no art. 37 da já citada Lei nº 9.784, de 1999 que diz:
“Quando o interessado declarar que fatos e dados estão registrados em documentos existentes na própria Administração responsável pelo processo ou em outro órgão administrativo, o órgão competente para a instrução proverá, de ofício, à obtenção dos documentos ou das respectivas cópias.”
Quanto à extemporaneidade dos fatos em face do mandato correspondente à “legislatura em vigência”, é importante observar que a hipótese de incidência de inépcia a que se reporta o inciso III do art. 14 da Resolução nº 20, de 1993 faz menção tão somente a “fatos referentes a período anterior ao mandato”, sem vinculação à contemporaneidade da legislatura. Como se sabe, o Representado exerce mandato senatorial, sem solução de continuidade, desde 1º de fevereiro de 2003. Não bastasse isso, é de se registrar que, desde o exame do Mandado de Segurança nº 23.388, o STF assentou que se fato anterior ao exercício do mandato projeta-se, por suas causas e efeitos, no período do próprio desempenho da função legiferante, é legítima a sua consideração para o fim de apuração de falta ética e ofensa ao decoro parlamentar. (DJ, 20/04/2001)
O que está em debate não é a imagem do parlamentar, individualmente considerada, mas a do Parlamento. Se os atos foram praticados no exercício do mandato de Senador, projetando-se para a atualidade e atingem a imagem do Senado Federal, não há que se alegar ilegítima a inauguração de um procedimento investigatório. Não se pode subtrair da análise desta Casa Legislativa fatos graves, como os aqui narrados, sob a pecha de parte deles terem ocorrido na legislatura anterior.
Consigno, de passagem, que as referências, para reforço de argumentação da última preliminar, a uma Representação – a de nº 02, de 2007 – se mostram deslocadas. É notório que o ilustre Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, nunca foi membro desta Casa e, por conseguinte, não poderia ter integrado este Colegiado, donde se dessume não ser deste Conselho o precedente transcrito. No mesmo sentido creio ter sido equivocada a referência que se faz à letra do inciso II do art. 4º do Código de Ética e Decoro Parlamentar (itens 109 e 110 da Defesa Prévia)
Pelos motivos expostos, opino pela rejeição do pedido de decretação da inépcia da inicial.
2.2 DA APRECIAÇÃO PRELIMINAR DO MÉRITO DA REPRESENTAÇÃO E INDÍCIOS DA QUEBRA DE DECORO PARLAMENTAR
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss (Objetiva, versão eletrônica), o termo “decoro” origina-se do latim decorum, que significa “decência”, “honra”, “aquilo que convém”. O filólogo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, por seu turno, define o termo como “correção moral”, “compostura”, “decência”, “dignidade” (Novo Dicionário Aurélio, Positivo, versão eletrônica).
A instituição da observância ao decoro parlamentar como mandato constitucional no Direito brasileiro apareceu, pela primeira vez, na Constituição de 1946 e tem como pressuposto a democracia representativa. Foi mantida, com algumas alterações, pela Constituição de 1967 (art. 35, II, c/c § 1º) e, atualmente, é disciplinada pelo art. 55 da Constituição Federal de 1988.
O poder disciplinar dos órgãos legislativos, no direito constitucional norte-americano, no qual tem origem imediata o preceito do art. 55 do Estatuto da República, é um mecanismo voltado não tanto para simplesmente punir um membro do Congresso, mas, em última análise, uma medida para proteger a integridade da Câmara e do Senado, seus procedimentos e sua reputação.
No direito brasileiro, não foi outra a finalidade da adoção do instituto, como nos dá notícia o Ministro Célio Borja no julgamento pelo STF do Mandado de Segurança nº 21.360-DF:
“Quando, em 1946, pela mão de um antigo Presidente do Supremo Tribunal Federal e um dos seus mais ilustres Ministros, a Constituição colocou esse poder censório nas mãos do Senado e da Câmara, Sr. Presidente, foi para fazer prevalecer a regra ética sobre quaisquer outras considerações, e para fazer preservar o conceito da Câmara e do Senado”. (DJ, 23/04/93)
O próprio conceito de democracia representativa encerra uma forte conotação ética. Na medida em que cidadãos comuns elegem representantes e lhes concedem poderes amplos para deliberar sobre assuntos que afetam o bem-estar de todos, tal representação enseja uma responsabilidade singular. O representante deve, para tornar efetivo seu mandato, privilegiar, em suas decisões e ações, a busca do bem comum, evitando o interesse privado e a exploração do cargo para usufruir de privilégios.
É assente que os atos de ofensa ao decoro parlamentar terminam por atingir, injustamente, a própria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo. Reside nesse ponto a legitimidade ético-jurídica do procedimento constitucional de cassação do mandato parlamentar, em ordem a excluir, da comunhão dos legisladores, aquele que se haja mostrado indigno do desempenho da magna função de representar o povo, de formular a legislação da República e de controlar as instâncias governamentais do poder.
Sempre que é posto, o exame da possibilidade do controle jurisdicional do processo disciplinar atrai indagações se a questão tem natureza política, ou se há violação ou ameaça a direito subjetivo, e se o Poder Judiciário tem jurisdição sobre o tema.
Em resposta, basta que se diga que, ao julgarem os seus membros, em caso de ofensa ao decoro parlamentar, e os membros de outros Poderes, como o Presidente e o Vice-Presidente da República, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União, em caso de infração político-administrativa, a Câmara e o Senado exercem jurisdição que lhes foi conferida pela própria Constituição.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria de quebra de decoro indica que há possibilidade de modificação das decisões do Parlamento, no âmbito das garantias processuais relativas aos direitos individuais, no sentido de obrigar a observância dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Mas não há a mesma possibilidade em relação ao conteúdo da decisão, por ser questão interna corporis, matéria exclusivamente de âmbito deliberativo da Casa Política. (v.g. MS nº 21.754-DF, 07/10/93, decisão em Agravo. Relator para o Acórdão: Ministro Francisco Rezek; MS nº 24.356-DF, 13/02/2003. Relator: Ministro Carlos Mário Velloso)
Ainda segundo o STF, a verificação ou não de ocorrência de quebra de decoro é da alçada do Legislativo, já que o conceito de decoro parlamentar é valorativo e corresponde a um padrão médio de conduta da sociedade. Logo, a quebra de decoro é verificada por meio de critérios distintos em relação à verificação de ocorrência de qualquer delito por juiz togado. Resta claro que, para a deliberação da perda de mandato, não é preciso a existência de crime e, mesmo que haja crime, isto não resulta necessariamente em punição política. Com efeito, nos termos do § 2º do art. 55 da Lei Maior, a cassação de mandato de quem tenha sofrido condenação criminal transitada em julgado (art. 55, VI, CF) depende da deliberação, por voto secreto, da maioria absoluta dos membros da Casa. E essa maioria pode simplesmente, nessa circunstância, rejeitar a cassação. Ora, na exata razão que a conduta parlamentar possa estar tipificada na legislação penal, observa-se que isso não afasta a competência do processo disciplinar a ser procedido pelo Parlamento, pois esse processo disciplinar tem natureza diversa da sanção penal.
Todos os textos constitucionais brasileiros arrolaram a condenação por infração criminal, enquanto durarem seus efeitos, como causa para suspender os direitos políticos.
Na atual Constituição encontram-se duas hipóteses expressamente previstas de perda de mandato e que resultam na mesma causa:
“Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
…………………………………………………………………………..
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;”
“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
…………………………………………………………………………
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
…………………………………………………………………………..
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.”
Da análise das normas, tem-se como especial aquela do inciso VI, do artigo 55, que possui superior imperatividade em relação à norma geral de perda dos direitos políticos do inciso IV deste mesmo artigo, combinada com o inciso III, do art. 15.
Em se tratando do art. 55 supratranscrito, na hipótese do inciso IV, a perda será declarada pela Mesa do Senado, conforme o § 3º, do art. 32, do seu Regimento Interno, enquanto no caso do inciso VI, a perda será decidida pelo voto secreto no Plenário e maioria absoluta dos membros da Casa.
Como se verifica, a decisão do Poder Legislativo não está vinculada àquela proferida pelo Poder Judiciário, haja vista que, mesmo havendo condenação criminal, a perda de mandato somente ocorrerá após soberana decisão do Plenário da Casa, na votação de projeto de resolução.
A respeitabilidade do Parlamento é o bem jurídico a ser tutelado, bem assim o decoro da vida pública do parlamentar. No caso que ora se analisa, dos fatos que são objeto da Representação parece exsurgir uma série de atos noticiados – alguns deles assumidos posteriormente pelo Representado em seu pronunciamento no Plenário do Senado e em sua Defesa Prévia – que o ligariam a diversas das acusações formuladas contra Carlos Augusto de Almeida Ramos, vulgo Carlinhos Cachoeira, preso no dia 29 de fevereiro de 2012, na operação chamada “Monte Carlo”, da Polícia Federal, por suposta chefia de um esquema de exploração ilegal de jogos de azar em Goiás e no Distrito Federal.
Na oportunidade, foram efetuadas 35 (trinta e cinco) prisões, inclusive de policiais civis e militares, acusados de envolvimento na exploração ilegal de máquinas caça-níqueis em Goiás e na periferia de Brasília. Foram presos, ainda, dois delegados da Polícia Federal e o ex-sargento da Aeronáutica Idalberto Matias de Araújo, o Dadá.
Segundo a apuração da Polícia Federal, noticiada nos meios de comunicação, o contraventor Carlinhos Cachoeira mantinha forte influência na política goiana. Divulgou-se que, nas cerca de 200 (duzentas) horas de gravações telefônicas, captadas com ordem judicial, Cachoeira conversava com frequência e intimidade com deputados federais e com o senador goiano Demóstenes Torres. A defesa admite que “centenas” de telefonemas foram trocados entre o Representado e Cachoeira. (item 72 da Defesa Prévia)
As “centenas” de conversas com o Senador Demóstenes Torres – bem como as “milhares” de referências ao Representado, em diálogos entre Cachoeira e terceiros (fato informado pela defesa prévia – item 72) teriam sido captadas em outra operação da Polícia Federal, chamada de Operação “Vegas”, ao longo do ano de 2009. Relatam os órgãos de imprensa que em uma daquelas gravações teria aparecido um dos diálogos, interceptado às 14h41m de 22 de junho de 2009, no qual o Representado estaria pedindo a Cachoeira o pagamento do frete de um avião da “Sete”, empresa de táxi-aéreo. A isso teria seguido um pedido de interferência em processo judicial que estava no gabinete do desembargador Alan Sebastião de Sena Conceição, do Tribunal de Justiça de Goiás, relacionado a um delegado e três agentes da Polícia Civil, lotados em Anápolis, acusados de tortura e extorsão.
Pela imprensa foi noticiado outro diálogo, gravado em 22 de abril de 2009, no qual o contraventor teria tratado com o senador da tramitação do Projeto de Lei nº 7.228, de 2002, que se encontra na Câmara dos Deputados (PLS nº 51, de 2002), relacionado à legalização de jogos de azar. O Representado, que alegou desconhecer atividades ilegais do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos, o teria alertado de que o texto, na forma em que se encontrava, iria prejudicá-lo, porque transformaria em crime o que, hoje, é contravenção penal.
Mesmo não utilizando do expediente da veiculação da notícia como mote de aceitação da Representação, considero que, certamente, aos membros desta Casa terá causado algum espanto ter reconhecido, nos noticiários de rádio e TV, a voz do Representado advertindo Cachoeira do risco que correria: “Inclusive te pega!”. Igual estupefação, creio, terá causado ao Senado as lições de processo legislativo dadas, em resposta, pelo contraventor ao Representado: – Não, regulariza, sim, uai. Tem a 4-A e a 4-B. Foi votada na Comissão de Constituição e Justiça – teria dito Cachoeira.
Na verdade, o que se verifica é que o Representado teria se reportado a um substitutivo constante do parecer da Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, lavrado em 28 de abril de 2004, enquanto o contraventor, mais atualizado, teria se referido ao parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CD), aprovado em 2 de dezembro daquele mesmo ano.
Em seu pronunciamento da tribuna do Senado Federal, na sessão deliberativa ordinária de 6 de março próximo passado, o Representado assinalou que Carlinhos Cachoeira explorava legalmente algumas modalidades de jogo; que era ativo em outros setores da economia, sendo seus negócios considerados lícitos, com destaque para sua ação no ramo farmacêutico. Não negou a existência de contato pessoal com o Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos. Ao contrário, afirmou seu relacionamento de amizade com o empresário “que frequentava a alta sociedade goiana”, mas ressaltou não participar de seus afazeres ocultos, tampouco aprová-los. Frisou, ainda, ter sempre se oposto aos jogos, “votando contra as iniciativas de legalizá-lo”. E acrescentou ter atuado às claras no combate às causas costumeiramente tratadas nos subterrâneos.
Ao concluir sua alocução, Sua Excelência ponderou que mantinha relacionamento de amizade com Carlinhos Cachoeira, mas que com ele não entabulara negócios. No arremate, justificou conversas telefônicas com o contraventor, ao fundamento de se tratar de “fatos da intimidade de pessoas próximas” ou “conversas triviais” e esclareceu a seus Pares que recebera de Carlos Augusto de Almeida Ramos e sua esposa “um fogão e uma geladeira” à guisa de generosa oferta por ocasião da celebração de seu matrimônio.
Qualificou, então, as denúncias, noticiadas pelos meios de comunicação do país, como tentativas de intimidação. Por suas palavras afirmou o Representado:
“…O contato pessoal, ainda que frequente, não significa participação em seus afazeres ocultos, muito menos aprová-los quando eles vierem à luz.
Nesta Casa, sempre me opus ao jogo, votando contra todas as iniciativas de legalizá-lo. Portanto, atuei às claras no combate às causas costumeiramente tratadas nos subterrâneos.
Apesar do relacionamento de amizade, nunca tive negócios com Carlos Cachoeira. Já expus em algumas entrevistas nomes e fatos da intimidade de pessoas próximas, que não repetirei nesta tribuna até porque sua relevância se restringe a manchetes. Porém, as ligações telefônicas apontam para conversas triviais e tiveram sua frequência ampliada durante o período em que eu e minha mulher interferimos numa questão pessoal da amiga dela, esposa de Carlos Cachoeira. Um único episódio das gravações telefônicas diretamente ligado a mim é de ordem estritamente privada.
No ano passado quando, segundo a imprensa, ocorria à dita operação, houve o meu casamento – fato do conhecimento do todos os senhores e de todas as senhoras. Na ocasião, recebemos diversos presentes, inclusive um fogão e uma geladeira ofertados pelo casal de amigos. A boa educação recomenda não perguntar o preço de um presente, muito menos recusá-lo. Foi o que fiz no caso desses objetos e de todos os demais que outros amigos generosamente me enviaram como demonstração de gentileza.
Como também já disse a jornalistas, não coaduno com teorias conspiratórias. Contudo, segundo a mídia, já tive outras vezes conversas minhas grampeadas. Disse e repito: podem grampear à vontade. Não vão encontrar nada. Isso não vai me intimidar. As escutas legais realizadas conforme os ditames da Constituição se revelam excelentes objetos de investigação e por elas eu trabalhei muito aqui no Senado. Isso, entretanto, não dá o direito a ninguém de violar o sigilo telefônico, seja ele de autoridade ou não, pois assegurado constitucionalmente…”
Sentimento de solidariedade tomou conta da maioria dos senadores presentes naquela sessão, que fizeram de seus apartes cumprimentos ao Representado por seu discurso, e pela disposição de subir à tribuna para prestar esclarecimentos e se colocar à disposição da Justiça.
Contudo, o alegado pelo Representado em relação aos fatos e a plausibilidade dos argumentos relacionados a suas práticas são postos em xeque pelo que adiante se expõe. Tudo leva a crer que Sua Excelência se contradiz e teria faltado com a verdade perante seus Pares.
Como já mencionei, segundo o que foi divulgado – e não desmentido pelo Senador Demóstenes em seu discurso – ele teria travado 298 (duzentas e noventa e oito) conversações por telefone, entre fevereiro e agosto de 2011, com o Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos, excluídas aquelas realizadas em outros períodos. Há diferenças entre o alegado e os conteúdos revelados. Enquanto, pelas gravações, Cachoeira teria obtido o empenho do Senador Demóstenes para que a exploração jogos de azar pudesse ser aprovada no Congresso, o Representado afirmou que sempre militou contra referida legalização na sua atividade parlamentar.
Consultando-se os anais do Senado Federal, verifica-se que nos projetos, pronunciamentos e apartes do Senador Demóstenes, não há qualquer menção a sua referida militância contrária à legalização dos jogos ou a favor de sua transformação em crime, mas ao contrário. Senão, vejamos.
Em 20 de fevereiro de 2004, o Presidente Luis Inácio Lula da Silva editou a Medida Provisória nº 168, que proibia a exploração de todas as modalidades de jogos de bingo e jogos em máquinas eletrônicas denominadas ‘caça-níqueis’, independentemente dos nomes de fantasia.
A matéria foi aprovada na Câmara dos Deputados, mas, em sessão realizada no dia 5 de maio de 2004, o Plenário desta Casa rejeitou os pressupostos constitucionais de relevância e urgência da Medida Provisória nº 168, derrotando-a. O Senador Demóstenes Torres votou contrariamente à medida, que, como já dito, tinha o condão de proibir a exploração dos chamados “jogos de azar”.
É cediço que, no trâmite da medida provisória, quando são analisados os pressupostos de admissibilidade somente se verifica se presentes os requisitos que caracterizam a relevância e urgência do tema na sua edição.
A matéria versada na Medida Provisória nº 168, de 2004 era simples: a proibição da exploração de todas as modalidades de jogos de bingo e jogos em máquinas eletrônicas denominadas caça-níqueis, independente dos nomes de fantasia.
Anote-se, para uma boa compreensão do momento da edição daquela medida provisória, que matérias jornalísticas traziam graves denúncias de que a exploração dos jogos que se pretendia proibir por lei federal se prestava à lavagem de dinheiro, à prostituição infantil e outras atividades ilícitas. Os problemas que justificaram a edição da Medida Provisória nº 168, de 2004 não eram recentes, mas demonstravam-se, pelas denúncias, agravados com o tempo.
Era um tema de extrema relevância, cuja urgência se evidenciava na necessidade de rápida resposta do Estado no sentido de coibir a prática. Significativo ainda, para a verificação que se faz nesse relatório, que essa norma, naquele momento, invalidava, peremptoriamente, a legalidade da ação empresarial de Carlinhos Cachoeira no segmento de jogos de azar.
Para uma análise de conteúdo da legislação que alberga a matéria aqui tratada, é de se ver, como assentou o relatório da CPI dos Bingos que funcionou neste Senado Federal, que, no que toca à exploração do bingo, toda e qualquer autorização para exploração desse tipo de aposta já havia expirado no final do ano de 2002. Portanto, quando o Representado assumiu o mandato de Senador, em 1º de fevereiro de 2003, Carlos Augusto de Almeida Ramos atuava em atividade empresarial ilegal: exploração de jogos de bingo presencial ou virtual, caça-níqueis, videopôquer e similares.
Convém recordar que o bingo é modalidade de “jogo de azar”, assim considerado aquele em que “o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte”. Essa prática foi considerada contravenção penal pelo art. 50 do Decreto-Lei nº 3688, de 3 de outubro de 1941 (restaurado pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 9.215, de 1946). O art. 59 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, também conhecida como “Lei Pelé”, derrogou o Decreto-Lei nº 3.688, de 1941, em seu art. 50, considerando-o, destarte, prática lícita em todo o território nacional, desde que promovido por entidades desportivas reconhecidas oficialmente, facultando-se a operação por terceiros. Por outro lado, o art. 45 do Decreto-Lei nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944 dispôs, como norma especial, ser contravenção punível com a pena de prisão simples de um a quatro anos a extração de loteria sem concessão regular do poder competente, no caso, a União, nos termos do art. 3º do mesmo diploma legal. Este decreto-lei ainda vige. Dispõe, ademais, o Decreto-Lei nº 204, de 1967 que, ressalvadas as concessões já outorgadas às loterias estaduais, a exploração de loteria, com derrogação excepcional das normas do Direito Penal, constitui serviço público exclusivo da União, não suscetível de concessão.
Posteriormente, a Lei nº 9.981, de 14 de julho de 2000 dispôs, por seu art. 2º, que o acima referido art. 59 e todos os seguintes até o art. 81 – a saber, todos os dispositivos que tratam do bingo (Capítulo IX) – da Lei nº 9615, de 24 de março de 1998, ficariam revogados a partir de 31 de dezembro de 2001. Sobreveio, então, a edição da Medida Provisória nº 2216-37, de 31 de agosto de 2001, que derrogou a Lei nº 9981, de 14 de julho de 2000, dando nova redação ao art. 59 e tornando sem efeito a previsão de sua revogação a partir de 31 de dezembro daquele ano. Com a redação dada ao art. 59 da “Lei Pelé”, pela referida MP, “a exploração de jogos de bingo, serviço público de competência da União, será executada, direta ou indiretamente, pela Caixa Econômica Federal, nos termos desta Lei e do respectivo regulamento”.
Mais tarde, a já debatida Medida Provisória nº 168, de 20 de fevereiro de 2004, derrogou a Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, em seu art. 59, com a redação dada pelo art. 17 da Medida Provisória nº 2216-37, de 31 de agosto de 2001.
A rejeição da MP nº 168, em 5 de maio de 2004, implicou a restauração da eficácia do art. 59 da Lei nº 9615, de 1998, com a redação acima mencionada, vale dizer, a resultante da adoção da MP nº 2216-37, de 31 de agosto de 2001, que continua em vigor, com base no art. 2º da Emenda Constitucional nº 32 de 11 de setembro de 2001, considerada a jurisprudência do STF a esse respeito (v.g. ADI-MC nºs, 221, 293, 1176, 1205 e 2984). Não há notícias de que a CEF tenha feito uso da prerrogativa remanescente acima apontada.
É importante observar, paralelamente, que desde 11 de julho de 2002 encontrava-se em tramitação no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.690, pela qual o Governador do Estado do Rio Grande do Norte buscava, junto à Excelsa Corte, a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.118, de 27 de maio de 2002, promulgada pela Assembleia Legislativa do Estado potiguar. Cuidava o referido diploma legal da instituição da Loteria do Estado do Rio Grande do Norte, dispondo que essa seria explorada diretamente pelo governo ou por concessionário, mediante concorrência pública. O Estado de Goiás solicitou a intervenção no feito, na condição de Amicus Curiae.
A decisão nessa ADI, pelo STF, em 7 de junho de 2006, na esteira do voto do eminente Ministro Gilmar Mendes, que concluiu pela inconstitucionalidade da referida lei estadual, apontava, ainda, para o precedente da ADI nº 2.847, proposta pelo Procurador-Geral da República, julgada em 5 de agosto de 2004 (relator: Ministro Carlos Mário Velloso), pela qual foram declaradas inconstitucionais as Leis nº 1.176, de 1996, 2.793, de 2001, 3.130, de 2003 e 232, de 1992, todas do Distrito Federal que cuidavam da exploração de jogos e loterias. Essas decisões serviram de supedâneo para a edição da Súmula Vinculante nº 2, do STF, publicada em 6 de junho de 2007, vazada nos seguinte termos:
“É inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias.”
Nesse contexto, não obstante a rejeição da MP nº 168, de 2004, avultava-se o cerco da lei e dos tribunais aos empreendimentos na área de jogos de azar (bingos ou jogos em máquinas eletrônicas denominadas caça-níqueis, videopôquer ou qualquer outra marca de fantasia) que buscavam a roupagem da licitude nas leis estaduais ou do Distrito Federal. Assim, pode-se compreender o interesse de quem operasse ilegalmente jogos dessa natureza – em face do art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688, de 1941; do art. 45 do Decreto-Lei nº 6.259, de 1944 e do art. 1º do Decreto-Lei nº 204, de 1967 – na aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 51, de 2002 (PL nº 7.228, de 2002, na Câmara dos Deputados).
Convolada a proposição em lei, suplantar-se-ia o óbice constitucional que já vinha sendo apontado pelo STF, desde 5 de agosto de 2004. Pelo art. 4-B, mencionado por Cachoeira, que se acresceria, pelo projeto em questão, à Lei nº 1.521, de 1951 (Crimes contra a Economia Popular) – legislação federal – os Estados e o Distrito Federal poderiam, mediante licitação, autorizar serviços de loteria. Além disso, a proposição, obnubilando o deslocamento de empreendimentos àquela altura ilícitos para o campo da legalidade (operação de loterias estaduais, mediante licitação), carregava na conversão em crime de conduta hoje tipificada como contravenção penal: “explorar ou realizar, sem a devida autorização legal, concurso de sorteios de números ou quaisquer outros símbolos, por meio manual ou eletrônico, destinado à obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de qualquer natureza, ou praticar ato relativo a sua realização ou exploração” (art. 4-A).
Portanto, quem lograsse ficar, por força de lei federal, sob o manto protetor de uma concessão estadual para exploração de concurso de sorteios de números ou quaisquer outros símbolos, por meio manual ou eletrônico, destinado à obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de qualquer natureza”, não correria o risco de “ser pego”. Dessa maneira, a consigna para quem estivesse operando nesse vasto espectro empresarial do entretenimento em jogatina seria “mandar brasa” na aprovação do PLS nº 51, de 2002 (Projeto de Lei 7.228/2002 na Câmara dos Deputados).
Mas é preciso atentar, também, para a importância de um relacionamento frutífero com a Caixa Econômica Federal, considerado o seu papel histórico no segmento de jogos e sorteios e a evolução dos fatos acima narrados, tendentes a reforçar, caso não ocorresse a aprovação do PLS nº 51, de 2002 (PL nº 7.228, de 2002), a sua importância no setor. Isso será trazido à baila, neste relatório, mais adiante.
Ainda na órbita das proposições legislativas, observo que, no dia 05/11/2008 a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, sob a Presidência do Senador Marco Maciel, votou e aprovou o Projeto de Lei do Senado nº 274 de 2006, oriundo da CPI dos Bingos, relatado pelo Senador Jarbas Vasconcelos. Seu objetivo era criminalizar a exploração de jogos de azar e tornar mais eficiente a persecução penal nos casos de lavagem de dinheiro. O Senador Demóstenes Torres, parlamentar assíduo e sempre atuante nos debates que envolvem matéria penal, não estava presente à reunião. Uma de suas raras ausências nos embates naquela Comissão, justamente quando se decidia relevante projeto significativo da CPI dos Bingos sobre o tema da criminalização dos jogos.
Sendo proposição de autoria de comissão, a matéria foi encaminhada ao Plenário. Nessa fase, o Senador Eduardo Suplicy apresentou emenda substitutiva ao PLS nº 274, de 2006, baseado no entendimento de que a aprovação do texto, tal como acolhido pela CCJ, não reprimia, com todo o vigor, outras modalidades de jogos de azar: os que tivessem por supedâneo autorizativo outorgas irregulares de loterias estaduais e as apostas em corridas de cavalo realizadas fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas.
Devolvida a matéria à CCJ para que fosse relatada a Emenda, no dia 12 de março de 2009, o Senador Jarbas Vasconcelos devolveu o processado, por não mais ser membro da CCJ. A matéria deveria, a rigor, ter nova distribuição, para que fosse relatada a emenda de Plenário, oferecida pelo Senador Eduardo Suplicy, que incluía as loterias estaduais no projeto, para tipificá-la como crime, com a mesma natureza dos demais jogos de azar elencados. Contudo, a proposição ficou parada por dois anos, até ser arquivada pelo fim da legislatura, em janeiro de 2011, nos termos do art. 332, do Regimento Interno do Senado Federal.
O Projeto, portanto, já aprovado no mérito, ficou parado, sem distribuição de relator para a Emenda, nos anos de 2009 e 2010, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ. No biênio citado, o Presidente da CCJ era justamente o Senador Demóstenes Torres. Conduta bastante indagável de um parlamentar que se reivindica diligente no processo legislativo e, afirmando-se militante contrário à legalização dos jogos de azar, deixou de – usando a autoridade que lhe cabia – dar curso ao Projeto de Lei que alcançaria a finalidade de transformar em crime a contravenção penal da exploração de jogos de azar.
O último projeto que tramitou no Senado Federal com matéria dessa natureza foi o Projeto de Lei do Senado nº 31 de 2011, que pretendia regulamentar a prática do jogo do bingo em todo o território nacional. O projeto chegou a tramitar na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. O Representado não interveio na sua tramitação. Superada a fase de emendas sem que nenhuma fosse apresentada, a proposição foi formalmente retirada pelo autor e arquivada em 24 de março de 2011.
De tudo que foi posto, é importante esclarecer que não se está a fazer qualquer indagação ou crítica sobre a posição política do Senador Demóstenes Torres na votação de matérias ou na condução de seu mandato, mesmo porque isso seria intervir no seu direito primeiro de parlamentar, que é a liberdade de votar segundo suas convicções.
A defesa, por palavras e votos, de qualquer tema, escora-se no direito constitucional do Parlamentar, exceto, por óbvio, se atuar em prol de interesses particulares de terceiros.
Tampouco despreza-se que as inúmeras atribuições a que temos que dar resposta dificulta nossa atuação formal parlamentar, por vezes nos impedindo de participar com mais afinco desse ou daquele colegiado ou tema. O propósito das colocações aqui feitas dizem somente com a verificação da, textualmente afirmada, militância do Senador Demóstenes Torres contrária à legalização dos jogos de azar, no discurso proferido no dia 06 de março de 2012, o que, efetivamente, não se verifica, diante das principais proposições legislativas postas ao crivo desta Casa e de pronunciamento feito pelo próprio Senador, conforme demonstrarei adiante.
Oportuno consignar que o registro, seja de proposição, relatoria, discurso ou aparte, que apontasse para a postura do Senador Demóstenes Torres contrária à legalização dos jogos de azar, como afirmou em seu discurso, poderia colocá-lo, ao menos em tese, em confronto com interesses do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos, com quem, de acordo com as acusações formuladas na peça de Representação, teria ligações que contrariam a ética e o decoro parlamentar.
Ao revés do afirmado pelo Senador Demóstenes Torres, no entanto, há evidente manifestação oral em defesa da legalização dos jogos de azar.
Com efeito, no dia 18 de junho de 2003, o Senador Demóstenes Torres, a pretexto da discussão de redefinição do modelo de segurança pública no Brasil, e da instituição da “Escola em Tempo Integral” (projeto por ele destacado em sua peça de defesa – item 4) como prevenção da criminalidade, assim assentiu:
“……………………………………………………………………..
Srªs e Srs. Senadores, acredito que uma maneira de obter os recursos suficientes para a instituição da Escola em Tempo Integral é a legalização de todas as modalidades de jogos de azar. Eu, particularmente, sou avesso a tal conduta, não me agrada o ambiente dos cassinos, mas tenho de reconhecer que uma tremenda hipocrisia domina o tratamento que se dá à matéria no Brasil.
Neste País a jogatina atua em escala industrial, com controle débil, alimenta a corrupção policial, a corrupção judiciária e a corrupção política, causando perdas incomensuráveis de receita tributária. Enquanto o cassino-empreendimento é formalmente proibido, na rede mundial de computadores, milhares de sites, operados a partir da Costa Rica, oferecem toda modalidade de jogo virtual sem qualquer critério. No Brasil, atuam clandestinamente alguma coisa próxima de 500 mil máquinas caça-níqueis. É mais que nos Estados Unidos, onde existem 434 cassinos.
O Brasil pode legalizar e controlar a atividade por intermédio de uma legislação rígida e um órgão de gestão insuspeito, como ocorre no modelo americano, formado pelo Ministério Público, Receita Federal, Polícia Federal e empresários afins. Somente o segmento do cassino planeja investir no Brasil aproximadamente US$1,5 bilhão, gerar mais de uma centena de milhares de empregos e produzir uma receita fiscal capaz de praticamente financiar a Escola em Tempo Integral. Nos Estados Unidos, em 2001, de acordo com dados da Agência Estatal de Regulação dos Jogos, o recolhimento tributário do setor alcançou a cifra de US$3,6 bilhões. Naturalmente que o mercado brasileiro vai gerar receita bem mais tímida, mas, com certeza, capaz de financiar o desafio educacional deste País.
Não estou falando em nada de inusitado. O Brasil já utiliza o dinheiro do jogo legal para subsidiar o estudante universitário pobre e os atletas olímpicos brasileiros. De acordo com o balanço do ano passado da Caixa Econômica Federal, as loterias administradas pela União repassaram R$1,3 bilhão, fora a geração de R$386,4 milhões em Imposto de Renda e a transferência de R$940,7 milhões para a constituição do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Penitenciário, custeio da Seguridade Social, do Crédito Educativo, dos clubes de futebol, da Secretaria Nacional de Esportes e do Comitê Olímpico Nacional.” (Diário do SF de 19/06/2003 – página 15862)
O pronunciamento não deixa qualquer dúvida de que o Senador Demóstenes Torres, diferentemente do que ora afirma, possui posição favorável à legalização dos jogos de azar. Não se trata de conjecturas ou interpretações, é o que está literalmente escrito.
Não por acaso, os argumentos adotados pelo Senador são similares àqueles utilizados por vários parlamentares favoráveis à legalização dos jogos, nos quais o central é a geração de receita, retirando a prática da clandestinidade e transformando-a em atividade econômica.
A defesa do Senador Demóstenes pela legalização de todos os jogos de azar aponta a educação como beneficiária dos valores arrecadados a partir da regulamentação, acrescentando ainda Sua Excelência que a legalização facilitaria o controle pelo Estado.
Novamente, necessário assegurar que não há nenhuma censura a qualquer posição assumida pelo Senador no exercício de seu mandato, o que ficará perfeitamente evidente na conclusão do raciocínio lógico do relatório.
Outro fato chama, sobremaneira, a atenção, no que tange à sua atuação parlamentar, para os fins desta Representação: um requerimento de informações apresentado em 22 de maio de 2003.
Da tribuna, o Senador Demóstenes Torres sustentou que conheceu o Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos quando o primeiro era Secretário de Segurança do Estado de Goiás, entre 1999 e 2002, durante o primeiro mandato do Governador Marconi Perillo (PSDB). Antes disso, importa lembrar, Sua Excelência fora Procurador-Geral de Justiça, vale dizer chefe do Ministério Público do Estado de Goiás. Em 6 de outubro de 2002, o Representado foi eleito Senador da República pelo Estado de Goiás. Seria o seu primeiro mandato parlamentar.
Carlinhos Cachoeira tornou-se nacionalmente conhecido quando a revista Época (edição nº 300, distribuída em 14/02/2004) publicou uma matéria contendo a degravação de um vídeo, no qual há o registro de um diálogo com Waldomiro Diniz – na época ocupante do elevado cargo de Subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil da Presidência da República. Pela conversa, tem-se que Waldomiro Diniz lhe solicitava propina, no contexto da adjudicação a Carlinhos Cachoeira de modalidade de jogo operada pela Loterj, quando seu interlocutor presidia aquela entidade lotérica estadual, no ano de 2002. Sem embargo da exoneração do Senhor Waldomiro Diniz, a esse episódio o governo reagiu com a edição da já exaustivamente citada Medida Provisória nº 168, de 20 de fevereiro de 2004. O episódio ensejou, de imediato, a criação da “CPI da Loterj”, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e, mais tarde, da CPI dos Bingos, no âmbito deste Senado Federal.
De acordo com o relatório da CPI dos Bingos, estava em curso, no ano de 2002, a assunção pela Caixa Econômica Federal da inteligência e gestão da rede lotérica que, desde 1997, vinha sendo objeto de operação pela GTech do Brasil Ltda. Segundo as conclusões do referido inquérito parlamentar, com amparo em decisão do TCU, tal prestação de serviços era levada a cabo de forma absolutamente irregular (v. Processo nº 018.125/1996-4, do TCU). Convém não olvidar que a Gtech já era sócia, desde 1994, da Racimec Informática Brasileira S.A, operadora de loterias da CEF a partir de 1993. A preços de 1º de março de 2005, de acordo com o TCU – conforme informou a CPI – a CEF pagou à Gtech, no período de 13 de abril de 1997 a 14 de abril de 2003 cerca de R$ 312 milhões. Vale recordar que a GTech do Brasil Ltda. faz parte do conglomerado econômico norte-americano Gtech Corporation, sediado no Estado de Rhode Island, com notória expertise em operações de jogos no sistema on line real time, e destacada participação na arrecadação de todo o comércio de jogos em escala mundial.
Em consonância com o relatório da CPI dos Bingos, “durante o último trimestre de 2002, a empresa Gtech e a CEF mantiveram reuniões duríssimas em que se tratava da renovação do contrato, que venceria em janeiro de 2003” (vol II, p. 1056). O referido contrato foi renovado por noventa dias em 13/01/2003; finalmente, em 08/04/2003 o contrato é renovado em bases definitivas, para um período de vinte e cinco meses, por um valor total de cerca de R$650,25 milhões”.
É preciso aqui compreender o que aconteceu, nesse curto interregno, antes do desfecho da “novela” dessa renovação contratual, consoante as informações colhidas pela CPI dos Bingos.
Em janeiro de 2003 inicia-se uma triangulação de tratativas envolvendo Gtech, Waldomiro Diniz e Carlinhos Cachoeira. Reproduzo aqui trecho do relatório da CPI dos Bingos a esse respeito:
“Segundo os elementos levantados pela CPI da Alerj, a publicamente conhecida fita gravada por Cachoeira, em que Waldomiro Diniz aparece pedindo propina, teria sido usada para chantagear Diniz, quando este assumiu suas funções de assessor direto do ministro da Casa Civil da Presidência da República, José Dirceu, a partir de janeiro de 2003. Em seu depoimento à ‘CPI da Loterj’, Waldomiro Diniz informou que, no início de janeiro de 2003, recebeu em seu gabinete ligação do jornalista Mino Pedrosa, dono de uma empresa de consultoria que prestava serviços a Carlos Cachoeira, dizendo, segundo as palavras do depoente: ‘Olha, Waldomiro, queria me certificar com você sobre o que você tem a dizer sobre uma fita em que você está pedindo dinheiro para a campanha para um bicheiro de Goiás’. Ao ligar para Cachoeira, este lhe explica a razão da chantagem: ´É que você não retorna minhas ligações. Eu quero falar com você. Eu tenho coisas para falar com você e você não retorna minhas ligações’”.
“Cachoeira – prossegue o relatório da CPI dos Bingos – conforme depoimento de Waldomiro Diniz, só usa a fita como instrumento de chantagem a partir de janeiro de 2003, para que Diniz, então assessor direto do ministro da Casa Civil do Palácio do Planalto o ajudasse a fechar um acordo com a Gtech.” (negritos nossos, vol. II, p. 1089).
Em seu depoimento prestado sob compromisso (art. 203, Código de Processo Penal) à CPI da Loterj, oitiva essa reproduzida no relatório da CPI dos Bingos (vol. II, p. 1092), o Senhor Fernando Antônio de Castro Cardoso, diretor da Gtech do Brasil Ltda., afirma:
“Conforme faz parte de nosso comunicado oficial, ele entrou em contato com a Gtech solicitando essa reunião. Acho que também vale a pena ressaltar que faz parte dos depoimentos que, no primeiro contato (…) o Sr. Carlos Ramos nos ligou, no início de janeiro, dizendo então que havia interesse do Sr. Waldomiro Diniz no encontro com executivos da Gtech, para discutir, e que ele estava agora com novas funções a nível de (sic) governo federal e que iria entrar em contato novamente para solicitar um encontro com nossos executivos. Conforme fui informado pelo Sr. Carlos Ramos, o Sr. Waldomiro entrou em contato novamente com a Gtech, e aí, dessa forma nós confirmamos então o encontro o primeiro encontro em Brasília. Nesse primeiro encontro, a pauta de conversas foi bastante ampla no que diz respeito a nós provermos um histórico de todo o relacionamento que nós tivemos com a Caixa Econômica, as dificuldades encontradas na renegociação comercial, basicamente dificuldades técnicas na modelagem do escopo de serviço que iríamos prestar para a Caixa Econômica, na renovação. E, feitos todos esses esclarecimentos, no final do encontro, o Sr. Waldomiro, então, conforme já mencionei, reforçou referências do Sr. Carlos Ramos, como empresário, como uma pessoa que realmente opera no setor e realmente sugerindo que a companhia explorasse o relacionamento e as possibilidades de negócios em conjunto.” (vol. II, p. 1092, negritos do relatório da CPI)
Igualmente, o Senhor Lino da Rocha, presidente da Gtech do Brasil, ao depor perante a CPI da Loterj, disse que “na reunião de 13/02/2003, Waldomiro Diniz fez ‘referências positivas’ sobre a atuação das empresas de Carlos Cachoeira junto à Loterj”. (relatório da CPI dos Bingos, vol. II, p. 1106)
Cachoeira não era um desconhecido da Gtech em janeiro de 2003. O depoente Fernando Antônio de Castro Cardoso esclarece (relatório da CPI dos Bingos, volume I, p. 216) que a Gtech fora procurada pelo Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos, em 2002, para uma parceria em loterias estaduais. Um memorando de intenções chegou a ser firmado pelas partes, mas, concretamente, nenhum negócio chegou a ser ajustado. Para a CPI dos Bingos, “o mais provável é que Cachoeira, que tinha interesse em fechar negócio com a Gtech e que tinha largo conhecimento sobre a propensão de Waldomiro Diniz por negociatas e propinas, tenha informado o mesmo sobre as dificuldades de renonovação do contrato da Gtech com a Caixa e tenha o estimulado a procurar a empresa para realizar um acerto vantajoso para as três partes”. (relatório da CPI dos Bingos, vol. II, p. 1128)
Posteriormente à troca de telefonemas em janeiro de 2003 e em seguida à renovação provisória do contrato CEF/Gtech – diz o relatório da CPI dos Bingos – “em paralelo, aconteciam reuniões de bastidores entre os Srs. Waldomiro Diniz, então subchefe de assuntos parlamentares da Casa Civil da Presidência da República, Carlos Augusto de Almeida Ramos, conhecido como Carlinhos Cachoeira, empresário[s] de jogos de Goiás, Marcelo José Rovai, diretor comercial da Gtech, Antônio Carlos Lino da Rocha, presidente da Gtech no Brasil, Marcos Andrade, vice-presidente da Gtech do Brasil e Enrico Gianelli, advogado do escritório Fischer & Foster, que prestava serviços à Gtech. Tais reuniões não-oficiais, ocorridas em sua maior parte no Hotel Blue Tree, em Brasília/DF, tiveram como tema a renovação do contrato da Gtech com a CEF”. (negritos e colchete meus, relatório da CPI dos Bingos, vol II, p. 1057)
Como desdobramento desses encontros, é assinado um segundo memorando de intenções entre a Gtech e o Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos. Isso teria ocorrido entre abril e maio de 2003, como afirmou o Senhor Fernando Antonio de Castro Cardoso (relatório da CPI dos Bingos, vol. I, p. 216). Dois seriam os objetos: uma possível parceria na Loteria do Estado de São Paulo e a subcontratação da Gtech, por Carlinhos Cachoeira para operação de videoloterias. Importa aqui repisar que a operação de videoloterias, nos termos do Decreto-Lei nº 6.259, de 1944, dependeria, naquele momento, de autorização da União e que, exatamente naquela mesma ocasião, se discutia, também, a manutenção ou não da Gtech à frente da gestão da rede lotérica da Caixa Econômica Federal.
A CPI dos Bingos esclarece que “as negociações entre a Gtech e a CEF, já com a nova diretoria, foram ultimadas em apenas duas únicas reuniões, resultando na renovação em 08/04/2003, do contrato por mais 25 meses, com desconto de 15%”. (vol. II, p. 1058).
Tudo revisto é forçoso concluir que, dos dois vértices empresariais participantes das referidas reuniões “de bastidores”, “não-oficiais”, um único interlocutor empresarial não teve seus interesses acolhidos: Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira.
Com efeito, lê-se no relatório da CPI dos Bingos, que Marcelo Rovai, diretor comercial da Gtech, em depoimento prestado à Polícia Federal, teria dito que, “em maio de 2003, a matriz da empresa nos EUA determinou o cancelamento de todas as negociações em curso com Carlos Cachoeira” (vol. II, p. 1103). A cronologia dos fatos relacionados à renovação contratual em foco, formatada pela CPI dos Bingos, confirma essa declaração: à página 1094 do relatório da CPI dos Bingos lê-se: “Maio/2003 – Gtech afirma ter encerrado todas as negociações com Carlinhos Cachoeira”.
Portanto, das partes envolvidas nessas negociações, uma poderia ser tomada por sentimento de vingança, por ter propiciado a ambiência favorável a esse desiderato, e sentir-se, depois, excluída e lograda: Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira.
Exatamente no dia 22 de maio de 2003 é lido no Plenário do Senado Federal um requerimento de informações – o primeiro dessa natureza oferecido por um novel senador, no início daquela legislatura – dirigido ao Ministro do Estado da Fazenda, pelo qual são solicitados os seguintes documentos: a) cópia autenticada do contrato assinado entre a Caixa Econômica Federal e a Gtech do Brasil Ltda.; b) edital de concorrência que amparou tal contratação; c) aditivos contratuais assinados. Na justificação o autor argumenta: “Em 1996, a Gtech do Brasil Ltda. venceu a licitação da Caixa Econômica Federal (CEF) e tornou-se responsável pela implementação e operação de sistemas on line das loterias federais. Considerado o volume expressivo de recursos relativos a esses contratos, seria de bom alvitre que o Senado Federal recebesse cópia autenticada do contrato assinado entre a Caixa Econômica Federal e a Gtech do Brasil Ltda., o edital de concorrência que amparou tal contratação e, ainda, possíveis aditivos contratuais”.(Diário do Senado Federal, 23/05/2003, p. 12532)
Em 5 de agosto do mesmo ano, o mesmo senador faz a seguinte reclamação no Plenário: “Há aproximadamente dois meses, recebi algumas denúncias sobre irregularidades em um contrato entre a Caixa Econômica Federal e uma empresa denominada Gtech”. Em seguida, diz que recebera a documentação solicitada em 22 de maio, mas que a mesma viera “completamente mutilada”, faltando cópias do contrato firmado após a Licitação nº 0001/94, dos processos administrativos referentes à renovação do contrato em 1997 e dos termos aditivos subseqüentes, do distrato firmado em 26 de maio de 2000 e do contrato firmado na mesma data e dos termos aditivos subseqüentes. Protesta pelo cumprimento da determinação do Senado Federal, “para que sejam fornecidos todos os documentos restantes e que não foram remetidos conforme determinação da Mesa do Senado Federal aprovada pelo Plenário (sic)”. (Diário do Senado Federal, 06/08/2003, p. 22202)
Nove meses mais tarde, logo após a divulgação pela revista Época do teor do vídeo produzido por Carlinhos Cachoeira, precisamente na sessão deliberativa ordinária de 17 de fevereiro de 2004, o mesmo senador, sem fazer qualquer menção aos personagens envolvidos no diálogo constante do vídeo em evidência, renova o requerimento de informações, solicitando, agora, peças adicionais (Requerimento nº 165, de 2004). O Senador Álvaro Dias, na oportunidade, elogia a capacidade de antevisão daquele senador que, lá no longínquo 22 (vinte e dois) de maio do ano anterior, solicitara informações sobre o contrato CEF/Gtech. Assim se manifestou o Senador Álvaro Dias: “Vossa Excelência, com muita competência, se antecipou ao escândalo e já havia pedido esclarecimentos sobre essa questão relevante no imbroglio em que se constitui, agora, a presença do Senhor Waldomiro Diniz no governo”. (Diário do Senado Federal, 18/02/2004, P. 04669)
Indaga-se: quem estaria a par das tratativas entabuladas nas coxias, no período compreendido pelos meses de janeiro e abril de 2003, entre a Gtech e a CEF, para o fim de renovação contratual, e que poderia, na condição de detentor de uma informação explosiva e com sede de vindita, denunciá-la por irregular? Todas as suspeitas recaem, obviamente, sobre aquele que se sentiu prejudicado nas negociações: Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira.
O que explicaria a imediata conexão cronológica entre a suspensão dos entendimentos entre a Gtech e Carlinhos Cachoeira, em maio de 2003 e, sem detença, a apresentação, no Senado Federal, de um requerimento de informações sobre todo o processo de contratação da Gtech e a Caixa Econômica Federal? Tudo leva a crer que seriam os vínculos que já ligavam o Senhor Carlinhos Cachoeira ao autor do requerimento protocolizado em 22 de maio de 2003: o Senador Demóstenes Torres.
Repisando questões fundamentais para o prosseguimento deste feito: de onde vieram as informações que balizaram o requerimento, feito nove meses antes que os fatos se tornassem públicos? Qual era, então, o interesse de um Senador da República em um procedimento licitatório que não possuía, àquele tempo, qualquer questionamento público? Quem estaria a par das tratativas “não-oficiais”, entabuladas, no período compreendido pelos meses de janeiro e abril de 2003, entre a Gtech e a CEF, para o fim de renovação contratual, e que poderia, na condição de possuidor de informação comprometedora e tomado pelo espírito de desforra, denunciá-la por lesiva aos interesses públicos? Sinceramente, seria inverossímil qualquer tese que não apontasse para a direção de Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira.
O que explicaria a provocação, incontinenti, do Senado Federal, para que exercesse suas prerrogativas fiscalizatórias sobre todo o processo de contratação da Gtech e a Caixa Econômica Federal? Tudo leva a crer que seriam os liames – que não se limitavam a uma despretensiosa amizade – que já uniam o Senhor Carlinhos Cachoeira ao autor do requerimento, ora Representado.
Sintomático, ainda por ocasião desse episódio da divulgação do vídeo, em 2004, é que houve eloquentes discursos dos líderes da Oposição, da tribuna do Senado, com ataques ao PT, ao governo Lula e ao próprio contraventor. O Senador Demóstenes Torres fez quatro pronunciamentos sobre o assunto, nos dias 16/02/2004, 17/02/2004 (duas vezes) e no dia 02/03/2004, onde trazia todo o arrazoado sobre como enxergava o processo e alguns de seus atores, sem citar uma única vez o nome daquele que era apontado nas investigações como corruptor, justamente o Sr. Carlos Augusto de Almeida Ramos. Carlinhos Cachoeira. Nas alocuções dos demais senadores Carlinhos Cachoeira era desqualificado, enxovalhado, sobretudo por outros próceres oposicionistas.
De outro lado, diante da constatação fática de que suas relações com Carlinhos Cachoeira em muito ultrapassavam os critérios de um relacionamento social, o argumento utilizado na Representação acerca do recebimento reprovável pelo Senador Demóstenes Torres de presentes de alto valor, aceitos por ocasião de seu enlace matrimonial, e de um aparelho celular-rádio Nextel, adquirido no exterior, além de conversas telefônicas admitidas pelo Representado e não bem explicadas, de negociações envolvendo o fretamento de um avião, coloca-nos diante da interpretação do conceito de percepção de vantagem indevida de que trata o inciso II, do art. 5º da Resolução nº 20, de 1993.
É que, não obstante as relações pessoais não serem consideradas provas de participação em negócios escusos de outra pessoa, bem como o recebimento de presentes não configurar, em princípio, ilícito, a ponderação posta na peça de Representação mostra-se bastante razoável. O recebimento de presente de parente ou amigo somente deixa de ser questionável como vantagem indevida se não tiver relação com o exercício da função pública, o que, novamente, nos coloca diante de fortíssimos indícios de relações que extrapolam uma simples amizade entre o Representado e o contraventor como corolário de sua evidente falha de conduta.
Não me parece crível que Sua Excelência, o Representado, cujo saber jurídico é notório; que fora duas vezes Procurador-Geral de Justiça e Secretário de Segurança Pública do Estado de Goiás, não soubesse que um destacado contraventor daquele ente federado operava atividades que eram, quando assumiu seu mandato senatorial, em 1º de fevereiro de 2003, ilegais.
Por conseguinte, evidencia-se que o discurso proferido pelo Senador Demóstenes Torres, no dia 6 de março de 2012, apresenta inevitáveis contradições, tanto porque a afirmação de militância contrária à legalização dos jogos de azar se mostra uma inverdade, verificada no curso de sua atuação parlamentar, sobremaneira pelo discurso proferido no dia 18 de junho de 2003, em trecho supratranscrito, bem como com pelos fatos notórios divulgados a posteriori sobre suas relações com o contraventor Carlinhos Cachoeira.
A propósito do tema, o professor José Afonso da Silva escreveu em artigo intitulado “Renúncia Inviável”, publicado no Jornal do Brasil de 20 de maio de 2001:
“faltar com a verdade em questões atinentes ao exercício da função parlamentar é certamente um conduta incompatível com o decoro parlamentar, porque o Parlamento é uma instituição da representação popular que reclama conduta irrepreensível de seus membros.”
Para que não alegue o Representado que se está a valer-se de prova imprestável, porque obtida através de vazamento de informações, que fazem parte de processo que corre em segredo de justiça, e em absoluto respeito aos precedentes desta Casa, abstenho-me de fundamentar meu voto em fatos divulgados na mídia.
Valho-me, neste arrazoado, de evidências coletadas por atos do processo legislativo no Senado Federal. Entendo que questões gravíssimas, como a que diz respeito ao repasse pelo contraventor Carlinhos Cachoeira ao Representado de um aparelho telefônico da marca Nextel, habilitado nos EUA, fato confirmado pelo Representado (item 142 da Defesa Prévia) a par de ser forte indício, por si só, de percepção de vantagem indevida, deve com certeza ser objeto de instrução probatória.
Lembro, no entanto que, à luz do que dispõe o inciso I, do art. 334, do Código de Processo Civil, utilizado subsidiariamente nos procedimentos deste Conselho (art. 26-B, da Resolução nº 20, de 1993), fatos notórios independem de prova. É que, apesar da regra processual civil a propósito do ônus da prova, como também a garantia constitucional do direito à prova – esta capaz de efetivar o acesso à justiça – tal direito não pode ser reputado absoluto, como, aliás, nenhum direito ou princípio é irrestrito.
É do seguinte teor o dispositivo legal:
“Art. 334. Não dependem de prova os fatos:
I – notórios;
II – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;
III – admitidos, no processo, como incontroversos;
IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.”
É notória a existência de uma relação muito além de simples relacionamento de amizade entre o Senador Demóstenes Torres e o Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos, não apenas pelos fatos divulgados na imprensa, que não se pretende aqui adotar como base de decisão, mas, sobretudo, por fatos confirmados pelo próprio parlamentar, senão vejamos:
– o Senador Demóstenes Torres confirma que recebeu, como presente de casamento, do Sr. Carlos Augusto de Almeida Ramos, uma geladeira e um fogão importados;
– o Senador Demóstenes Torres confirma que recebeu do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos um aparelho celular-rádio da marca Nextel, quando este retornou de uma viagem aos Estados Unidos;
– o Senador confirma ter trocado “centenas” de telefonemas com o contraventor já durante o exercício de seu mandato parlamentar;
– o Senador admite terem sido feitas “milhares” de referências ao seu nome em diálogos entre Cachoeira e terceiros;
– o Senador admite a conversa com Cachoeira que trata do pagamento do aluguel de uma aeronave.
Os fatos admitidos formalmente pelo Senador Demóstenes Torres, em sua peça de Defesa Prévia, são, em maioria, elencados como indícios pelo Representante na peça inicial.
Embora, como já anteriormente declarado, este relatório não adote as matérias divulgadas na mídia como elementos de comprovação de conduta – mesmo porque, também como já salientado, não se está tratando de matéria de prova – não há como afastar o fato de que a voz do Senador é perfeitamente reconhecível nas conversações trazidas a público. O conteúdo de algumas das gravações tratam da aprovação de projetos no Congresso Nacional sobre os chamados “jogos de azar”.
Indícios são uma forma de conhecimento tirado de um fato existente, por via de um raciocínio lógico, capaz de nos levar, com relativa certeza, ao conhecimento de outro fato. Os indícios realizam a indicação do fato que se mostra evidente. Constituem-se nos vestígios que possuem relação com o fato que se pretenda provar.
Previstos no artigo 239, do Código de Processo Penal, os indícios são admitidos, também em matéria judicial, como um raciocínio dedutivo, onde se deve valorar as outras provas ou circunstâncias, e não o indício isoladamente, para chegar-se a uma conclusão.
“Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”
Apropriado trazer, como fonte de precedente desta Casa, a contundente manifestação do Senador Demóstenes Torres, por ocasião do julgamento da Representação nº 01/2007, contra o Senador Renan Calheiros, diante deste Conselho de Ética e Decoro Parlamentar:
“Não me venham com a história de que meros indícios ou de que apenas indícios não são suficientes para ensejar uma condenação. São sim! O Código de Processo Penal tem um Capítulo – “Dos Indícios” – com um artigo que dispõe claramente a respeito do tema. E os indícios levantados pelo Senador Jefferson Peres são mais que suficientes para provar que o Senador Renan Calheiros quebrou o decoro parlamentar.” (Diário do Senado, 05/12/2007, p. 43338)
Deixando de concordar com o Senador Demóstenes Torres no ponto em que considera indícios como suficientes para condenar, entendo, no entanto, que se mostram elementos bastantes para ensejar investigação no âmbito deste Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.
Ainda, a propósito de matéria de prova, tanto evidenciada na peça de defesa, é relevante destacar que o Senador Demóstenes Torres ajuizou a Reclamação nº 13.593/2012/GO, junto ao Supremo Tribunal Federal, requerendo a suspensão do Inquérito nº 3.430/2012, que tramita contra ele naquele Tribunal, como, inclusive, faz menção no item 224 da Defesa Prévia.
Sua Excelência sustenta, no feito junto ao STF que, ao processar interceptações telefônicas, os dois magistrados que as autorizaram teriam usurpado competência da Suprema Corte, uma vez que, de modo velado, promoveram a investigação de parlamentares, que têm prerrogativa de foro, ou seja, o direito de ser julgados, originariamente, pelo STF sem, todavia, chamá-los formalmente de investigados.
No dia 13 de abril último o Ministro Ricardo Lewandowski, relator do processo, indeferiu o pedido de liminar e solicitou informações aos juízes federais da 11ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Goiás e da Vara Única da Subseção Judiciária de Anápolis (GO), que autorizaram escutas telefônicas envolvendo o Senhor Carlinhos Cachoeira.
Como se dessume da decisão do Ministro, até mesmo em processo judicial, em que se considera necessária certeza, ainda que relativa, para proferir uma condenação, a desqualificação de provas – mesmo que possuam sobre si uma alegada pecha de inconstitucionalidade ou ilegitimidade – se mostra de difícil aceitação. A finalidade da prova é o convencimento de quem julga e o seu uso deve ter por fundamento os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Ocorre que não seria razoável a desqualificação liminar de evidências dos desvios de conduta do senador investigado, obtida pelos meios eletrônicos de captação de prova, que foram criados para que o Estado tivesse meios de lutar contra o crime organizado, através de legislações que disciplinam o assunto, de onde se destaca a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, que, regulamentando o inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal, disciplina o regime legal das interceptações telefônicas. Não o foi no processo judicial, menos ainda o seria no processo político.
Nessas circunstâncias, tem-se que, questões que estariam presentes nos autos do Inquérito remetidos pelo Supremo Tribunal Federal à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Congresso Nacional, criada pelo Requerimento nº 1, de 2012, com autorização do Relator, Ministro Ricardo Lewandowski para o compartilhamento das informações com este Conselho de Ética, tais como tráfico de influência que teria sido praticado pelo Senador Demóstenes Torres, também objetos de diversos áudios divulgados, dentre outras que possam constar nos documentos recebidos, serão objeto de análise e investigação.
Ante todo o exposto, é razoável concluir, pelo menos no plano dos indícios, ressalto, como dispõe o art. 15-A da Resolução nº 20, de 1993, que:
a) o Representado teria conhecimento das atividades ilícitas do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos;
b) o Representado teria atuado, no exercício do seu mandato parlamentar, de forma a fazer prevalecer os interesses do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos no segmento de jogos de azar;
c) o Representado teria faltado com a verdade em seu pronunciamento, no dia 6 de março de 2012, no Plenário do Senado Federal, ao afirmar que somente possuía com o Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos relações sociais, bem como ao afirmar que sempre atuou no Senado de forma contrária à legalização dos chamados “jogos de azar”
d) o Representado teria recebido do Senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos valor questionável na forma de presente de casamento;
e) o Representado teria recebido vantagem indevida ao aceitar, também de presente, do Sr. Carlos Augusto de Almeida Ramos um aparelho celular-rádio Nextel, cujo pretexto e finalidade são igualmente passíveis de questionamentos;
f) o Representado teria tratado, em telefonema assumido por ele, com o Sr. Carlos Augusto de Almeida Ramos, acerca do uso de uma aeronave.
Superadas as preliminares, o próprio Representado constrói o norte da admissibilidade desta Representação, ao solicitar, no mérito, a produção de diversas provas que, a toda evidência só podem ser realizadas no curso do Processo Disciplinar.
A conclusão, portanto, não poderia ser diversa, senão pela existência de indícios que autorizam a continuidade do presente procedimento.
3. VOTO
Diante do exposto e dos elementos que apontam para indícios de prática de atos contrários à ética e ao decoro parlamentar que tornam o Senador sujeito à perda de seu mandato, VOTO PELA ADMISSIBILIDADE DA PRESENTE REPRESENTAÇÃO, determinando a imediata instauração de PROCESSO DISCIPLINAR contra o Senador Demóstenes Lázaro Xavier Torres, por incurso nos artigos art. 55, II e § 2º, da Constituição Federal de 1988, combinado com art. 5º, II e III e art. 17 e seguintes da Resolução nº 20, de 1993.
Sala das Sessões,
Senador HUMBERTO COSTA – Relator