O Brasil acumula notável histórico de casos de corrupção, vários deles dissecados por policiais, membros do Ministério Público, outros agentes do Estado e jornalistas. Como é sabido, tais episódios costumam seguir um roteiro que soa a farsa pela frequência com que se repete o mesmo enredo.
Primeiro, causam perplexidade ao chegarem ao conhecimento da população. Em seguida, geram respostas tímidas das autoridades, que agem para tirar o mais rápido possível o assunto das manchetes, de modo a poupar ao máximo os alvos das denúncias e a preservar práticas nefastas infelizmente corriqueiras na administração pública do país. Completam o quadro a impunidade, sobretudo em favor dos réus instalados nas mais altas esferas sociais e políticas da nação, e a sensação crescente de que estamos condenados a ser um território em que a lei não vale para os ricos e poderosos.
A patética sucessão de revelações que atingiu o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (desde ontem sem partido), e seu vice, Paulo Octávio (DEM), oferece uma chance única de demonstrar se os céticos estão certos. Ou seja, se afinal podemos ou não acreditar que a nascente democracia brasileira dispõe de mecanismos para evitar que autoridades flagradas em práticas irregulares podem escapar ilesas com o apoio da silenciosa maioria da população e da colaboração igualmente surda, e ainda mais eficaz, de um sistema odioso que inclui desde as podridões da política até um Judiciário refém tanto da morosidade imposta por processos obtusos e formalistas quanto pela pouca permeabilidade às demandas mais caras da democracia, como mostrou a inexplicável decisão do Supremo Tribunal Federal de manter sob censura o jornal O Estado de S. Paulo. Logo quem, justo o STF, que carrega consigo o inexplicável passivo de quem, em toda a sua história, jamais condenou um político!
Estamos diante de uma oportunidade única porque nunca se viu um caso de movimentação ilegal de recursos tão minuciosamente documentado e radiografado e também porque a tolerância dos setores mais organizados da sociedade às afrontas desferidas pelos poderosos chegou ao limite. Prova disso está no fato de mais de uma dezena de pedidos de impeachment já ter sido apresentada contra a dupla Arruda/PO, inclusive com o aval de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Outro ingrediente torna o episódio ainda mais simbólico: o primarismo das explicações fornecidas pelos envolvidos. Ao dizer que o dinheiro sujo recebido por Arruda destinava-se à compra de panetones, o governador e sua assessoria demonstraram o quanto tomam por estúpidos todos nós, espectadores do lamaçal que inunda a capital federal, entre cenas de dinheiro escondido em meias, cuecas, bolsas e pastas de executivo.
O que os vídeos mostram é, por si só, suficiente para embasar a imediata abertura de processo de impeachment contra Arruda e Paulo Octávio. Qualquer pessoa minimamente bem informada sabe que governo algum pratica suas ações – as legais, as contabilizadas, bem dito – com dinheiro vivo. E há dinheiro para toda a base de sustentação do governo Arruda, sem falar das referências ainda não esclarecidas a caciques nacionais do PMDB.
Ontem, Arruda pediu desfiliação do DEM para evitar a sua expulsão. A saída do partido traz prejuízos ao governador, que não poderá disputar mais as eleições do ano que vem. Mas é muito pouco, é pouquíssimo, para um caso de corrupção tão bem documentado. Não se pode aceitar, do mesmo modo, que Arruda seja o único punido. Seu vice também foi diretamente acusado pela testemunha-chave do panetonegate, o ex-secretário de Relações Institucionais Durval Barbosa. Segundo Durval, Paulo Octávio recebeu 30% das propinas recolhidas para aprovar o Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF.
Paulo Octávio, um dos principais empresários imobiliários de Brasília, é diretamente beneficiário da aprovação do PDOT, marcada por irregularidades tão óbvias que o Ministério Público já pediu a sua anulação. Sem falar que o principal executivo do vice-governador, Marcelo Carvalho, foi filmado em um misterioso encontro com Durval, de quem recebeu uma mala fechada. Conforme o ex-secretário, ela continha parte do dinheiro das propinas.
É absolutamente necessário para o desenvolvimento de uma cultura realmente democrática no país que os políticos corruptos comecem a pagar por seus delitos. É vital que eles, como qualquer cidadão que comete um crime, paguem por seus atos na cadeia. Que esse assunto fique para decisão posterior do Judiciário. Mas que, de imediato, se faça o mínimo, dando-se início ao processo para afastar dos cargos o governador e o vice. O impeachment é, por natureza, um ato político, e está óbvio que faltam a Arruda e a Paulo Octávio condições políticas e morais de permanecerem à frente do governo do Distrito Federal.
As cenas da violência da Polícia Militar contra manifestantes em frente ao Palácio do Buriti na última quarta-feira mostram o grau de radicalização a que chegou a política brasiliense. Arruda é um reincidente. Quando admitiu ter violado o sigilo do painel eletrônico de votação do Senado na cassação do ex-senador Luiz Estevão, o hoje governador do DF pediu desculpas à população, que as aceitou. Arruda jamais poderia ter retribuído esse crédito com os cassetetes da tropa de choque da sua polícia. A cada dia em que permanece no governo, só aumenta o grau de confronto entre a população do Distrito Federal e a polícia do governador. Quanto sangue Arruda pretende derramar para sustentar a sua esfarrapada história dos panetones?
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