Isabel Cochlar*
Veiculada nos principais meios de comunicação do país, a notícia de que a família do executivo Marcos Matsunaga, 42, morto e esquartejado pela mulher, Elize Matsunaga, 30, pedirá à Justiça um exame de DNA para comprovar se ele é o pai da filha de um ano do casal, merece uma apreciação jurídica.
Ofendida pela ex-esposa e assassina confessa, a família da vítima busca atacar, também, a filha daquela. Ocorre que a menina foi registrada pelo pai. A lei é clara quando prevê que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Se a vítima, em convivência com a esposa, não contestou a paternidade da criança havida com ela e a registrou, não existe, agora, base para que a família enlutada o faça. Não resiste arguição de ingenuidade suficiente para entendermos a vítima desavisada, pois esta era conhecedora do passado da mãe de sua filha.
A determinação legal é clara quando impede que seja reclamado estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, sob pena de se ferirem os direitos fundamentais à dignidade da menor.
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Ainda que comovida pela perda, a atitude da família é condenável, pois remota às fases antigas da humanidade, nas quais a condenação de uma pessoa alcançava, além desta, as pessoas de seus filhos e as suas propriedades.
Mais do que os pais, que não foram felizes em orientar o filho em suas escolhas, a criança é a grande, a maior vítima desse drama familiar. Deve ser protegida como determina a lei, pois é, agora, duplamente órfã. Órfã do pai morto e órfã da mãe assassina, condenada duplamente: pelo crime que a marcará e pela rejeição da família paterna.
A condenação pública da mãe da menina, anterior ao julgamento, pelo passado que lhe subjugara e subjuga novamente, já foi feita. Dessa forma, a especulação sobre a paternidade, por parte da família, nos permite pensar em outras intenções que privilegiam a questão patrimonial em claro prejuízo à menor.
Revindicar a criança e educá-la nos padrões sociais aceitáveis parece sempre menos mesquinho e infinitamente mais honroso do que buscar negar-lhe o direito à paternidade e ao acesso ao patrimônio familiar.
O Tribunal de Justiça gaúcho vem mantendo o entendimento lavrado pela lei, segundo o qual, mesmo diante de exame de DNA que exclui o vínculo biológico, permanece incólume o registro de nascimento no qual o falecido pai reconheceu a filha, sem qualquer prova de que tenha incorrido em erro.
Mesmo havendo dúvidas acerca da paternidade, como aventado pela família, se o falecido fez questão de registrar a menina, demonstrou que a queria como filha, estando configurado o reconhecimento voluntário de paternidade que, por sua natureza jurídica, é irrevogável (arts. 1.609 e 1.610 do CCB).
Na hipótese de paternidade sócio afetiva, quando socialmente o pai apresentava a menina como filha, tendo sido registrada, ainda que geneticamente não o seja, constituiria igualmente empecilho intransponível à desconstituição do registro, ainda que não seja esse o caso.
A condenação da menor, junto com sua mãe, pelos membros da família paterna, não deve ser aceita pela sociedade, pois é maculada por interesses ilegais e absurdamente desumanos.
*Isabel Cochlar é advogada. www.cochlar.com.br/