Uma série de artifícios jurídicos tirou dinheiro indevidamente do bolso do proprietário de veículo no Rio Grande do Norte com o único objetivo de abastecer os cofres de uma quadrilha, formada por empresários, advogados, políticos e diretores de órgãos públicos. Com apenas uma das fraudes, o grupo criminoso pretendia faturar R$ 1 bilhão ao longo de 20 anos de exploração de uma concessão pública, obtida mediante fraude. Essas são algumas das conclusões apontadas pelo Ministério Público Estadual do Rio Grande do Norte no pedido de prisão de 14 pessoas – entre elas, o suplente do senador e presidente do DEM, José Agripino (RN), João Faustino (PSDB) – pela Operação Sinal Fechado, deflagrada na manhã de ontem (24) com o apoio da Polícia Militar.
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Além do ex-deputado federal e ex-senador João Faustino, atual suplente do senador José Agripino (DEM-RN), foram presos um ex-diretor do Detran-RN e empresários que atuam na área de expedição de documentos para veículos. O Ministério Público também pede o bloqueio dos bens dos acusados em valor correspondente a R$ 35 milhões. As denúncias respingam, ainda, em dois ex-governadores: Iberê Ferreira (PSB) e Wilma de Faria (PSB), considerados suspeitos de acobertar os esquemas operados entre 2008 e 2010.
Leia a íntegra da petição do Ministério Público que levou à prisão de João Faustino
Cobranças ilegais
Nesse período, o proprietário de veículos no Rio Grande do Norte se viu obrigado a fazer pagamentos que, segundo as denúncias, abasteceram os cofres dos personagens envolvidos: o registro em cartório do financiamento bancário de veículos novos ou usados e o serviço de inspeção veicular ambiental. O grupo beneficiário se valia do pagamento de propina a servidores públicos, promessas de vantagens indevidas, fraudes em licitações e tráfico de influência. No caso das taxas por registro, o proprietário pagava de R$ 130 a R$ 800, conforme o veículo.
Os seis promotores que assinam a petição sustentam que, no caso da inspeção veicular ambiental, a quadrilha fraudou desde o processo de elaboração da lei, em meados de 2009, até o processo licitatório, em 2010. De acordo com a denúncia, o grupo teve influência até para determinar o modelo de prestação do serviço — por meio de concessão —, o que permitiria a obtenção de elevados lucros com o contrato, em detrimento dos cofres públicos e dos contribuintes. O esquema girava em torno do Consórcio Inspar, formado por um grupo de empresas sob a coordenação de George Anderson Olímpio da Silveira, apontado pelos investigadores como chefe da quadrilha.
PublicidadeOs idealizadores do consórcio chegaram a trocar mensagens eletrônicas, interceptadas pela Justiça, definindo o teor da própria lei que tornou obrigatória a inspeção de todos os veículos no estado. Ainda segundo as apurações, elaboraram o edital de licitação direcionado e até ditaram as respostas às impugnações dos concorrentes. O negócio garantiria um faturamento bruto anual de R$ 40 milhões para o grupo. Ou seja, cerca de R$ 1 bilhão ao longo das duas décadas de exploração da concessão, considerando-se aí eventuais correções. A Procuradoria Geral da República recorreu contra a lei estadual no Supremo Tribunal Federal (STF), alegando inconstitucionalidade: o assunto não poderia ser tratado por lei estadual e o Estado não poderia dar “poder de polícia” a uma empresa privada, já que esta cobraria “tarifa” dos proprietários de veículos. A ação ainda não foi analisada pelo Supremo, mas o atual governo do estado derrubou o contrato este ano apontando uma série de problemas contratuais.
Os dois casos apontam para o entrelaçamento de alguns personagens, segundo o Ministério Público Estadual, como o ex-diretor do Detran-RN Carlos Theodorico de Carvalho Bezerra, autor da portaria que resultou na obrigatoriedade de registro em cartório dos contratos de financiamento de veículos, e o ex-procurador do órgão Marcus Vinicius Furtado da Cunha. O empresário George Anderson, do Consórcio Inspar, é acusado de também estar por trás da empresa terceirizada contratada pelo Detran para registrar os contratos dos veículos financiados. A prestação desse tipo de serviço por uma empresa privada foi coibida após ação do próprio Ministério Público do Rio Grande do Norte no ano passado.
Contatos com prefeitura de Kassab
As interceptações telefônicas e as trocas de mensagens eletrônicas citadas na denúncia mostram que o grupo demonstrava desenvoltura com agentes públicas de outros estados, como Minas Gerais e São Paulo, e que articulava a entrada em Alagoas, na Paraíba e no Ceará. Um dos lobistas envolvidos chega a citar contatos com o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD), embora sem detalhar o teor da conversa. Curiosamente, suspeitas de irregularidade na área de inspeção veicular levaram o Ministério Público Estadual de São Paulo a pedir, ontem (24), o afastamento do prefeito paulistano.
O ex-governador Iberê Ferreira, que concluiu o mandato de Wilma de Faria quando ela renunciou ao cargo para disputar sem sucesso o Senado, é tratado como “possível ‘eminência parda’” por trás de George Olímpio. Os investigadores alegam que têm provas de que ele recebeu pelo menos R$ 1 milhão do esquema e que teria sido agraciado com cotas de participação nos lucros futuros do consórcio. O ex-governador reagiu ontem com veemência à denúncia. Negou ter qualquer responsabilidade sobre o caso e acusou o Ministério Público de tentar “macular” sua imagem como homem público. “Ao final, manterei minha reputação ilibada, jamais desapontando aqueles que sempre depositaram confiança em mim”, afirmou (leia a íntegra da nota). Ele teve sua casa vasculhada por policiais e seus bens bloqueados.
Os promotores sustentam que Iberê contribuiu decisivamente para a contratação irregular do grupo e para a contratação fraudulenta da empresa que ficava com o dinheiro do registro dos veículos. Uma empresa constituída no Paraná, mas que estaria a serviço do mesmo grupo que criou o consórcio, foi contratada para prestar o serviço para o Detran-RN. Na nota à imprensa, o ex-governador diz não ter cometido nenhum tipo de ingerência no Detran e que o órgão tinha autonomia para cuidar dos processos licitatórios.
Suplente é “lobista”
O tucano João Faustino, que chegou a exercer o mandato de senador ano passado como suplente de Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), é apontado como um “lobista” pelos investigadores. O atual suplente de José Agripino é acusado de receber, em troca de favores, pagamentos mensais de R$ 10 mil dos empresários George Olímpio e Marcus Procópio. O tucano, ainda de acordo com a acusação, recebeu promessa de participação em lucros futuros do Consórcio Inspar. A petição também levanta suspeitas sobre um dos filhos do suplente de senador.
Mensagens interceptadas pelos investigadores mostram que Faustino, mesmo na suplência, tentou abrir portas para o grupo no Senado em 2008. Numa das gestões, ele tentava ajudar o grupo a barrar uma alteração numa medida provisória que impedia as instituições públicas a firmarem convênios com cartórios para o registro de veículos. As tentativas ocorreram quando Garibaldi Alves Filho, de quem o tucano era suplente, presidia o Senado, em 2008. Mas, de acordo com as investigações, a gestão do suplente não chegou a impedir a aprovação da mudança das regras. As mensagens, no entanto, deixam claro que era George quem estava por trás do instituto contratado inicialmente para o registro de veículos. Ele é apresentado como presidente da entidade.
Os investigadores afirmam que é preciso apurar o eventual envolvimento da ex-governadora, o que ainda não está claro, segundo eles. Wilma enviou à Assembleia Legislativa o projeto que resultou na lei que tornou obrigatória a inspeção veicular a partir do segundo emplacamento no Rio Grande do Norte. A proposta foi elaborada com a “participação ativa de membros da organização criminosa”, argumentam os promotores. Eles admitem que não há ainda elementos sólidos que sustentem que ela tinha conhecimento do caso, embora sejam mais contundentes em relação ao filho dela, o advogado Lauro Faria. Segundo a petição do Ministério Público Estadual, ele recebia promessas de participação em lucros futuros do consórcio em troca de ajuda no governo, além de pagamentos mensais de R$ 10 mil.
O contrato do governo potiguar com o Consórcio Inspar foi rompido no início do ano pela governadora Rosalba Ciarlini (DEM), após o surgimento de suspeitas de irregularidades na elaboração do contrato e de superfaturamento nos serviços executados. Rosalba é casada com um primo do senador José Agripino, que preside nacionalmente o seu partido, e que tem João Faustino como suplente. “O passado de João Faustino é suficiente para garantir credibilidade ao que ele venha a dizer sobre esse assunto”, disse Agripino ontem, por meio de sua assessoria.
Após o rompimento do contrato, João Faustino telefonou para o empresário George Anderson, acusado pelo Ministério Público de chefiar a quadrilha, para prestar solidariedade. Eis o relator do diálogo, segundo os promotores:
“João Faustino liga para George e diz: ‘Ligando para lhe dar um abraço. Dizer que eu estarei sempre do seu lado, viu?’. George diz: ‘Tá, muito obrigado, eu sei disso’. João Faustino continua: ‘Sempre… sempre do seu lado. Você tá sendo injustiçado, tá sendo massacrado, mas vai ganhar, vai ser o grande vitorioso desse processo todo. E conte comigo, viu?… Vá repousar… o repouso do guerreiro… a gente se encontra amanhã, George.’ Desligam após se despedir.”
Secretário de Fernando Henrique
João Faustino é um velho conhecido dos tucanos. Foi secretário de Assuntos Federativos da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e subchefe da Casa Civil do então governador de São Paulo, José Serra (PSDB), por dois anos e meio. Exerceu três mandatos de deputado federal. Concorreu sem sucesso ao governo do Rio Grande do Norte em 1986. Ontem no início da noite (24), a Justiça negou o pedido de prisão domiciliar feito pelo suplente de senador, que alegou problemas de saúde e idade avançada. Ele tem 69 anos.
Até o início da noite de ontem (24), apenas dois dos 14 mandados de prisão ainda não haviam sido cumpridos: um em Natal e outro em São Paulo. As prisões e buscas foram determinadas pela juíza da 6ª Vara Criminal de Natal Emanuella Cristina Pereira Fernandes, que também determinou o sequestro de bens de diversos investigados.
A Operação Sinal Fechado tem o apoio dos Ministérios Públicos dos Estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, e a colaboração da Polícia Militar do RN, com diligências simultâneas em Natal, Parnamirim (RN), São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Ao todo, foram mobilizados 40 promotores de Justiça e mais de 250 policiais, que cumpriram as ordens judiciais. A investigação é conduzida pela Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público da Comarca de Natal, com o auxílio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO/RN).
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