Há um vídeo da ministra Carmen Lúcia cantando “Não deixe o samba morrer” de Edson Conceição e Aloísio Silva, ao lado de Alcione e Raquel Dodge, que está bombando nas redes sociais há mais de uma semana. Já recebi seis vezes, tanto por e-mail quanto pelo whatsapp. Quatro remetentes criticaram a ministra por aparecer em público cantando e dançando. Alguns comentários têm conotação político-ideológica. Acusam as “dançarinas-cantoras” de cantar e dançar o “samba do golpe”. Outros são apenas intolerantes e preconceituosos. E há os que condenam Carmen Lúcia exclusivamente pelo fato de ser presidente do Supremo e “se expor” daquela forma. Pois olha, minha opinião não serve pra nada, mas eu gostei de ver a presidente da Suprema Corte implorando para o povo não deixar o samba morrer. E mostrando isso com muito samba no pé, brasileira da gema que é. Salve Carmen!
Pobre Brasil. Anda encaretando. A cada dia que passa perdemos um pouco da descontração que sempre nos identificou. Estamos ficando azedos, amargos, tristemente reacionários. Vai longe o tempo em que o país exibia um sorriso sem tamanho com os passos cadenciados de um chefe de governo que até ganhou o apelido de “presidente pé-de-valsa”, porque não podia ver um salão vazio com uma orquestra tocando que já puxava a dama mais bonita e se danava a rodopiar. Sem falar no sorrisão escancarado que JK fazia questão de exibir, tão distante da sisudez de fachada dos homens públicos de hoje. Coitados. Acreditam que uma cara amarrada e um cenho franzido exprime seriedade, lisura, responsabilidade e honradez. E a gente bem sabe que sisudez não é – mesmo – sinônimo de seriedade. Carmen Lúcia que o diga.
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Minissaia? Nem pensar!
É, o Brasil anda encaretando. Na década de 70, quando comecei a fazer a cobertura do Congresso Nacional pelo velho Jornal do Brasil, as mulheres eram proibidas de entrar no Salão Verde da Câmara de calças compridas. Uma repórter, barrada na portaria, foi até o toalete e tirou a calça, ficando apenas com a blusa comprida, convertida em vestido improvisado. E assim, “bem” trajada, foi autorizada a circular. Ora, veja você… A jornalista Leda Flora, do Estadão, para respeitar a proibição às calças compridas, teve de usar um vestido. Mas era um vestido tão desajeitado que chamou a atenção do então presidente do Senado, Luiz Viana Filho. “Não tenho dinheiro pra comprar coisa melhor, senador. Este foi presente de um amigo”, ela explicou. No dia seguinte, a proibição às calças compridas foi extinta.
Em compensação, ainda outro dia a deputada Cristiane Brasil, a que foi sem nunca ter sido, propôs um retrocesso quilométrico ao encaminhar à mesa da Câmara um projeto estabelecendo um novo código de conduta relativo às vestimentas. Pela proposta, para frequentar o Congresso, as mulheres seriam obrigadas a usar saias abaixo do joelho. Minissaia, nem pensar. Blusas decotadas, frente única ou tomara-que-caia, vade retro! Ainda bem que a Mesa da Câmara não se deu ao trabalho de examinar a insensatez. Mas a situação atual é de retrocesso. Com o crescimento das bancadas religiosas e falso-moralistas a situação só tende a piorar. Nesse pique, já-já as mulheres cobrirão cabeças e orelhas com véus islâmicos. Não demora e estarão usando burcas e falando aos cochichos.
Vossa Excelência é um corrupto!
Encaretamos a passo firme. A sisudez de fachada invadiu até os bares e restaurantes. Aqui em Brasília, uma lei idiota obriga os estabelecimentos a cortar o som e os clientes são repreendidos se falarem alto a partir das 10 da noite. Bares famosos fecharam as portas por falta de clientes, aborrecidos com o silêncio obrigatório. Basta um morador das redondezas ligar pra polícia e reclamar do barulho para choverem multas e autuações.
O encaretamento vem de longe. Pouca gente se dá conta, pois o hábito já se entranhou de tal forma no dia-a-dia que se tornou imperceptível, mas o tratamento regimental que obriga os digníssimos parlamentares a se tratar por Vossa Excelência é uma herança do Senado do Império, cópia da forma como os nobres se tratavam nas cortes portuguesas. Mas, o que na época parecia um sinal de respeito entre os pares, hoje virou motivo de gozação, com parlamentares trocando palavrões cabeludos mas mantendo o tratamento “fidalgo”, tipo: “- Vossa Excelência é um cretino! – Pois o Excelentíssimo colega que me aparteia não passa de um grandecíssimo fdp!” Quer dizer: ofensa pode, desde que venha embalada em papel de seda fina, ricamente adornada com dezenas de Excelências e data vênias, para preservar o decoro. A ninguém ocorre a singela ideia de que se tratem digna e simplesmente por Senhor e Senhora, como é próprio dos mortais comuns.
Carmen Lúcia que encarete logo
O encaretamento progressivo tem um quê de moralismo udenista, o mesmo que torcia o nariz para moças de biquíni mas fechava os olhos aos maridos que desfrutavam em discretas alcovas de suas teúdas e manteúdas. Historicamente, o moralismo está associado ao conservadorismo político e à apologia da violência. Anda de mãos dadas com a intransigência e a intolerância. Adota com facilidade “soluções finais”, como as do füher em relação aos judeus na Segunda Guerra.
Será que tudo isso tem alguma coisa em comum com um certo país que se prepara para uma eleição que pode dar em nada mas pode dar em tudo – o que não presta? Não, claro que não. Óbvio que não. Evidentemente que não. O Brasil é grande. O Brasil é maior que suas misérias. O Brasil não vota em radicais. O Brasil é um país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. Pindorama é o país do futuro. Deus é brasileiro. Etc, etc, etc. Mesmo assim, é bom procurar uma caverna funda para o caso de precisar se esconder por uns tempos. Ah. E Carmen Lúcia que se cuide e encarete logo, senão vai ver.