Ricardo de João Braga *
A anteposição petistas versus peessedebistas vigente no Brasil desde há algum tempo tem se expandido a pelo menos duas dimensões do mundo da informação política e da grande imprensa. A primeira é a postura bastante ativa do governo federal petista na apropriação das ações públicas como peças de campanha eleitoral. A segunda é o estreitamento do debate público sob o signo do partidarismo. Essa postura geral vincula cada manifestação pública (de políticos, da imprensa ou de atores com destaque) a um pretenso compromisso exclusivista com PT ou PSDB.
Nesse quadro há duas questões centrais que merecem reflexão. A primeira delas é sobre a sociedade que assiste a essa explosão informativo-publicitária na esfera pública. Cabe pensar se as novas formas de comunicação política – mais incisivas, mais vorazes – não são mais uma mudança nas relações política-cidadão no Brasil do que uma patologia da democracia.
A outra questão é o lugar do apartidarismo crítico. Este parece ter um espaço cada vez menor na esfera pública. As tentativas de furar a dicotomia prevalecente PT-PSDB, como por exemplo Marina Silva e Eduardo Campos, acabam por ser, no sentido partidário, apenas mais do mesmo. A postura crítica apartidária é de outra natureza, e por isso sua importância e os desafios enfrentados são diferentes.
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O uso publicitário do Bolsa Família, do Minha Casa Minha Vida, da queda dos juros, do pagamento da dívida com o FMI estão aí para nos lembrar do destaque que receberam ou ainda recebem dos políticos. São colocados no colo do eleitor como uma mercadoria a ser comprada, e o pagamento é o voto. Enquanto uns alardeiam as ações e as valorizam, outros buscam defeitos e vinculam sua parte boa a sementes do passado. Apresentar ações próprias ou defeitos alheios é pedir votos.
A franqueza dos objetivos eleitorais dessa comunicação choca-se com uma visão algo utópica e romântica da democracia. Talvez retomando a ágora grega, esperar-se-ia que cada cidadão conhecesse as ações, atitudes e ideias de seus semelhantes e assim decidisse quem haveria de ser o governante, sem necessidade de propaganda. Na utopia, não haveria custo no adquirir, divulgar e processar informações, e como cabe lembrar, utopia é o lugar que não existe. A informação hoje é movida pelos interessados.
Se há alarde sobre a “nova classe média”, ele não permite que nos enganemos sobre a modificação do espaço social e cultural que muitas pessoas têm experimentado e mesmo produzido com sua mobilidade social. O Brasil de hoje não é o mesmo de antigamente em vários aspectos, e um deles é a forma de se relacionar com a política e com o momento eleitoral.
O Brasil deixou para trás sua formação social rural e o bloqueio político criado pela ditadura. Homens e mulheres passaram a conviver em cidades e com novos fluxos de informação. Se é possível compreender o que são ações e serviços públicos, o passo seguinte na democracia representativa é sentir-se livre para avaliá-los e converter essa avaliação em voto. Nesse sentido, parece que o governo atual não demonstra suas características “pessoais” nessa nova forma de comunicação política mais agressiva e presente. Talvez seja apenas uma continuidade às gestões anteriores e uma resposta a novos incentivos sociais e políticos. A mudança de nível na escalada da propaganda pode ser apenas o aprofundamento de uma tendência: o cidadão está aberto a ser atingido pela avaliação da gestão pública em suas decisões de voto.
Depois do PT outros provarão se essa hipótese está correta. Se o que hoje é tratado como patologia passar a ser adotado pelos detratores, será uma concessão à realidade.
Quanto ao futuro, talvez a forma de comunicação da ação governamental ao eleitorado ganhe contornos mais polidos, mais respeitosos com a inteligência alheia. A arrogância da recriação permanente de tudo deverá ceder à realidade, quando se compreenderá que ações públicas e mudanças sociais são acima de tudo complexas e dependentes de processos, e, mais ainda, inseridas em contextos social e econômico mais amplos. O homem inteligente sabe que a realidade não se entrega aos discursos fáceis.
Em relação ao segundo ponto levantado no início, a construção do ponto de vista crítico apartidário, deve-se tecer algumas considerações preliminares. Pode-se afirmar que qualquer crítica exige critérios, enquadramentos, valores referenciais, que se consistiriam num marco. Isto é verdadeiro, pois uma crítica que esvoaça por sobre critérios mutáveis e rotativos não acrescenta muito ao debate e à construção do saber. Além disso, a crítica carrega em si uma teleologia; se há crítica, há um alvo normativo em consideração. Contudo, o que parece ser o ponto central é o compromisso partidário ou não desses critérios e dessa voz crítica. A inexistência de posições apartidárias, o mutismo de vozes livres, consiste por si mesmo num empobrecimento da sociedade, pois veda espaço à manifestação livre, expressão humana a ser respeitada e valorizada. De forma mais específica à política, o mutismo da opinião crítica apartidária é a receita para o empobrecimento e a não renovação de ideias e atitudes.
O enquadramento de toda e qualquer avaliação das ações públicas como “contra” ou “a favor”, “nós” ou “eles”, toca duas questões. A primeira é o jugo do realismo. Num curto prazo em que só há nós e eles, fazem-se todas as concessões ao realismo, só podem ser buscados objetivos dentro do escopo colocado imediatamente, sem possibilidades de invenção e construção de novos consensos possíveis. Vale lembrar que a política é uma atividade humana que, em seus momentos mais valiosos, foi trespassada pela criatividade e ousadia, pois cabe a ela resolver impasses de natureza complexa.
O segundo ponto do jugo partidário é a solidificação de valores substantivos na democracia. Para cada grupo há as verdades e valores superiores que devem ser buscados, mas a democracia ocidental exige sua operação dentro de um meta-valor, qual seja, a liberdade: tem-se que garantir a liberdade para que se decida o que deve ser perseguido. Se não há respeito à regra básica do jogo, ele se empobrece (e como podemos lembrar de outras ocasiões, torna-se até perigoso à subsistência humana).
Parte do PT parece ter embarcado numa cruzada contra a grande imprensa, e esta, com honrosas exceções, parece estar respondendo na mesma moeda. Se o governo do PT tem prejudicado ou favorecido interesses do empresariado e poderosos grupos na mídia, e por quê, isso é ponto para discussão. Contudo, o que se mostra mais claro é que parte dos petistas ainda não se aproximou de um contato livre e desembaraçado com a grande imprensa. Por formação e origem, eles não convivem bem – tem não só objetivos diferentes quanto valores e visões de mundo diversos. Assim, não é de estranhar tanto as propostas recorrentes do PT em regular a imprensa quanto o fato de não terem recebido ainda um impulso definitivo e significativo dos petistas presidentes da República. Quem está com o timão há de equilibrar as pressões internas do seu grupo político e a realidade externa das outras forças.
Mesmo se o jogo político de curto prazo é muito forte, não se deve impor a ponto de dividir o mundo entre quem é “contra” e “a favor” e impedir o pensamento crítico livre. Sua preservação está a exigir defesa, tanto junto ao governo quanto à imprensa. É também um chamado à academia e às organizações sociais. Sem apelo a fórmulas demagógicas, é uma preocupação com o Brasil de todos e seu futuro.
Por fim, as duas questões desse artigo compõem-se da seguinte forma. Mais informação à sociedade é saudável e uma demanda inerente de sua complexificação. Não se deve ficar assustado com o sinal dos tempos. Se é ao eleitor que se informa, o voto é um horizonte aceitável. Contudo, também é importante a variedade dos pontos de vista, quando se pode ser favorável ou contrário sem ser apoiador ou inimigo. A política pública da informação exige conhecimento, discernimento e coragem, elementos que constroem estadistas e sociedades fortes e livres.
* Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), Ricardo de João Braga também possui formação em Economia, e é professor e consultor político.
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