Uma das principais figuras nacionais no debate sobre políticas de ações afirmativas para afrodescendentes, Frei David Raimundo dos Santos teve atuação destacada na implantação do sistema de cotas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ainda em 1999.
Para o religioso, que há duas décadas se dedica a trabalhos na área de educação para pessoas carentes e afrodescendentes, as cotas estão desmascarando o vestibular e provando que a seleção feita pelas universidades tem conteúdo descartável.
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“O atual vestibular brasileiro é inconstitucional, pois fere o princípio da igualdade. Alunos com oportunidades diferentes em todo o seu ensino médio são submetidos a uma prova igual”, critica.
Estabelecendo um paralelo com os processos de indenização aos judeus após o holocausto na Alemanha, o líder do movimento negro defende, além de políticas públicas, também a reparação financeira para os brasileiros descendentes de escravos.
“Nós afro-brasileiros gostaríamos que os deputados e os senadores conseguissem entender que há uma dívida, que precisa ser paga, agora, com políticas públicas. Se não houver políticas públicas, seremos obrigados a investir em indenização financeira”, adverte.
Veja a íntegra da entrevista concedida pelo assessor nacional da rede de cursinhos pré-vestibulares comunitários Educafro ao Congresso em Foco:
Congresso em Foco – O percentual de 50% das vagas nas universidades reservadas para alunos da rede pública de ensino, no PL 73/1993, é justo?
Frei David Raimundo dos Santos – Esse percentual é pouco. Se considerar dados do Ministério da Educação (MEC), que mostram que a cada 100 alunos que concluem ensino médio 87 são da rede pública, então podemos dizer que esse percentual está baixo. Mas, por enquanto, o projeto é justo.
Em sua opinião, que benefícios as cotas trazem para a sociedade?
O principal benefício é ter todos os brasileiros preocupando-se com as vítimas da educação brasileira. Todo mundo sabe que quem tem dinheiro no bolso não submete seus filhos à rede pública de ensino. Quem fica na rede pública é punido por ficar na rede pública. Estudar na rede publica no Brasil hoje é punição. E isso não é honesto. Esse sistema injusto define que quem está na rede pública não pode entrar na universidade em cursos de Medicina. A cota vem reparar um erro.
Em vez de criar cotas, o governo não deveria melhorar o ensino público?
Eu não conheço um defensor das cotas que não tenha trabalhado também para melhorar ensino médio. Uma coisa não exclui a outra. Enquanto não melhora o ensino médio, a melhor solução é a cota.
A cota é solução para resolver a histórica dívida social e racial que o Brasil tem com os negros e indígenas?
Está claríssimo que a cota é um instrumento para provocar a sociedade a pensar de maneira mais acelerada sobre a exclusão. A segunda grande missão é despertar a sociedade para a necessidade do povo negro pelos 350 anos de escravidão. Todo mundo entende que as cotas são apenas uma pequena mostra da dívida que se tem com a comunidade negra. Costumo citar o exemplo da comunidade judaica na Alemanha, que viveu sete anos de escravidão. Os descendentes dos judeus entraram na Justiça pedindo indenização, por se sentirem prejudicados, já que seus antepassados não puderam dar a eles a dignidade que mereciam. A Justiça alemã reconheceu. Hoje todos os que provam lá que são descendentes de judeus recebem indenização. Nós afro-brasileiros gostaríamos que os deputados e os senadores conseguissem entender que há uma dívida, que precisa ser paga, agora, com políticas públicas. Se não houver políticas públicas, seremos obrigados a investir em indenização financeira.
A cota mudaria o quadro de exclusão social e racial?
Sim. Vai diminuir bastante e positivamente.
A reserva de vagas deve ser adotada por quanto tempo?
Para nós, apenas enquanto existir a deficiência da presença de afro-brasileiros na universidade. Mas se definir que a partir de hoje, em todas as universidades de Medicina do Brasil, só vão entrar afrodescendentes, levar-se-ia 25 anos para ter os mesmo números de descendentes de europeus e asiáticos. A minha sugestão é que sejam feitas avaliações a cada cinco anos, para se verificar como está a situação dos negros.
Qual a avaliação do senhor sobre o critério da autodenominação para definir a raça?
Os bancos costumam identificar a porcentagem de negros que trabalham lá. Ou seja, eles sabem quem é negro. No caso, consideramos afrodescendentes por meio das características fenotípicas e não genotípicas.
O ingresso de estudantes cotistas pode diminuir o nível acadêmico das universidades?
Essa afirmação é muito comum entre os que argumentam contra as cotas. Mas o resultado de pesquisas com cotistas tem mostrado justamente o contrário. Os alunos cotistas – mesmo tirando notas 40% abaixo dos não-cotistas no vestibular – têm, em média, notas iguais aos que não ingressaram na universidade por meio de reserva de vagas.
Deve-se adotar o critério de limite de renda junto às cotas para alunos de escolas públicas?
Para a questão da rede pública, sim. Porque 37% da rede pública são da classe média. Imagina uma cidade de interior onde não há escolas particulares. O filho do prefeito estuda na escola pública. As escolas militares também são consideradas escolas públicas. Isso seria injusto com alunos mais pobres de escolas públicas.
Que outros argumentos são importantes na defesa das cotas?
O mais importante é que as cotas estão desmascarando o vestibular. Provando que o vestibular tem o conteúdo descartável. Com exceção das disciplinas português e matemática, o conteúdo de ensino médio tem pouquíssima influência no conteúdo universitário. Esse é o motivo pelo qual cotistas estão conseguindo grandes resultados, em média, nas universidades. Outro argumento forte é dizer que o atual vestibular brasileiro é inconstitucional, pois fere o princípio da igualdade. Alunos com oportunidades diferentes em todo o seu ensino médio são submetidos a uma prova igual. O Brasil precisa urgentemente criar políticas públicas para garantir a igualdade.