A questão é simples: tem a ver com escolhas que fazemos na vida
Já era tarde, quase 23 horas, quando os primeiros parlamentares chegaram para a instalação da CPI em Florianópolis. Membros da imprensa lotavam o saguão do aeroporto. Ainda esperando a chegada da bagagem, Cristina, assessora de Lineu Júnior – que era do estado -, reclamava:
– Chefe, o senhor está sempre bem vestido, mas hoje não foi feliz ao escolher sua roupa.
– Qual o problema? perguntou Lineu.
– O saguão está repleto de repórteres que vão entrevistar e tirar fotografias do senhor. A sua roupa está muito desarrumada!
Lineu deu uma olhada em si mesmo e percebeu que Cristina tinha razão.
– E agora, o que vou fazer? Sair nas fotos assim?
Cristina conseguiu um blazer emprestado com outro assessor, disse ao chefe para ir ao banheiro, colocar a camisa para dentro da calça e dar uma penteada no cabelo. Problema resolvido, Lineu Júnior saiu para o saguão do aeroporto acompanhado dos deputados Lívio Tomé e Nádia Soares. A mídia cercou-os imediatamente.
PublicidadeAquela era a primeira viagem da qual Lineu Júnior participava. Alguns dias antes, Maurício Ramos havia pedido que ele fosse até seu gabinete, e perguntou:
Leia também
– Você não gostaria de levar a comissão para Santa Catarina? Você sabe que uma parte vai para o Rio Grande do Sul, mas seria possível dividir o grupo e fazer algum trabalho em seu estado.
Lineu gostou da ideia. Sabia que a atenção da mídia estaria dividida entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde havia denúncias pesadas, com o envolvimento de diversos políticos, resvalando até mesmo em um ministro de Estado. Mesmo assim, Lineu avaliou que seria muito boa a presença da comissão em seu estado, e aceitou o encargo.
Na primeira manhã dos trabalhos em Santa Catarina, participaram da tomada de depoimentos apenas Lineu, Lívio e Nádia. Maurício Ramos e Cristiano Ramos só chegaram à noite daquele primeiro dia, vindos do Rio Grande do Sul.
Lineu trazia em seu currículo uma longa história de patrocínio do trabalho de prevenção contra o uso de cebolas e no tratamento de dependentes. Essas experiências passadas o moveram a participar da CPI. Sua atuação política em Santa Catarina relacionava-se com seu envolvimento nessas atividades, o que lhe conquistara votação acima de 100 mil votos em sua primeira eleição. Entre suas importantes realizações no estado, estavam o estabelecimento de casas de recuperação para ceboladependentes e a criação do Conec – Conselho Estadual de Cebolas.
Naquela primeira manhã em Florianópolis, enquanto aguardavam que os parlamentares terminassem o café da manhã, assessores da CPI e o superintendente da Polícia Federal local conversavam sobre a necessidade de a CPI produzir resultados objetivos e permanentes para a região após sua passagem por lá.
Amilcar Bastos, delegado da Polícia Federal na cidade, originário de Campina Grande mas radicado em Florianópolis já havia 25 anos, ligou para a sede da Polícia Federal em Brasília, para conversar com o delegado responsável por um projeto de modernização que incluía a construção de diversas novas delegacias no país. Além disso, o projeto visava reaparelhar por completo o departamento. Chegaram à conclusão de que a comissão poderia fazer injunções junto ao governo, com o intuito de apressar a aprovação do projeto. Aliás, era mais do que necessária a implantação desse processo de modernização o mais urgente possível.
O tratamento dispensado à Polícia Federal, que podia ser considerado um órgão para o qual o governo federal procurava reservar uma boa dotação orçamentária, era desanimador. Alguns dias antes da chegada da CPI à Florianópolis, a Superintendência da Polícia Federal naquela cidade tivera seus telefones cortados por falta de pagamento!
Ao saber disso, Lineu Júnior ficou estarrecido e preocupado. Como poderia o órgão executar bem seu serviço se não conseguia nem pagar a conta telefônica? Ligou para a operadora e pediu que as linhas fossem religadas, pelo menos durante os trabalhos; pedido atendido.
Depois de alguns omeletes, Lineu, Lívio e Nádia seguiram para a Superintendência da Polícia Federal. A mídia local, como acontecia por onde quer que a CPI passasse, esperava o grupo com ansiedade. Várias entrevistas foram dadas logo na chegada ao local dos trabalhos. A Polícia Militar tomava conta da entrada do prédio, e o COT – Comando de Operações Táticas da Polícia Federal, fazia a segurança na parte de dentro.
Em Florianópolis, ficou mais uma vez patente o alto nível do trabalho e dos integrantes da Polícia Federal. Bruno Fernandes, policial competentíssimo, havia tomado todas as providências para uma boa acolhida ao grupo. O delegado local forneceu as informações sobre os depoentes, bem como auxiliou os interrogatórios com dados precisos contidos em processos meticulosamente elaborados. A qualidade do trabalho merecia, se possível fosse, uma certificação.
Todo o trabalho da Polícia Federal era constantemente exaltado nas reuniões da CPI. Profissionais gabaritados, sérios, competentes, que, juntamente com membros no Ministério Público, não só deram o apoio necessário para o sucesso dos trabalhos nas diversas cidades do país, como também o apoio aos trabalhos desenvolvidos na Câmara dos Deputados.
Mais uma vez, ali estavam a Polícia Federal e o Ministério Público, este na figura do dr. Ubirajara Aguiar.
Seriam inúmeros os depoimentos, mas, ao contrário do que aconteceu na maior parte das demais reuniões e diligências realizadas pelo país afora, a CPI entrevistava pessoas que já estavam presas. Não eram simplesmente suspeitos, mas, sim, pessoas já indiciadas. Estavam ali, presos em Florianópolis, alguns dos principais traficantes do país, gente cujos carregamentos de cebolas chegavam a ultrapassar 500kg!
Muitos deles se conheciam há muito tempo, desde o ciclo do garimpo. Alguns prosperaram e chegaram a comprar aviões que utilizavam no transporte de produtos até as regiões inóspitas dos garimpos. A substituição desses serviços pelo comércio de cebolas, de resto muito mais rentável, acabou se dando por três fatores. Em primeiro lugar, pela proximidade com a criminalidade que cerca o garimpo, em segundo lugar como resultado da diversificação necessária quando o garimpo deixou de ser tão lucrativo e, em terceiro lugar, pela proximidade das áreas de garimpo com as rotas de escoamento da produção de cebolas.
As atividades daqueles traficantes eram bastante especializadas, sendo que cada tarefa era executada por um especialista da área, quase que numa sistemática de terceirização. Assim é que, em algumas situações, o criminoso conseguia até mesmo relevar qualquer mínimo sentimento de culpa, ou justificar sua atuação na atividade, por não se envolver diretamente com cebolas. Em uma cidade do interior do Paraná, local de abastecimento das aeronaves, cuidava da pista de pouso e da compra do combustível um simpático senhor, cujo nome era William, que dizia com ar bondoso:
– Não, meu filho, não mexo com nada disso. Meu serviço é só abastecer aviões.
De fato, ele só abastecia aeronaves, e tentava alegar que não sabia de onde vinham, para onde iam ou o que carregavam. A polícia demonstrava, no processo que tinha contra ele, ordens de pagamento e depósitos em sua conta feitos por Alberto Pedro, o maior traficante conhecido pela Polícia Federal naquela época, que se encontrava também preso em Florianópolis. Mas William continuava a protestar inocência, mesmo porque o dinheiro de Alberto destinava-se, de fato, a financiar a aquisição do combustível.
Além de William e Alberto, estavam detidos outros pilotos e donos de aviões, que compunham a quadrilha. O chefe era Alberto. Outro, Kleber, tinha alguns aviões, mas trabalhava sob o comando e pagamento de Alberto. Apesar do volume das movimentações de Alberto, e de ele ser, àquela altura, o maior traficante de cebolas do país, quem despertava mais interesse era Bartolomeu. Isso porque Alberto havia sido preso nas proximidades de sua casa, mediante mandato de prisão, enquanto Bartolomeu fora preso literalmente sentado em cebolas.
O depoimento de Bartolomeu era o mais aguardado. Não só por ter sido preso em flagrante, com 900 kg de cebolas, mas também porque durante os dias que antecederam a vinda da CPI a Florianópolis, ele tinha feito algo como um compromisso de insultar e desrespeitar os parlamentares.
Bartolomeu era um tipo interessante. Na casa dos 30 anos, era bem casado e tinha uma filha. Sua esposa, evangélica, não fazia ideia de que o marido estivesse envolvido com o tráfico de cebolas. Algumas gravações interceptadas pela Polícia Federal revelavam isto. Bartolomeu, quando foi preso, ao olhar para uma foto de sua família, chorou. Em off, durante sua remoção para Florianópolis, contou aos policiais federais como era o seu esquema. Fazia um grande carregamento por ano, que lhe rendia US$ 500 mil – cebolas alcançam preço muito elevado no mercado internacional. No resto do ano mantinha algumas atividades comerciais por meio das quais fazia a lavagem do dinheiro.
A Polícia Federal já o seguia há três anos. A operação para prendê-lo esteve por um fio, mas acabou sendo realizada com sucesso. Um grupo de agentes do COT de Florianópolis e de Boa Vista, tendo a informação sobre o local do pouso da aeronave que traria as cebolas, vinda do Paraguai, deslocou-se para lá.
Era um local de difícil acesso. Uma fazenda na qual só se podia chegar passando por dentro de outras duas. Qualquer movimento nas imediações chamaria a atenção dos funcionários.
Alguém informou a Bartolomeu que havia um grupo de pescadores numa F1000, perto de sua fazenda, e ele, apesar de ter ficado meio desconfiado, resolveu seguir em frente. Mais tarde, já preso, comentou com os agentes que tinha conhecimento de que havia alguém na fazenda, e não entendia como tinha prosseguido com a operação. O tempo todo alguma coisa o avisava que algo sairia errado para ele.
O grupo do COT acampou a alguns quilômetros da pista de pouso. Todos os dias, logo cedo, os policiais deixavam o acampamento, escondidos no mato, e iam para mais perto da pista, carregando todo o equipamento. Faziam isso para não serem localizados nem denunciarem a sua presença ali. Era uma operação difícil e cansativa. A cada manhã, o grupo juntava tudo o que levara e carregava até o local da tocaia, a alguns metros da pista de pouso.
O voo atrasou muitos dias. Chovia muito na selva paraguaia, e o avião de Bartolomeu atolou, não conseguindo levantar com o peso daquele carregamento de cebolas. O piloto teve que deixar parte da carga. As provisões do COT estavam-se acabando rapidamente e eles ficaram numa encruzilhada. Achavam que se saíssem para buscar comida poderiam por a operação a perder, mas já começavam a passar fome. A alimentação diária resumia-se a dois pacotes de miojo para seis agentes.
Naquela manhã, os agentes estavam famintos, cansados e desanimados. Juntaram mais uma vez seus equipamentos e começaram a longa caminhada mato adentro, até a pista de pouso. Posicionaram-se próximos à pista, como faziam todos os dias, dois em cada extremidade, e os outros dois mais afastados. Sentiam-se a ponto de sucumbir. Mais um dia de espera. O atraso em relação ao cronograma original de Bartolomeu já era de três dias. O sol forte castigava-os escondidos no mato. No meio da tarde, o céu escureceu. Uma forte chuva, com muito vento, trouxe desespero à equipe. Aquele tempo significava que não haveria pouso naquela tarde, seria impossível descer na pista em condições como aquela. Um frio intenso atacou os já debilitados agentes.
Encolhido no mato, um dos agentes, a espera de um milagre, orou:
– Deus, faça alguma coisa… já não estamos mais aguentando.
O céu estava fechado, e a aproximação da noite os faria retornar para o acampamento. Só mesmo Deus sabia se eles aguentariam mais uma noite naquela situação, agora, sem nem mesmo o miojo. Subitamente, formou-se numa das cabeceiras da pista um pequeno espaço entre as nuvens, que permitia ver a luz do sol. Lentamente as nuvens se afastaram ainda mais, trazendo claridade sobre toda a pista de pouso. A chuva deu uma pequena trégua naquele local. Os agentes puderam ouvir ao longe o som do bimotor que se aproximava. Deu duas voltas sobre a pista para certificar-se de que tinha condições de pousar. Aterrisou. Saindo em disparada pela pista, no momento em que o piloto descera do avião para se encontrar com Bartolomeu e outros dois funcionários, os agentes os prenderam sem resistência alguma.
Trinta dias depois, Bartolomeu estava diante da CPI. Tinha prometido tumultuar a reunião, mas estava ali, quieto, algemado, sentado de frente para Maurício Ramos. O parlamentar falava com tranquilidade, até mesmo com autoridade. Contou de seu passado na favela, e das opções que ele mesmo poderia ter feito em sua vida. Não lhe faltaram oportunidades para se envolver no crime, mas tinha seguido em direção diversa. Convertera-se ao evangelho e dedicara-se à recuperação de jovens dependentes de cebolas.
– Eu poderia estar no seu lugar hoje, mas veja, sou um deputado federal… A questão é simples, tem a ver com escolhas que fazemos na vida… Ainda há tempo para você, mas é preciso que você venha para o lado do bem…
Na verdade, era a mesma pregação, um tanto maniqueísta, que ele fazia a todos os traficantes com quem vinha se encontrando já há alguns meses. Bartolomeu ouviu a tudo calado. Ao final, levantou-se, caminhou em direção a Maurício Ramos, apertou sua mão e disse:
– Muito obrigado…
Ubirajara Aguiar, do Ministério Público Federal, responsável pela denúncia contra Bartolomeu, impressionado com a reação do traficante, comentou:
– Ele ficou tocado.
Bartolomeu ficou preso por pouco tempo. Depois de três anos de investigações, e, especialmente, da epopeia vivida no interior da fazenda onde a prisão tinha sido efetuada, a Polícia Federal e o Ministério Público viam o juiz federal responsável pelo caso condená-lo a um ano e seis meses de prisão. Das duas acusações, tráfico internacional e formação de quadrilha, que poderiam render, com todas as agravantes constantes do processo, até 25 anos de prisão, o juiz desqualificou a formação de quadrilha e deu a pena mínima para o tráfico internacional, utilizando-se de todas as atenuantes possíveis e desconsiderando todas as agravantes. Antes de Bartolomeu sair da cadeia, agentes federais já detectavam a reestruturação de seus negócios. Restou a esperança de que sua esposa estivesse orando para que ele mudasse de vida, e que suas preces fossem atendidas como a prece do agente da Polícia Federal fez no dia em que o COT efetuou a prisão. Que o céu se abrisse e a luz brilhasse sobre Bartolomeu, mudando seus caminhos, porque, no que coube à justiça humana, quase nada se fez.