Vinícius Assis, da Agência Pública
Alguns o consideram progressista, mas o juiz Luís Carlos Honório de Valois Coelho se define como “legalista, um homem que acredita no ser humano”. Crítico da criminalização e guerra às drogas, o titular da Vara de Execução Penal do Tribunal de Justiça do Amazonas é doutor pela USP e uma referência quando o assunto é sistema penitenciário (escreveu três livros sobre o tema, além de um sobre política de drogas) e já fez inúmeras palestras a respeito. Coleciona admiradores e desafetos em várias partes do país, que o defendem ou o ameaçam. “Eu sempre recebi ameaças na minha carreira”, diz.
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Depois da carnificina em Manaus, em que atuou para liberar reféns a pedido da secretaria de Segurança Pública, o juiz se tornou alvo da imprensa: uma reportagem do Estadão relembrou investigações realizadas pela Polícia Federal na segunda fase da operação La Muralla sobre a suposta ligação de magistrados com integrantes da facção criminosa Família Do Norte (FDN). O nome do juiz Luís Carlos Valois, que há sete meses teve a casa e o gabinete revistados pela PF, havia aparecido em conversas de terceiros (advogados de presos) gravadas nas investigações.
A acusação é frontalmente rebatida pelo juiz, que continua trabalhando normalmente, ao contrário da desembargadora Encarnação das Graças Salgado, ela sim afastada desde junho por determinação do Superior Tribunal de Justiça por suspeita de ligação com a facção FDN. Valois, no entanto, não acusa a polícia de perseguição. “Prefiro acreditar que foi um equívoco”, diz, afirmando que as ameaças contra ele se intensificaram depois da reportagem do Estadão. Sua principal queixa é de que nenhuma linha da entrevista de mais de 20 minutos que concedeu ao jornal por ocasião da reportagem foi publicada. Por isso, segue na íntegra a entrevista de quase meia hora feita por telefone pela Pública.
Pública – O que exatamente aconteceu no presídio?
Luís Carlos Valois – Quando eu cheguei todos os presos que morreram já tinham morrido. Estou no recesso, não estou no plantão, mas eu fui porque foi um pedido da Secretaria de Segurança, mas quando eu cheguei lá já tinham mais de dez horas de rebelião. Não sei porque só me chamaram à noite, se começou à tarde, mas quando me chamaram eu fui, mesmo sendo o primeiro dia do ano. Eu fui porque o próprio secretário de Segurança me pediu. Passou aqui na minha casa. Já tinham morrido todos quando eu cheguei. A única coisa que eu fiz foi ajudar na negociação, e também já tinha negociador, para terminar de liberar o restante dos reféns que estavam lá, dez reféns.
O senhor não era o único a negociar?
Não, não. Tinha o presidente da comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), um coronel da Polícia Militar e um tenente.
O senhor acha que foi chamado pelo cargo que ocupa ou pela sua postura, seu histórico?
Acho que foi pelo cargo, sou juiz da Vara de Execução Penal. Todos os processos dos presos ali são meus.
Esta rebelião poderia ter sido evitada, na sua opinião?
Isso aí é uma questão policial de investigação, prevenção. Sou juiz de Direito. E como juiz de Direito, diante da questão policial de prevenção e repressão, eu sou um cidadão como outro qualquer. Nessa questão de Segurança Pública eu sou uma pessoa temerosa tanto quanto você, mas sem conhecimento técnico.
O senhor vem recebendo ameaças?
Eu sempre recebi ameaças na minha carreira.
Quem vem ameaçando o senhor?
Nos últimos dias eu me refiro às ameaças nas redes sociais: “Tem que matar esse juiz”, “juiz tem que morrer”. Inclusive tem ameaças no site do Estadão, embaixo da matéria que fizeram contra mim.
Acredita que essas pessoas sejam ligadas ao PCC?
Não sei, mas ninguém gosta de ouvir que outro vai matar você. Não gosto de legitimar esse crime organizado. Quando você legitima, diz “ah, o cara é líder do PCC”, você está dando poder ao preso. Sou juiz de Direito, não posso dar poder ao preso. Preso é preso.
Eu li que o senhor disse que “polícia é quem legitima facção”. Como assim?
Líder de pavilhão, o cara que comanda a penitenciária, isso sempre existiu desde que prisão é prisão. Quadrilha na rua sempre existiu desde que rua é rua, entendeu? Quando você começa a dar nome, além de dar poder para ele – porque ele fica mais poderoso dentro do pavilhão, fica “se sentindo” no sistema penitenciário – você camufla um monte de outros responsáveis por aquilo ali. Por exemplo: se um cara mata uma pessoa na penitenciária, não foi o líder de uma facção que fez aquela chacina, foram diversos presos que precisam ser identificados, punidos. Foi um homicídio cometido por várias pessoas e não pelo “PCC”. E essas pessoas precisam ser individualizadas, identificadas, punidas. Quando você fala “PCC”, diminui a coisa e ao mesmo tempo dá poder ao preso.
O senhor acha que há uma, digamos, glamourização dessa questão?
Há uma romantização, sim. Inclusive para eles, porque quando o cara é líder do PCC ele sente orgulho dentro da penitenciária, só que fora ele é bandido. Lá você está dando poder para ele dentro da prisão.
Acredita que possa estar sofrendo perseguição por parte de alguém na PF por conta da referência ao seu nome na operação La Muralla? Quando houve busca e apreensão na sua casa e no seu gabinete muitos que saíram em sua defesa na internet cogitaram isso.
Essa é a hipótese que eu quero menos acreditar. Não tenho nada pessoal contra ninguém da PF. A polícia está no front, na guerra tensa. Policial está sempre nervoso, no combate. O juiz da Execução Penal é aquele que tem que lidar com o direito dos presos, resguardá-lo, tem que ir lá ver a questão dos direitos humanos. Isso é obrigação por lei. Então, um juiz que trabalha de forma correta sempre vai ser elogiado, respeitado pelos presos. Aí o policial que está no combate, naquela tensão, vê um juiz sendo elogiado pelo preso, sempre acha que o juiz está conivente com o preso. Essa é a hipótese que eu vejo. Eles estavam investigando uma outra coisa quando viram aquelas gravações, eles estavam investigando outra coisa. A hipótese que eu quero pensar – até para continuar acreditando no ser humano – é que isso não é maldade. É apenas uma suposição que eles tiveram porque o juiz é respeitado pela massa carcerária ele é suspeito, mas isso faz parte do meu trabalho. Se eu não for respeitado pela massa carcerária eu não consigo trabalhar.
O senhor então não acredita na hipótese de perseguição, como algumas pessoas na internet alegavam?
Acredito na hipótese, mas prefiro acreditar que tenha sido um equívoco, um erro de interpretação.
O senhor conhece as pessoas que, de acordo com interceptações da PF, conversavam sobre o senhor ao telefone?
Não, nenhuma. Aliás, [tem] uma advogada que está sempre no Fórum que eu conheço de vista. Uma advogada [dentre] essas advogadas que ficam no Fórum. É a que falou que precisava fazer um abaixo assinado para eu não sair da Vara de Execução Penal. Mas acho que ela viajou na maionese, porque eu nunca estive ameaçado de sair da Vara. O que aconteceu foi o seguinte: eu tinha pedido uma licença para fazer meu doutorado e estava em tramitação no Tribunal a portaria da minha licença. Só que era uma coisa que eu queria.
O senhor é conhecido por defender direitos humanos e criticar a guerra às drogas. Acredita que possa estar sendo investigado por ter proferido decisões ligadas às suas convicções acadêmicas?
Convicção acadêmica é um negócio meio estranho. Minha tese é uma tese de doutorado de Direito na USP. Então é uma ciência, é uma tese aprovada com louvor, com professor alemão, espanhol na banca, em que eu defendo minhas posições jurídicas – não são posições políticas nem nada – de que os autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas têm inúmeras nulidades. Então, quando eu analiso um auto de prisão em flagrante, analiso com base no que estudei cientificamente. E eu, vendo essa nulidade, permito que a pessoa responda ao processo em liberdade, se eu estiver no plantão, lógico. Mas eu não faço isso para um ou outro. Eu faço para todos em que eu vejo esta nulidade. Se há represália em relação a isso, é represália de quem não estuda. Infelizmente nós temos muitos profissionais no Direito que não estudam, porque minhas decisões são fundamentadas e sujeitas a recurso. A Polícia Federal já representou contra mim várias vezes, contra minhas decisões, e em todas as vezes eu fui absolvido, todas as vezes foi verificado que minhas decisões são técnicas. Óbvio que eu tenho um pensamento político de que eu acho que a guerra de drogas é um equívoco muito grande. É a gente que está financiando esse crime organizado, esses caras que estão matando e estão fazendo tudo isso aí. O Estado que está financiando e ainda está deixando de ganhar dinheiro com isso. Agora esse é meu pensamento político. Minha tese de doutorado foi técnica. Tirando a parte de história da guerra de drogas que eu analiso, a parte jurídica é uma parte técnica.
O senhor é a favor da liberação das drogas?
Não da liberação. Sou a favor da regulamentação. As drogas já estão liberadas. Se você for à esquina, você compra.
E como seria uma regulamentação ideal para o senhor?
Com o Estado controlando a venda, cobrando imposto. Cada droga tem que ter uma regulamentação diferente. O cigarro é diferente do álcool. Cada droga tem que ser analisada como vai ser essa regulamentação. O álcool, que é a droga que mais mata, que mais causa violência, tem que ter uma regulamentação. O cigarro, que é a droga que mais leva ao SUS, que mais causa doenças, também tem sua regulamentação. Cada droga de acordo com o mal que ela causa, porque toda droga causa um mal, ela tem uma regulamentação. A gente não pode é ficar matando pessoas inocentes que passam na rua levando tiro, que não têm nada a ver com a guerra e drogas e estão morrendo. Nesta rebelião teve um rapaz que foi preso com droga no carro, transportando, e foi decapitado. Isso é Brasil, não é Filipinas, não.
O senhor é crítico da administração carcerária do governo do Amazonas. Isso te trouxe inimigos na política?
Sim, mas isso é normal. O debate de ideias sempre cria conflitos, mas não chamaria isso de inimigo.
Chamaria de quê?
De adversário de ideias. E ele pode te xingar, mas não precisa ser covarde, não precisa fazer maldade com você.
Em julho de 2015, a Secretaria de Estado de Segurança Pública realizou uma operação no Complexo Penitenciário Anísio Jobim e encontrou “celas de luxo”, com itens como bebidas alcoólicas e videogames. O espaço era usado pelo líder da FDN “Zé Roberto da Compensa”. O então secretário de Administração Penitenciária afirmou que as celas diferenciadas eram usadas para visita íntima e eram do conhecimento do senhor. É verdade?
As celas de visitas íntimas eram, claro. Só não sabia que a cela era usada por preso para ter uísque, ter bebida, isso não sabia. E outra coisa: cela para visita íntima não é competência minha. Quem autoriza isso é a direção do estabelecimento penal (diretor, secretário). Não tenho competência para isso. Eu sei porque eu visito a penitenciária, vejo e pergunto “que cela é essa?”, “pra que que serve?”. Aí, vejo: “É cela para visita íntima”, ok. Vou passando de cela em cela.
Mas essas regalias que classificariam a cela como sendo de luxo o senhor não sabia que existiam?
Não. Inclusive nas fotos que chegaram a ser publicadas pela imprensa não vi nada de luxo na foto. Tinha uma cama de cimento com um colchão em cima, uma florzinha, não sei o que. Que cela de luxo é essa!?
O senhor se lembra dessa declaração do então secretário em 2015?
Lembro. Eu estava em Brasília e me ligaram dizendo que tinha uma cela assim e me perguntaram se eu tinha autorizado. Eu disse: “eu não autorizo nada, não tenho nada que autorizar cela. Sou juiz de Execução Penal, quem autoriza é diretor”. Mas celas de visita íntimas são permitidas.
Mas nessas visitas que o senhor fazia constantemente às unidades prisionais, o senhor já tinha identificado algo que poderia ser melhorado ou alguma medida que é urgente ser tomada no sistema prisional do Amazonas?
No momento, a medida mais urgente é identificar os criminosos que cometeram essa barbaridade. Que a polícia civil faça uma investigação séria com as imagens que tem na internet, no circuito interno da penitenciária. Assim que eu voltar do recesso vou cobrar da polícia uma investigação rigorosa sobre isso, apesar de ser mais do que uma obrigação da polícia. Mas vou cobrar como cidadão.
O senhor acha que é necessária intervenção federal nesta questão?
Essa é uma pergunta policial, de Segurança Pública. Em relação a isso, sou um cidadão qualquer. Eu sei que essa atividade de encaminhar preso para penitenciária federal que começou com esse negócio de PCC aqui em Manaus. Porque os presos nunca falaram de PCC, Comando Vermelho, nada disso. Quando começaram a ir para penitenciária federal voltaram falando isso.
O senhor acha que a ordem pode ter partido dos presos que são chamados de “conselheiros” da FDN presos em presídios federais?
Não tenho a mínima ideia, mas segundo um repórter que esteve aqui na minha casa, o filho do Zé Roberto [um dos cabeças da facção] estava dentro da penitenciária. Pelo que eu vi, um cara não mandava fazer aquilo com um filho dentro. O negócio foi horrível demais, não tinha controle.
Um relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, divulgado no ano passado, que já havia alertado sobre o risco de rebeliões, afirmou que a administração penitenciária do AM é omissa. O Estado perdeu o controle sobre os presídios amazonenses?
Olha, o que vejo aqui no Amazonas não é pior do que vejo nos outros estados. Fui membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que avalia o sistema penitenciário do Brasil inteiro. Meu mandato terminou ano passado. Há estados onde o diretor da penitenciária não entra nem no pavilhão. Eu já vi penitenciária em São Paulo, no Rio Grande do Sul, que da porta do pavilhão para dentro são os presos que mandam, o diretor não entra. Aqui em Manaus o diretor entrava no pavilhão, o secretário entrava no pavilhão, eu entrava no pavilhão. Todo mundo entrava no pavilhão. Os agentes penitenciários ainda tinham as chaves das celas. Tem lugar em que os presos é que têm as chaves. Aqui não era pior do que nos outros estados. Por isso que tem que ser avaliado de uma forma muito mais ampla, um estudo com uma investigação científica, policial, muito mais ampla para saber as causas, porque se quiser prevenir uma coisa dessas de novo tem que ser avaliado.
A Associação Juízes Para a Democracia (AJD), a Pastoral Carcerária e a Associação de Magistrados do Amazonas (Amazon) se posicionaram em seu favor na época da operação La Muralla II, assim como inúmeras pessoas que nas redes sociais escreveram #somostodosvalois. Nem todas as pessoas e entidades que saíram em sua defesa fizeram o mesmo com a desembargadora Encarnação das Graças Salgado, afastada sob a acusação de ligação com a FDN.
Eu fiz mestrado e doutorado na USP. Tenho contatos no Brasil inteiro, dou palestras de duas em duas semanas no Brasil inteiro. Eu conheço gente no Brasil inteiro. Todo mundo conhece meu trabalho. Já escrevi quatro livros (três sobre o sistema penitenciário e um sobre política de drogas). Já fui professor da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, da Escola da Magistratura Nacional em Brasília. Olha a quantidade de contatos, o networking que eu tenho e a desembargadora, que é uma funcionária daqui do Amazonas, apenas uma magistrada que está aqui. Eu não conheço a desembargadora. Inclusive o fato de terem me colocado junto com a desembargadora foi também um detalhe processual que é o seguinte: porque o órgão competente para me julgar é o Tribunal de Justiça. Então, criaram a hipótese de uma conexão com a desembargadora justamente para transferir o procedimento em que tinham me citado para o STJ, para tirar do Tribunal. Se você olhar no despacho do ministro vai ver lá: não tem nenhum indício de conexão do juiz com a desembargadora.
Quem é o juiz Valois?
Um juiz que ainda acredita no ser humano e continua lutando para continuar acreditando.