Lúcio Lambranho
A saúde pública brasileira, que ainda convalesce do rombo de mais de R$ 100 milhões deixado pela máfia das sanguessugas, pode sofrer mais um significativo corte de verbas no Orçamento da União de 2007. A situação é considerada crítica pelo deputado Júlio Semeghini (PSDB-SP), relator da Saúde na Comissão Mista de Orçamento, que ainda não sabe como fechar as contas previstas para o setor.
A votação do relatório estava prevista para hoje, mas foi adiada a pedido do relator para que ele possa negociar com o governo uma saída para o déficit de R$ 1,6 bilhão nos recursos orçamentários destinados aos procedimentos de média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar, mais conhecidos pela sigla MAC.
Nesse tipo de atendimento estão incluídos os tratamentos de doenças graves como câncer (quimioterapia e radioterapia), transplantes e cirurgias cardíacas. Essa área, segundo o relator, tem sido a mais afetada pelo orçamento da saúde nos últimos anos.
Negociação com o governo
"À medida que o Brasil também fica mais velho, aumenta muito o atendimento médico para as pessoas nos hospitais brasileiros. Isso deveria estar sempre previsto, além da correção dos custos, dos salários dos médicos, enfermeiros e dos medicamentos", explica o relator setorial, que se encontrará hoje com os ministros da Saúde, Agenor Álvares, e do Planejamento, Paulo Bernardo, para discutir uma solução para o impasse.
Leia também
Semeghini adiantou ao Congresso em Foco que não apresentará o seu relatório enquanto o governo não rever sua posição. Dos dez relatores setoriais, apenas ele e o de Infra-estrutura, deputado Pedro Novais (PMDB-MA), ainda não concluíram o trabalho.
As contas do relator setorial para chegar ao déficit de R$ 1,6 bilhão no MAC se baseiam no que prevê a Emenda Constitucional 29/00. Desde 2000, a Constituição Federal obriga o Executivo a investir em saúde todo ano, no mínimo, o mesmo valor do orçamento anterior mais a variação do PIB nominal de 4,9% em 2006.
Com isso, na prática, a proposta orçamentária encaminhada pelo governo deveria contemplar os R$ 17,7 bilhões utilizados este ano e outros R$ 900 milhões para acompanhar a variação do PIB nominal. Mas o projeto da lei orçamentária faz o caminho inverso, ao propor apenas R$ 17 bilhões para 2007 – R$ 700 milhões a menos do que em 2006.
Sem dinheiro para ambulâncias
Caso seja aprovada a redução orçamentária, o tratamento de doenças graves sofrerá um abalo duplo em duas pontas de atendimento em hospitais Brasil afora. É que o Ministério da Saúde também cortou todos os programas para a compra de ambulâncias, tentando se proteger de novas fraudes, e para transporte de doentes, práticas comuns em todo país justamente para pessoas que precisam de tratamentos de média e alta complexidade em cidades pólos. Com isso, não haverá uma única emenda para compra de ambulâncias neste ano.
"Eu acho isso um equívoco. O Ministério deveria comprar as ambulâncias por meio de pregão eletrônico e entregar para as prefeituras evitando as fraudes de forma transparente. A falta de recursos para o MAC e de um programa do governo para recursos para transporte de pacientes são duas coisas sérias que precisam ser resolvidas", acredita Semeghini.
Para contornar o déficit, o relator setorial vai propor aos ministros da Saúde e do Planejamento que o governo pare de utilizar recursos destinados a atendimentos de alta complexidade com o programa de farmácias populares e o atendimento dos servidores públicos.
"Na verdade não sabemos ainda os valores dessas duas despesas de custeio e, por isso, precisamos saber os números do Ministério da Saúde. Mas não é uma coisa correta nem justa. Não podemos permitir que o governo tire dinheiro do MAC para as farmácias populares. É isso que está parecendo e não faz sentido", critica o relator da Saúde.
Margem de manobra limitada
A proposta orçamentária do governo prevê que o Ministério da Saúde receberá dotação de R$ 46,39 bilhões em 2007. Desse valor, R$ 42,35 bilhões deverão ser destinados a ações e serviços de Saúde, incluídos R$ 228 milhões das Farmácias Populares.
Mas a possibilidade de manobra do relator é limitada. Ele não poderá mexer nem mesmo no R$ 1,7 bilhão que o governo reservou como verba de contingência. É que esse dinheiro será usado, quase todo, para atender às mais de três mil emendas individuais de deputados e senadores.
O problema é que a Comissão Mista de Orçamento elevou este ano o limite de emendas por parlamentar, de R$ 5 milhões para R$ 6 milhões, o que vai consumir R$ 1,2 bilhão. É que 30% do valor das emendas individuais têm de ser destinados à saúde. Resultado: só R$ 500 milhões poderão ser remanejados para o atendimento de alta complexidade.
As emendas dos parlamentares quase nunca são usadas para atender aos procedimentos graves como os previstos no MAC. De acordo com o relator, os parlamentares destinam mais da metade das suas propostas a ações de atenção básica de saúde, construção de hospitais em municípios sob sua influência eleitoral e redes de entidades filantrópicas como as Santas Casas.
“Lobbyzinho anual”
Uma das principais referências do governo na Comissão Mista de Orçamento, o deputado Carlito Merss (PT-SC), relator-geral do Orçamento de 2006, diz que as queixas de Semeghini são exageradas.
Segundo o deputado, o grosso dessas reivindicações do setor é patrocinada por hospitais privados e filantrópicos, no que ele classificou de “lobbyzinho anual”. "Apesar de parte do pedido ser justa, eles só querem o filé, deixando a carne de pescoço do SUS de lado", diz.
Para Merss, a proposta para os atendimentos incluídos no MAC foi atendida com uma verba adicional de R$ 1,1 bilhão, retirada do Fundo de Combate à Pobreza. "É correto ter mais investimentos em hospitais, mas eu acho que comprar comida também é ação de saúde", acredita o deputado do PT.
Merss também não vê problema no uso do R$ 1,7 bilhão da reserva contigenciada para atender às emendas individuais em vez da aplicação dos recursos em outros programas de saúde. "Isso é uma decisão antiga. Não tem nada de mais e foi feita por acordo para atender à Emenda 29", completa.
Secretários cobram mais R$ 5 bi
No final de novembro, representantes do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems) entregaram um estudo técnico ao relator setorial, com o apoio da Frente Parlamentar da Saúde, mostrando que o MAC precisaria de, no mínimo, mais R$ 4,4 bilhões em 2007.
As duas entidades também pedem um aumento de R$ 248 milhões para a atenção primária à saúde e mais R$ 386 milhões destinados à aquisição de medicamentos excepcionais, o que fecharia a conta em mais de R$ 5 bilhões.
O presidente do Conass, Jurandi Frutuoso, argumenta que, se os três pedidos não forem atendidos, a situação ficará gravíssima nos hospitais das redes estadual e municipal de Saúde. "Já vivemos uma situação de crise nos atendimentos de alta complexidade, e não sei o que será da saúde em 2007", diz Frutuoso.
Secretário de Saúde do Ceará, o dirigente garante que 17 dos 29 hospitais pólos do seu estado são mantidos integralmente com verbas estaduais. Nos outros 12, o repasse do governo cearense chega a 80%. "O subfinacimento no setor é grave e nosso pedido não pode ser considerado como movimento de lobistas. Nossa causa é social", acredita Frutuoso.
Relator-geral prioriza mínimo
O relator-geral do orçamento, senador Valdir Raupp (PMDB-RO), já avisou aos secretários de Saúde que não há espaço para grandes manobras na proposta orçamentária de 2007. “Eu preciso de R$ 12 bi para distribuir aos setores que estão pleiteando mais recursos, como saúde, cultura, Aeronáutica, etc. Por enquanto, encontrei uma folga R$ 5,5 bilhões para recompor o orçamento 2007, sendo que a minha primeira prioridade será elevar o salário mínimo para R$ 375, que consumirá R$ 1,25 bilhão”, garantiu Raupp.
O relator setorial de Saúde também reclama da proposta enviada pelo governo. "O Executivo usou artifícios para garantir que sejam atendidos programas do governo e ficaram em última escala as emendas dos deputados e das bancadas. O governo prioriza os recursos de custeio justamente para que nós não possamos mudar quase nada no orçamento", lamenta Júlio Semeghini.