Gostaria de agradecer ao convite para participar deste importante debate, visto que a homofobia é um fenômeno social que incide não apenas na violação da integridade física e moral de crianças e adolescentes, mas também por ser um processo que incide sobre a sua constituição psíquica e sobre os valores de cidadania que lhes são transmitidos.
Gostaria de iniciar abordando um tema um tanto controverso que é o da sexualidade infantil. Sabemos que a ideia gera constrangimentos e indignação, tendo sido objeto em grande parte da repulsa que o pensamento freudiano obteve e ainda obtém por parte da sociedade. No entanto, sabemos que a infância é uma construção social e histórica moderna, tendo sido aqueles e aquelas, que qualificamos hoje como crianças, tratadas, durante longos períodos, como adultos em miniatura, o que levou o papa Bento XVI à infeliz declaração de que a pedofilia nem sempre fora objeto de penalização, podendo ser relativizada historicamente.
A emergência da infância na era moderna foi correlata à ascenção do poder disciplinar, tal como proposto por Michel Foucault, em que o discurso médico em grande parte funda a inteligibilidade sobre a normalidade e a anormalidade, instituindo práticas de normalização dos indivíduos por meio das instituições disciplinares, entre as quais a escola nos interessa aqui especialmente. A sexualidade foi objeto de intensa normalização na era moderna, em que o suposto pecado cristão associado a práticas sexuais não matrimoniais ou não reprodutivas foi redirecionado para a lógica das aberrações sexuais descritas pela psiquiatria nas sociedades ocidentais. A prática da masturbação foi objeto de intensa repressão e a sexualidade infantil foi silenciada. Masturbação e sexualidade infantil são dimensões da sexualidade que desmentem a sua intencionalidade meramente reprodutiva.
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Ainda que a Psicanálise seja um saber um tanto controverso no debate sobre direitos sexuais, cabe resgatar aqui com vocês o sentido freudiano da proposição de uma sexualidade propriamente infantil. Dizia Freud não apenas que a sexualidade existia na infância, mas que a sexualidade humana seria, em si, infantil. O que ele propunha era a compreensão da sexualidade como experiência humana do prazer pelo prazer, e a desassociação entre sexualidade humana e meta reprodutiva, sendo a sexualidade uma importante dimensão da vida psíquica e da vida relacional do sujeito.
Afirmar a existência da sexualidade infantil não é o mesmo que afirmar que crianças visariam o coito genital que configura, em grande parte, a cena sexual cristalizada na falta de imaginação ou na vergonha daqueles que insistem ser a sexualidade algo natural e que se destina à reprodução da espécie. A sexualidade infantil é a atividade por meio da qual crianças exploram seus próprios corpos na busca do prazer, mas também no processo de construção da representação de si mesmos. Somos o nosso corpo. As brincadeiras sexuais infantis também podem envolver os outros, meninos buscando conhecer os corpos de outros meninos ou meninas, meninas buscando conhecer os próprios corpos e o de outras meninas e meninos.
Quando meninos brincam desta maneira com outros meninos eles não estão sendo homossexuais. Quando meninos se vestem com roupas de meninas, não estão necessariamente sendo travestis ou transexuais. Eles estão apenas buscando dar sentido a si próprios em comparações em relação a outros meninos. O mesmo com as meninas. É o olhar adulto que qualifica estas brincadeiras como práticas homossexuais, as crianças estão apenas buscando conhecer a si próprios e aos seus coetâneos. É a relutância em aceitar a sexualidade infantil como parte do processo de constituição psíquica da criança que faz com que brincadeiras de faz de conta, predileções por determinados brinquedos ou jogos e outras atividades que permitam o livre exercício da criatividade como potencial para a significação de si e do mundo revelem tão somente a homossexualidade projetada pelos adultos na atividade infantil. Trata-se, evidentemente, de pobreza simbólica, da parte dos adultos preocupados em prevenir certos destinos de subjetivação considerados anormais ou mesmo perversos.
A homossexualidade das crianças é objeto de preocupação por parte dos pais. Consideram os gestos, as palavras, o tom de voz, a predileção por roupas, cores e brinquedos, como sinais da falha no desenvolvimento psíquico. Os manuais diagnósticos médicos também expressam preocupação com as inadequações da criatividade infantil: propõem a lógica de um transtorno de identidade de gênero na infância para aquelas crianças que, tendo nascido no sexo feminino, gostem de imaginar serem super-heróis, ou àqueles garotos que costumam brincar com a boneca barbie. Muito me espanta que a boneca barbie tenha entrado formalmente na classificacão diagnóstica contemporânea de transtornos mentais. Vejam bem, estes são exatamente alguns dos critérios expressamente adotados na caracterização psicopatológica da medicina contemporânea, apesar de parecer mais um exemplo de como as ciências positivas podem ser consideradas, hoje, tradições como quaisquer outras tradições, fundadas em verdades questionáveis ou mesmo comprometidas explicitamente com determinada ordem sexual e social.
A escola e a família, ambientes em que geralmente alguns desses falsos problemas são identificados e encaminhados à lógica normalizadora e correcional, deveriam ser, no entanto, espaço para o investimento no potencial criativo e no estabelecimento de subjetividades auto-confiantes, deveriam preparar as crianças para não apenas sobreviver em um mundo injusto, mas para construírem um mundo. O que ocorre é o contrário. Crianças tem sua criatividade e imaginação, tem suas faculdades de significação de si e dos outros tolhidas por um medo irracional da possibilidade de que o mundo que temos hoje, venha a ser um outro mundo, amanhã ou logo mais. É assim que ensina-se a homofobia, ensinam-se estereótipos de gênero, ensina-se a intolerância, a segregação ou mesmo o ódio. Ensina-se que a sexualidade é vergonhosa, que a imaginação é moralmente condenável e que há um jeito certo para tudo. Há um jeito certo para ser, há um jeito certo para brincar, aprende-se também que a curiosidade sobre si e sobre os outros pode ferir a própria integridade física e moral.
Tudo isso, podem afirmar, é pelo bem das crianças. O ideal da prevenção ronda a preocupação de pais, mães, educadores, médicos, psicoterapeutas, pedagogos. É tão em voga falar em prevenção na era da noção ampliada de saúde. No entanto, neste cenário o ideal de prevenção não se aplica. A prevenção é um conceito aplicável a doenças cuja etiologia é estabelecida. Homossexualidade sequer é doença nos dias de hoje, e mesmo aqueles que se arvoram em minimizar ou anular a sua expressão não sabem exatamente em que consiste a sua origem. Não se previne a homossexualidade de crianças ao repreender as suas brincadeiras ou o seu modo de ser, o máximo efeito educativo que se alcança assim é o ensinamento dos estereótipos de gênero e a transmissão da homofobia pelas vias da educação escolar e familiar.
Quanto à adolescência, basta mencionar estudos como a pesquisa multicêntrica sobre práticas sexuais e gravidez na adolescência (Gravad) e a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Mulher e da Criança (PNDS), que revelam que o início da vida sexual genitalizada se dá cada vez mais precocemente no país. Os índices epidemiológicos do Ministério da Saúde também revelam que a juventude, provavelmente devido à resistência moral da sociedade em se abordar o tema em escolas e em casa, está bastante vulnerável à epidemia de HIV/Aids. Adolescentes podem, eles e elas, afirmar serem homossexuais. Talvez pudessem também nos ensinar algo sobre o amor, embora muitos silenciem diante da convicção de serem e de viverem um grande e grave erro. Outros atuam violentamente como forma de resistência a desejos intoleráveis à consciência, pois, eles próprios não podem conviver com sentimentos que foram forçadamente soterrados, mas que permanecem dentro de si mesmos com a fúria do desejo.
Se eu posso fazer um apelo no dia de hoje, eu peço, primeiramente, para deixarem as crianças brincarem em paz. Isso as tornará adolescentes e adultos mais inteligentes e potencialmente mais perspicazes no enfrentamento e na transformação do mundo que lhes deixamos como herança. Também pediria para ensinarem, desde cedo, nas escolas e nas famílias, as pessoas a se respeitarem e amarem. Isso permitirá que adolescentes vivam a sexualidade de modo muito mais construtivo do que carregando culpas e fúrias incontidas, que explodem na violência homofóbica e na espetacularização via web de suas proezas na violação de moças, um crime um tanto comum nos dias de hoje. Não se ensina o amor prescrevendo o amor como um mandamento, “amai-vos uns aos outros”, mas sim vivendo as relações na base do mútuo respeito, consideração e valorização das diferenças.
Por fim, ressalto que um dos maiores legados em relação à infância e adolescência do século XX foi o Estatuto da Criança e do Adolescente, que lhes atribui o status de sujeitos de direitos. Cabe pensar seriamente o direito à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade como direitos das crianças e dos adolescentes. Obrigada.