ONGs ainda reclamaram do texto, diz Inácio Arruda (Moreira Mariz/Ag.Senado)
Lúcio Lambranho e Eduardo Militão
A CPI das ONGs caminha para um final melancólico. Um dos últimos capítulos dessa tragédia anunciada é a apresentação antecipada de uma proposta feita pelo relator antes mesmo da conclusão dos trabalhos da comissão. Ainda disponível para consulta pública, segundo a assessoria do relator, o anteprojeto de lei (veja a íntegra) abre lacunas em vez de aumentar a fiscalização dos repasses públicos às organizações não-governamentais.
O anteprojeto cria o convênio gerencial, mecanismo pelo qual a entidade poderá “aplicar os recursos livremente” de modo a obter a melhor qualidade e eficiência na realização das atividades. Na justificativa do projeto, o senador do Ceará é ainda mais enfático na sua proposição de liberar o gasto do dinheiro público pelas ONGs.
“Pouco importa como o dinheiro foi gasto pela entidade de direito privado: relevante é saber se as metas ou atividades conveniadas foram devidamente atingidas. Desse modo, o esforço da máquina de controle e fiscalização estatal estará centrado nos fins e não nos meios. Essa é a lógica do convênio gerencial”, sustenta o senador.
A liberdade nos gastos é justificada por Arruda sob o argumento de que existe “um custo elevado na fiscalização dos diversos convênios celebrados pela administração pública”. O senador do PCdoB também classifica como “pífia” a eficácia do atual modelo de fiscalização.
O relator diz entender que a prestação de contas nos convênios de baixo valor “deve estar centrada, unicamente, na realização dos objetivos propostos: cumprimento das metas ou realização das atividades pré-definidas.”
Apesar de o governo ter estabelecido, após a sucessão de escândalos com entidades do chamado Terceiro Setor, que os repasses não podem ser maiores que R$ 100 mil, Arruda prefere não impor nenhum limite para o que ele chama de convênios de baixo valor no caso dos convênios gerenciais.
É o que define o artigo 29 do anteprojeto. “Os estados, o Distrito Federal e os municípios estabelecerão o valor máximo de repasse permitido para convênios gerenciais, levando em consideração o porte econômico de cada ente federativo e a respectiva capacidade de controle e fiscalização”.
Aberto a sugestões desde abril, o texto recebeu poucas contribuições até agora, além das colaborações iniciais do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria Geral da União (CGU), que deram origem ao anteprojeto. Um novo texto, segundo a assessoria do senador, deve ser elaborado até o final da CPI, previsto para 30 de outubro.
Intermediária
Arruda informou ao Congresso em Foco que a proposta tem um rigor “intermediário” e que as exigências devem crescer até a apresentação do texto final da comissão. Mesmo assim, ele conta que a maioria das sugestões que recebeu na consulta pública foi de reclamações de ONGs criticando a burocracia para o funcionamento das entidades. “Quem anda corretamente não terá nenhum problema”, responde o relator.
Para Fátima Cleide (PT-RO), também integrante da CPI, a proposta precisa de alguns ajustes. “Há uma tendência de criminalizar as ONGs, o que é prejudicial nesse momento para a democracia”, disse ela.
Segundo Arruda, a existência dos convênios gerenciais não diminui o rigor na fiscalização, que servirá apenas para diferenciar o olhar dos fiscais sobre as grandes entidades recebedoras de dinheiro público das pequenas ONGs.
Mas por que o relator prevê então que estados e municípios definam os valores que diferenciem pequenas e grandes ONGs? Segundo Arruda, isso não precisa ficar em repasses de R$ 100 mil porque estados e municípios têm “um controle maior” sobre a execução dos convênios.
Sem espetáculo
Arruda também admite que o foco desta comissão parlamentar de inquérito não é investigar. É definir “um marco legal” para o setor. “Não é uma CPI de espetacularização. O principal dela é o marco regulatório. A questão central ficou no marco regulatório”, afirma o relator da CPI, utilizando o verbo no tempo passado.
O senador Alvaro Dias (PSDB-PR) é um dos que antevêem um final com melancolia para a CPI das ONGs. “A primeira fase é a da investigação. Depois é que vem a proposição. Nós estamos fazendo uma inversão de prioridades”, protesta.
O tucano lamenta a falta de aprovação dos requerimentos que pedem a quebra de sigilo e até dos pedidos de acesso a dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que antecedem uma investigação mais aprofundada.
A senadora governista Fátima Cleide também admite que a CPI “patina”. “A gente vai buscar o marco legal, que regulamente a existência das ONGs. Enquanto se buscar perseguir as organizações não-governamentais, vai patinar. Há sempre o interesse de ‘A’ ou ‘B’ em uma questão eleitoral”, reclama.
Na opinião de Alvaro Dias, é bem provável que o relatório final sequer narre fatos que não dependem de quebras de sigilo. Um exemplo são os repasses de dinheiro público a ONGs à revelia da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), como mostrou o Congresso em Foco.”Um relatório paralelo pode ser enviado ao Ministério Público, mas tem menos força. É só sugestão. Eu fiz isso nas CPIs dos Bingos e dos Correios, mas não deu certo”, avalia o senador.
Farra generalizada
Arruda admite que a LDO sofre “um descumprimento generalizado”. E garante que esse problema vai ser tratado no seu relatório final. Mas o senador respira fundo antes de responder se os ministros que assinaram os convênios serão responsabilizados pelos repasses. “Tudo isso vai ser examinado. É uma questão a ser tratada pela CPI”, despista Arruda.
O relator refuta a crítica de que a comissão não está investigando. Para ele, a definição de um novo marco legal para as ONGs, por si só, será “um grande êxito”. Além disso, a apuração está sendo feita, garante Arruda.
A comissão fez mais de 30 consultas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), procedimento que antecede as quebras de sigilo. Mas nenhuma quebra foi autorizada de fato. “Você tem que ter indícios muito fortes de crime”, justifica Arruda.
Fátima Cleide não acredita que Arruda se antecipou ao diagnóstico da CPI para se debruçar sobre uma proposta. “Qual é o diagnóstico que você quer? É o das ONGs que cometeram delitos ou o marco legal?”
A parlamentar do PT discorda da visão de que não se investiga porque não há quebras de sigilo aprovadas. “Para alguns requerimentos que não aprovamos quebra de sigilo, pedimos que se buscassem informações no Siafi [sistema que registra os gastos do governo]”, justificou.
Aluguel e contas telefônicas
A liberação de recursos contrariando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) gerou uma condenação recente para o ex-ministro do Turismo e de Relações Institucionais Walfrido dos Mares Guia. O Tribunal de Contas da União (TCU) considerou irregulares 31 contratos de repasse, que somam R$ 11 milhões, firmados entre o Ministério do Turismo e entidades sem fins lucrativos em 2005 e 2006, durante a gestão de Mares Guia (leia mais).
A corte determinou que as entidades devolvam R$ 1,3 milhão e que o restante dos contratos seja cancelado pelo ministério. O TCU ainda quer explicações de Walfrido, o que tem potencial para lhe render uma multa de até R$ 32 mil.
Em outra reportagem (leia aqui), o site revelou que o governo federal repassou, de forma irregular, mais de R$ 17 milhões para organizações não-governamentais (ONGs), entidades privadas sem fins lucrativos, sindicatos, centrais sindicais e ao Senai, braço de educação profissional da Confederação Nacional da Indústria (CNI), nos últimos quatro anos.
Os repasses saíram do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Uma das entidades que receberam verba de investimento ao arrepio da LDO também é citada em acórdão e auditorias do TCU sobre irregularidades cometidas por ONGs.
Segundo a auditoria do TCU, a ONG Avante Qualidade, Educação e Vida utilizou os recursos de três convênios celebrados em 2003 e 2004, no total de R$ 4.229.704,08, para terceirizar, sem licitação, consultorias que dizia executar pelo acertado nos convênios com o governo federal (leia mais).
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Ainda de acordo com o TCU, o dinheiro foi usado para o pagamento de despesas da própria ONG, como aluguel, vigilância da sede, contas telefônicas, manutenção mensal de computadores e até serviço de recepção.
Pelo projeto do relator da CPI das ONGs, casos como o da Avante e das entidades beneficiadas por Mares Guia irregularmente não deverão mais receber a fiscalização do TCU. Com o dinheiro dos convênios, as entidades poderão pagar suas despesas de funcionamento.
A proibição, estabelecida pela LDO desde 2006 e que o senador cearense pretende revogar, está baseada no princípio de que a parceria entre a União, as ONGs e as chamadas Oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) deve ficar restrita a ações de interesse mútuo e não pode se destinar a aumentar o patrimônio privado dessas entidades por meio da liberação de verbas de investimento como no caso da Avante.
O Congresso em Foco também tentou ouvir o presidente da comissão, senador Heráclito Fortes (DEM-PI), sobre o projeto do relator, mas ele não quis comentar o assunto.
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