Ai dos que fazem da escuridade luz, e, da luz, escuridade
A chegada da CPI a uma determinada localidade, fosse ela uma cidade de porte cosmopolita ou provinciana, desencadeava uma série de acontecimentos. Normalmente, o Ministério Público se sentia motivado a denunciar criminosos, a pedir prisões; a Polícia Federal se sentia prestigiada, e a imprensa em geral criava um clima de denuncismo que atemorizava os criminosos.
A sociedade brasileira, e talvez qualquer sociedade, entroniza os abastados, sem se preocupar em especular a origem de sua riqueza. Não faz juízo de valor a esse respeito. Algumas revistas, cuja matéria é, usualmente, gente famosa, e outros veículos de comunicação, elegem seus ícones com base em fama e riqueza.
A CPI chegava em cada cidade, procurando a origem de riquezas suspeitas, denunciando o enriquecimento ilícito, apurando as conexões do crime organizado que criam as fortunas de pessoas notáveis da sociedade. Talvez esse tenha sido um dos méritos da CPI. A CPI denunciou os criminosos enriquecidos ilicitamente.
Não que a CPI estivesse totalmente imune às influências de ricos e famosos, mas, majoritariamente, a comissão não atentou para essas questões. Algumas situações já estabelecidas foram duramente golpeadas pela CPI, como no caso de Luigi Ramos – o da trituradora –, fato que deu ao povo de Rondônia a possibilidade de acreditar em viver livre de déspotas criminosos. A prisão dele e outros mais, além disso, passava a mensagem clichê de que o crime não compensa. De que a riqueza de origem ilícita não é aceitável.
Leia também
Embora não tenha tido a capacidade de aplaudir e valorizar o íntegro, a CPI teve esse mérito de denunciar o criminoso e de passar a mensagem de que nem toda riqueza é boa. Nas diligências, nos depoimentos, nas prisões, nas acareações e nos interrogatórios, estava implícita a mensagem simples de que o crime é ruim, de que é errado enriquecer de maneira ilícita.
PublicidadeEsse maniqueísmo da CPI, a despeito de alguns equívocos que provocava, foi responsável pelo grande feito daqueles deputados.
Deixando de lado as evidentes e indesejadas contradições internas da CPI, vislumbrei, num quadro maior, os parlamentares deixando-se usar por uma boa causa, apregoando valores que dão coesão ao tecido social de uma nação.
Fazer afirmações simplistas como estas pode soar pueril, mas por mais que de fato o seja, é preciso que no imaginário de todas as crianças, e mesmo dos adultos desta nação, se crie uma dicotomia clara entre o que destrói e o que constrói uma sociedade, e, enfim, uma nação. Roubar é ruim, trabalhar honestamente é bom; enriquecer só é bom se não for ilicitamente. Simples e claro.
Em Palmas, o presidente da Assembleia Legislativa e a presidente do Tribunal de Contas do Estado eram pessoas que transitavam na sociedade com extrema desenvoltura. Faziam parte da sociedade local como quaisquer outros membros da elite mais aquinhoada do local, embora se soubesse como tinham enriquecido ilicitamente. Possivelmente, boa parte das pessoas que os rodeavam gostariam de conseguir ser tão bem sucedido quanto eles. De fato, ao aceitá-los, a sociedade local não só os absolvia como ainda os elegia como modelos a serem seguidos. A CPI, quando por lá passou, disse que as coisas não eram bem assim. Aquelas eram pessoas que mereciam ser punidas pelos erros que cometeram, “não sigam os exemplos que elas dão”.
Os dois, ao se sentarem no banco das testemunhas, haviam sido impiedosamente acusados pelas denúncias que pesavam contra eles. A imprensa noticiou e a percepção de muitas pessoas começou a mudar; ali não estavam pessoas bem sucedidas, mas dois acusados por diversos crimes, que poderiam parar na cadeia a qualquer hora.
Não vou adentrar na questão da efetividade do Poder Judiciário para fazer com que eles viessem a pagar pelos ilícitos cometidos. Interessa-me aqui uma questão preliminar, e bem mais simples, ou seja, que eles fossem conhecidos como criminosos, e, por isso, repudiados.
Mas não só a pregação constante que opunha bem e mal gerava bons resultados. O trabalho teria sido inútil se a CPI não tivesse sido pródiga em indiciar, quebrar sigilos, condenar e prender. Um criminoso, passando pelo corredor que levava do auditório ao prédio da Procuradoria do estado do Tocantins, ao sair do interrogatório, confidenciou a seu advogado que sentiu medo de ir preso.
Por mais que a CPI cantarolasse, a cantiga do homem honesto não produziria efeitos se na canção do criminoso não houvesse a possibilidade do desmascaramento, da execração pública e – até mesmo – da prisão.
A CPI mostrou que não existe nada de novo debaixo do sol. E soube entender que o embate constante que denunciava tinha a ver, principalmente, com valores. Os parlamentares membros da CPI, embora muitas vezes eles mesmos dominados por sentimentos e atitudes reprováveis, deixaram-se utilizar como instrumentos de uma boa causa, que, a despeito de inúmeras críticas, produziu bons resultados para a nação.
As pregações de Maurício Ramos foram o norte seguido que sintetizou essa lição. Em determinados momentos catequisava traficantes condenados:
– Você escolheu o caminho do mal, mas ainda pode mudar… Eu poderia ter sido como você, mas fiz outra opção… Essa sua vida não vale a pena, é um inferno…
Anos mais tarde, o presidente mais popular de nosso país golpeou de maneira rude essa mesma nação destruindo valores que apregoava antes de sua eleição.
Em 2005, em Paris, referindo-se ao escândalo do mensalão, ele afirmou que seu partido só fez aquilo que todos os demais partidos faziam, provocando o início de um desmonte ético que parece não ter fim. Como ele e seu partido têm “alguma sensibilidade social” – em relação a seu antecessor, conforme dizem seus defensores, sigamos em frente – é um mal menor.
Uma prima minha, que militara por tantos anos no partido, dizia incrédula:
– A verdade ainda vai aparecer…
A verdade apareceu, era aquela mesma que se soube desde o início, e ainda está aí para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Quanto ao fato de que o partido do presidente tenha se envolvido nas mesmas mazelas que os demais partidos, o fato em si não tem o poder destrutivo desse desmonte conceitual e ético que o presidente ele impingiu ao país ao deixar claro que considerava normal a compra de parlamentares com dinheiro público desviado para votar naquilo que o governo queria aprovar. Esse momento da vida da nação ainda precisa ser mais bem estudado, para que se conheça o alcance das consequências que gerou.
O presidente messiânico ainda aprofundou a tragédia que foi essa perda de valores iniciada com o episódio do mensalão, nos anos a seguir, levando nosso povo, encantado com seu carisma, a deixar de distinguir entre aquilo que constrói e aquilo que destrói uma nação. A corrupção destrói.
Nosso país se aprofunda nas contradições denunciadas pelo profeta Isaías que ecoam do passado nos condenando nos dias de hoje: somos a terra na qual os homens ao mal chamam bem e ao bem, mal; fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce por amargo.
Ai dos que assim fazem, proclama o profeta.
A CPI do Tráfico de Cebolas, a despeito de suas próprias contradições e pecados, teve o mérito de chamar o bem de bem, o mal de mal, a luz de luz, a escuridade de escuridade, o amargo de amargo e o doce de doce. Talvez tenha sido esse o seu legado.
Leia também:
Uma novela política, 9o. capítulo
Uma novela política, 8o. capítulo
Uma novela política, 7o. capítulo
Uma novela política, 6o capítulo
Uma novela política, 5o capítulo
Uma novela política, 4º capítulo
Uma nova política, 3º capítulo
Uma novela política, 2º capítulo
Uma novela política, 1º capítulo