Ana Paula Siqueira e Edson Sardinha
O elevado número de inquéritos e ações penais contra parlamentares em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) põe em xeque a prerrogativa dos congressistas brasileiros de poderem ser julgados somente pela mais alta corte do país nas esferas criminal e administrativa.
Em tese, o chamado foro privilegiado serve para garantir o exercício democrático das prerrogativas inerentes à função parlamentar e evitar que deputados e senadores sejam investigados ou julgados à luz das disputas políticas locais. Os seus defensores lembram que ele reduz as chances de se reverter uma decisão desfavorável, já que contra as decisões do Supremo, instância máxima do Judiciário, não há recurso.
Na prática, porém, segundo cientistas políticos, juristas e advogados, a prerrogativa tem favorecido a impunidade. Até hoje, nenhum parlamentar foi condenado pela mais alta corte do país. A maioria dos casos, aliás, sequer chega a ser concluída pelos ministros, devido ao elevado número de processos que cada um deles tem para julgar.
Para se ter uma idéia da sobrecarga, cerca de 10 mil processos foram despejados por mês nas mãos de cada um dos 11 ministros do STF no ano passado, pouco mais do que em 2005. Naquele ano, cada gabinete recebeu mensalmente algo em torno de 9 mil processos.
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Criminosos com mandato
“Há um monte de criminosos que se candidatam para ter foro privilegiado e que não têm o menor interesse pelas questões sociais”, afirma Antônio Flávio Testa, cientista político e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). Na opinião dele, o foro privilegiado abre caminho para a impunidade.
Conforme revelou o Congresso em Foco em janeiro, dos 292 congressistas que não renovaram o seu mandato no ano passado, 95 tinham contas a acertar com a Justiça. Sem as prerrogativas da função, eles estão resolvendo agora suas pendências nas esferas inferiores da Justiça (leia mais).
O presidente da Comissão de Combate à Corrupção do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Amauri Serralvo, considera que o STF não tem estrutura para investigar e julgar os processos envolvendo parlamentares.
“A pauta é sobrecarregada. No Brasil cada ministro do STF tem que julgar cerca de 15 mil processos por ano. Nos Estados Unidos, ao todo são aproximadamente 150, ao todo, durante o ano. Não temos instrumentos eficazes para que o juiz possa exercer sua função”, avalia. A alternativa, segundo o advogado, seria uma mudança radical: “Não tem que ter foro privilegiado. Os juízes federais têm competência para julgar assim como os ministros do Supremo”.
Antonio Testa também identifica no julgamento das ações contra parlamentares um desvio nas funções do Supremo. De acordo com o pesquisador, o tribunal não deveria analisar crimes comuns envolvendo autoridades. “Os crimes comuns deveriam ser julgados pela Justiça comum, pelo Superior Tribunal de Justiça. Apenas questões ideológicas e políticas deveriam ser julgadas pelo Supremo”, considera.
Chance única
A presidente do STF, ministra Ellen Gracie, rejeita a tese de que o foro privilegiado tem favorece a impunidade. Para a ministra, em vez de privilégio, o foro especial para autoridades pode contribuir para acelerar o julgamento em vez de retardá-lo.
“O foro chamado privilegiado significa, na verdade, que os acusados têm uma única chance de defesa e uma única chance de absolvição ou condenação. Se nós, por exemplo, iniciamos um processo no primeiro grau, há possibilidade de recurso ao segundo grau, ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal”, afirmou a ministra, em maio do ano passado, em entrevista coletiva à imprensa.
De acordo com a ordem constitucional e legal vigente no Brasil, deputados e senadores também não podem ser punidos por exercerem sua liberdade de opinião e expressão. Além disso, só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável. Nesses casos, no entanto, os autos precisam ser enviados em 24 horas ao Congresso, a quem cabe decidir, pelo voto da maioria de seus integrantes, sobre a manutenção da prisão.
Autorização
Houve um período, contudo, em que as regalias oferecidas aos parlamentares eram ainda maiores. Até a promulgação da Emenda Constitucional 35, em dezembro de 2001, o STF precisava pedir autorização à Câmara e ao Senado para abrir processo contra os congressistas.
Esse foi um dos argumentos que Ellen Gracie usou, ao final do julgamento do mensalão, na semana passada, para defender a eficiência do Supremo para tratar de processos criminais. A suposta morosidade do tribunal seria uma das formas de protelar as ações até os crimes prescreverem – ou seja, manter a impunidade. Mas Ellen Gracie diz ser preciso “restabelecer a verdade”.
Segundo ela, o STF cuida de cerca de 50 ações penais. Dessas, 50% tramitam no tribunal há menos de seis meses. A mesma eficiência, acrescenta, se vê no andamento dos inquéritos. Já no caso das petições criminais, o índice é maior: 67%.
Além de deputados e senadores, podem ser indiciados pelo STF o presidente, o vice-presidente e o procurador-geral da República; os ministros de Estado; os comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército; chefes de missões diplomáticas; ministros do próprio Supremo; e membros dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União.