Após dois dias de julgamento, três policiais militares responsáveis pela covarde execução de um rapaz de 23 anos, que foi rendido, jogado do alto de um telhado e baleado no peito, havendo até uma filmagem para não deixar dúvida sobre o que aconteceu e como aconteceu, acabaram sendo “absurdamente” absolvidos pelo 5º Tribunal do Júri da capital paulista.
O Ministério Público Estadual já anunciou que vai recorrer da decisão, a qual, com certeza, será adiante revertida – provavelmente nessa mesma instância ou, inevitavelmente, numa superior –, pois contraria de forma grotesca as provas nos autos. A culpa dos réus é o chamado óbvio ululante.
Se é isto que se pode esperar de um júri popular no Brasil, decisões meramente emocionais na contramão de evidências gritantes, mais vale extingui-lo e deixarem-se os vereditos exclusivamente a cargo de magistrados.Leia também
A mecânica do júri popular é a seguinte:
— sua convocação se restringe aos casos de homicídio, infanticídio, aborto e auxílio-suicídio;
— os jurados são escolhidos na comunidade em que o crime ocorreu, devendo haver 15 possíveis no dia do julgamento – dos quais são sorteados os sete definitivos;
— estes são obrigados a permanecer no fórum durante toda a lengalenga e só podem conversar entre si sobre novelas, futebol e outras trivialidades, sendo-lhes vedado discutir o caso;
— findos os trabalhos, preenchem papeletas, respondendo a questionário elaborado pelo juiz.
A grande maioria dos laçados quer mais é escapar da chatice, tanto que há até roteiros de como o fazer disponíveis na internet. Basta a pessoa, ao ser avaliada, emitir opiniões taxativas que indiquem estar fortemente predisposta contra ou a favor do(s) réu(s) para ser considerada inaceitável. E por aí vai.
Então, noves fora, sobram os que não têm coisa melhor para fazer na vida, geralmente inativos que morrem de medo dos bandidos do bairro e adoram a perspectiva de se vingarem simbolicamente deles todos por meio de um voto secreto, que vai arruinar a vida de quem é ou lhes pareça ser marginal, ou inocentará agentes do Estado que tenham exterminado quem é ou lhes pareça ser marginal.Daí as aberrações como a absolvição dos responsáveis pelos dois bestiais homicídios do Butantã. O perfil dos jurados é quase sempre o mesmo dos cidadãos que vibravam quando o político Paulo Maluf prometia botar a Rota na rua, elegendo-o na esperança de que soltasse mesmo o bicho papão.
A ocorrência de decisões meramente catárticas é facilitada pela prática extremamente elitista de impedir que os jurados discutam o caso antes de votarem.
Supõe-se que as cavalgaduras não entendam bulhufas de justiça e só sirvam para escolher uma dentre as opções que lhes são oferecidas nos questionários simplistas formulados pelos doutos.
Então, elimina-se a possibilidade de, no meio dos sete, existir pelo menos um conhecedor dos rudimentos da civilização, que seja capaz de convencer os demais a não relevarem insensatamente crimes cruéis e gratuitos como este que aqui enfocamos.
Nos casos em que é o Ministério Público o derrotado, graças a uma decisão estapafúrdia, ele entra com recurso e a chance de a besteira ser corrigida pelos três juízes, a quem compete passar a limpo o julgamento, é enorme. Idem nas instâncias superiores, se o caso chegar até elas.
Mas, e quando se trata de um coitadeza condenado porque não tinha advogado que prestasse e os jurados rancorosos não souberam distinguir entre possibilidade de culpa e certeza de culpa, ignorando ou não dando a mínima para o fato de que a presunção da inocência é um dos pilares da Justiça? Aí o pobretão azarado poderá mofar décadas no cárcere como consequência de um erro judicial.
Então, repito: nas condições em que funciona atualmente, o júri popular só faz perder tempo, consumir recursos e produzir monstrengos jurídicos.
Um entulho autoritário que não foi removido até hoje: O policiamento militarizado
Nos homicídios que cometeram no Butantã em 2015 (também foi executado Paulo Henrique Porto de Oliveira, de 18 anos, cúmplice de Fernando Henrique da Silva na tentativa de roubo de uma moto). Os agentes da (des)ordem tentaram maquilar os homicídios para que passassem por mortes ao resistirem à prisão, mas uma filmagem feita por morador com celular e outra da câmara de vídeo da rua desmontaram as farsas.
Trata-se de uma prática tão frequente na atuação das PMs brasileiras que o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou em 2012 sua extinção, em função não só do altíssimo índice de letalidade, mas também do fato de que parte expressiva de tais óbitos se devia a “execuções extrajudiciais”.
Após analisar 11 mil casos de alegadas resistências seguidas de morte, a ONU constatou o que por aqui todos estávamos carecas de saber desde 1992, quando Caco Barcellos lançou seu primoroso livro-reportagem “Rota 66 – A história da polícia que mata”: quase sempre não houvera resistência nenhuma mas, tão somente, assassinatos a sangue frio de suspeitos já dominados.
Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade também propôs o fim das polícias militares em todo o país, com esta justificativa:
“A atribuição de caráter militar às polícias militares estaduais, bem como sua vinculação às Forças Armadas, emanou de legislação da ditadura militar [mas a anomalia perdura até hoje], fazendo com que não só não haja a unificação das forças de segurança estaduais, mas que parte delas ainda funcione a partir desses atributos militares“.
A recomendação da CNV veio ao encontro da proposta de emenda constitucional 51/2013, apresentada por Lindbergh Farias, que se arrasta há três anos e meio sem solução no Congresso Nacional. Ela prevê, entre outras medidas, a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas.
A história se repetiu
Um episódio semelhante ao de 2015 no Butantã ocorreu nesta 5ª feira (30/03) na Fazenda Botafogo, na zona norte do Rio de Janeiro. E novamente algum popular filmou, conforme pode ser visto aqui: o tiro sem misericórdia nenhuma num indivíduo que agonizava no chão e o disparo feito sobre outro que talvez já estivesse morto.
Se os carrascos fardados forem identificados e levados a julgamento, é bem capaz de um júri popular os absolver…