Bajonas Teixeira de Brito Junior *
Dia a dia, hora a hora, temos que conviver no Brasil com os choques de uma experiência salpicada de atrocidades. Qualquer brasileiro típico ― jovem, adulto, criança ― já viu atualmente registrados pelas câmeras de segurança um número muito superior de assassinatos do que viram os matadores clássicos. No mesmo dia em que lemos nos jornais que a polícia britânica atirou apenas três vezes em um ano, assistimos ao assassinato de um camelô com um tiro no rosto por um policial paulista. Vemos a luta corporal de uma empresária e o filho com dois assaltantes, e, em seguida, os dois feridos a tiros. Apreciamos logo depois a imagem de um homem com as duas mãos decepadas a facão por um fazendeiro. No mesmo dia, no Rio, um guarda civil sem porte de armas atirou em dois camelôs durante uma operação no centro da cidade.
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Poucos dias antes tivemos pavorosa história da jovem que desapareceu após um aborto no Rio, e em seguida o aparecimento de um corpo barbaramente mutilado para não ser identificado. Dois policiais civis foram presos como envolvidos com a “segurança” da gangue do aborto. E assim vamos sendo arrastados na corrente das monstruosidades. A classe média deixa no trânsito a cada ano o rastro sangrento de mais de cinquenta mil mortes, chegando a meio milhão em dez anos. As mortes por arma de fogo, que dão ao Brasil a triste insígnia de líder mundial, e tudo isso vem num crescendo.
Em certas matérias os limites do horror chegam ao absurdo, como essa aqui: Com nova delegacia no RJ, mães de sumidos esperam por DNA de 213 ossadas. O que está dito aqui ultrapassa as margens habituais do nosso cotidiano já pavimentado pelo horripilante. No entanto, provavelmente teremos dificuldade de lê-la, seja por sermos incapazes de sentir a vertigem diante de algo tão pavoroso, sinal de que estamos insensibilizados, seja por sermos incitados apenas por uma curiosidade mórbida, situação que denuncia que já estamos inteiramente plasmados pela mídia e seus imperativos. Conseguindo ler, nossa primeira constatação seria talvez a seguinte: 213 ossadas é apenas o que foi encontrado no Rio de Janeiro, uma das 27 unidades federativas do país. Além disso, é apenas “o que foi encontrado”, restando ainda um número indeterminado de “desaparecidos” jazendo, talvez, sob a terra, nos valões, nos mangues, etc. E se tudo fosse desenterrado, em todos os estados e no distrito federal? Será que estamos vivendo sobre um imenso ossuário? O título de uma longa matéria publicado agora em 2014 no site do Terra é muito eloquente: RJ tem mais de 6 mil desaparecidos entre 2012 e 2013. E no Brasil inteiro, quantos foram os desaparecidos no período? Quantos desaparecem em uma década em todo o país, se só no Rio em um ano desapareceram mais de seis mil? Por que dados estatísticos tão relevantes não estão disponíveis para a consideração da opinião pública? Por que o Ministério da Justiça não os providencia?
Estas questões devem ser postas. Mas se tornam cada vez mais incompreensíveis à medida que os significados de palavras tais como hediondo, aterrador, macabro, tenebroso praticamente desaparecem da linguagem.
A simples capacidade de perceber, ainda que de forma rudimentar, o estado de coisas vigentes já foi completamente banida do senso comum que, com isso, deu lugar a uma insensibilidade tétrica que reina sem inibições. As declarações dos políticos que a cada crime, mesmo da polícia, só sabem dizer que é preciso mais… polícia, a excitação com que a população conversa sobre a última notícia horripilante, o sem cerimônia com que as “imagens fortes”, e “muito fortes”, são exibidas desenfreadamente para o público como chamariz seguro de audiência, tudo isso leva a crer que passamos a um novo regime de percepção que, de tão bombardeada por imagens ultrajantes através da mídia, já não se satisfaz com pequenas doses de violência, mas apenas com doses cavalares concentradas desse produto. (Não esqueçamos que a violência é um produto negociado na mídia, e seu valor se mede pelos pontos no Ibope. É certamente uma droga muito mais danosa que a cocaína e a maconha, mas o seu comércio é livre e os seus traficantes estão entre os mais ricos, e festejados, do país)
Nos Estados Unidos, a ultrapassagem para a superviolência foi apresentada no filme Assassinos por natureza (Oliver Stone, 1994), na Grã-Bretanha pelo livro de Anthony Burgess, Laranja mecânica, levado às telas no filme homônimo de Stanley Kubrick (1971). Nessas obras a violência na arte é um exercício do espanto dos artistas, que agigantam e intensificam um choque que sentem com a realidade. Mas uma realidade que é infinitamente menor ― lembremos que no último ano toda a polícia, em toda Grã-Bretanha, atirou apenas três vezes ― que a que vivemos no Brasil. Nos tornamos cada vez mais incapazes de perceber essa violência in extremis, tal como Hegel dizia que na luz absoluta a visão mergulha nas trevas.
A percepção do lumpem proletariado nas favelas, nas periferias e buracos infernais espalhados pelo país, sempre esteve permeada pelo atroz. Seus primeiros educadores foram os majores vidigais e tenentes galinhas do Império e da Velha República. Facínoras a serviço do latifúndio. A violência sempre foi um conteúdo normal da existência degradante dos pobres e, num país marcado como o mais desigual do mundo, uma espécie de teatro a céu aberto para o povão. Sobre isso se pode achar muito na literatura brasileira recente, como o conto A cabeça, do escritor mineiro Luiz Vilela, diversas obras de Rubem Fonseca e, em especial, nas quinhentos e cinquenta páginas de Cidade de Deus, de Paulo Lins.
A degustação diária do macabro, das cenas chocantes, da maldade desinibida, são ingredientes muito apreciados pelos grupos sociais reduzidos ao osso cultural. No Rio de Janeiro, a educação para a insensibilidade e para a síndrome de consumo da violência, foram obras longamente executadas pelo jornal O Dia. Com seu sucesso, ainda que com temporadas em que o próprio público, de tão insensível, sequer se chocava com as piores atrocidades estampadas no jornal, o que reduzia as vendas, O Dia serviu de modelo para outros jornais no país e, provavelmente, para os programas criminais na TV, a exemplo de Datena, que hoje dominam o país de um extremo ao outro.
O deleite do crime foi um substituto bem dosado no Rio de Janeiro para uma politização crescente da população da antiga capital federal, em regime populista, que em 1954 resultou em fúria das massas após o suicídio de Getúlio. A elite brasileira acusou o golpe e, no mais rápido possível, menos de seis anos, construiu uma sede faraônica e “moderna” para transferir o poder para o mais longe possível. Brasília ergueu entre o poder federal e a massa miserável do país um muro de distância de milhares de quilômetros. Nenhum castelo feudal contou nunca com tal fortificação. E, curiosamente, os intelectuais brasileiros nunca viram esse muro, embora muitos tenham criticado por décadas o Muro de Berlim.
A contraestratégia à politização dos desvalidos, que se tornaram ameaçadores numa fugaz ascensão nos pré-64, envolveu também uma mídia idiotizante. Dentro desse aparato, os meios mais eficazes foram os dedicados ao crime, sendo o jornal O Dia o representante mais nítido dessa vertente. Hoje, os blogs, o Youtube, as páginas pessoais, as redes, etc., enfim, as chamadas “modernas tecnologias de comunicação e informação” (TICs), deram um impulso gigantesco à propagação da avidez pelo sinistro. É importante sublinhar esse ponto, porque ele nos instrui sobre como, no Brasil, a modernidade tecnológica serve não ao futuro, mas ao reforço da barbárie do passado. No entanto, essas mídias secundárias não fabricam a insensibilidade, servindo antes à ressonância das grandes mídias. Quando se convertem em mídias alternativas, casos raros, até fazem a crítica da percepção unívoca da grande mídia.
A situação atual é que o gosto, a percepção, o horizonte de lumpen, se podemos falar assim, não é mais exclusiva do lumpen, mas se alastrou por todas as camadas sociais. Uma consequência disso foi a extinção do intelectual. Ou o surgimento do lumpen-intelectual. Até há alguns anos, nos casos chocantes, ao menos nesses, sempre os jornais retiravam do arquivo morto das redações os seus intelectuais. Ou especialistas. Após um determinando momento, que penso poder ser marcado pelas declarações de Renato Janine Ribeiro pedindo suplícios medievais para os assassinos do menino João Hélio, a mídia percebeu que não havia mais diferença entre o intelectual e a periferia. A percepção intelectual acaba de se igualar a do lumpen, com a diferença de que essa era só passivamente degradada, enquanto a outra, instruída na filosofia francesa, já nasceu ativamente promotora do atroz. Por um momento fugaz, porque até seus seguidores tiveram vergonha dela, brilhou na sua perversidade. Não foi voz solitária, já que alguns amigos solidários saíram em defesa de Janine Ribeiro.
A mídia viu que, sendo esses os intelectuais disponíveis, muito melhor, pela capacidade de comunicação e efeito imediato, era deixar esse campo exclusivamente aos Datenas, retirando dele aqueles amadores mais truculentos.
Na situação atual, parece muito claro que a antiga classe média mergulhou na esbornia da perversidade, e está dentro dela feliz como pinto no lixo. Aproveitando ao máximo o seu PlayStation 3, emocionando-se com tocantes mensagens no Facebook, rindo dos humoristas limpinhos e branquinhos que abusam da piada suja, curtindo os rios de sangue e carne macerada dos espetáculos, a nova plebe amadurece como o fruto acabado da nova república. Os Gentilis que oferecem banana a negros e são, por juízes à altura, inocentados da prática de racismo.
Além do fato real e incontornável da violência experenciada todo santo dia, a percepção dessa classe média foi esculpida pelas pegadinhas de mau gosto do Faustão, depois pela miríade de reality shows, pelo humorismo desclassificado do Pânico, o jornalismo dos Datenas, as violências da luta livre, numa escalada de insensibilização crescente frente ao impacto do absurdo. A piada escrota que defenestrou Rafinha Bastos da telinha do CQC é uma bela mostra do limite de imbecilização ao qual vamos sendo empurrados. A piada, que teve repercussões bem negativas para o seu promotor, se fosse contada hoje, seria aplaudida de pé. Como diria Nietzsche, foi uma piada extemporânea, antecipadora de um kkkkkkkkkk epiléptico de dentaduras futuras. Hoje ela já teria o seu público.
O Brasil, que nunca foi flor que se cheire, muito pelo contrário, mas é agora cada vez mais o país da Mulher Melão, da nova geração de humoristas, tão sem graça quanto a anterior, do CQC, do Pânico na TV, do Datena, das apresentadoras loiras, e, crème de la crème, da boca eternamente anestesiada da Ana Maria Braga, com a fala mole invertebrada saindo de uma máscara facial de musa do cemitério, lembrando as madames de algodão no nariz de Nelson Rodrigues. O torpe estereótipo de certo ideal de madame a que boa parte do seu público aspira. Ou, melhor dizendo, que a sua empresa impõe para que um público encurralado na tela, sem muitas opções de fuga, aspire. No fundo, essa quintessência do lixo cultural, servida ad nauseam na mesa brasileira, é a cara dos donos do poder, do Itaú, da Globo, da Odebrecht e da Super Via, do agronegócio, antigos ruralistas que andam muito silenciosos depois que o governo destinou a eles R$ 156 bilhões. O riso corre fácil quando a grana corre solta. E o sangue também.
* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil, professor universitário e escritor.