Carla Rodrigues *
“O limbo de Guantánamo” é em certa medida um artigo datado, e em outra, talvez com o mesmo peso, um texto potente para pensar o estatuto do morador de favela do Rio de Janeiro hoje, diante da intervenção militar que agora se formaliza mas que na prática já havia distribuído tanques do Exército por uma grande quantidade de favelas da cidade. Quando os tanques entraram na Rocinha em setembro do ano passado, escrevi que a favela havia se tornado “o paradigma de governo perfeito para exibição de poderio militar federal”. O Rio de Janeiro é o cenário perfeito para a construção de um discurso de ordem, aqui entendido como apelo de intervenção e proteção por um Estado forte exatamente onde hoje o governo é mais fraco, para a configuração de um estado de exceção que ganha apoio nas camadas médias como forma de proteção “contra tudo isso que está aí”.
O texto, escrito pela filósofa Judith Butler em 2002 no calor das críticas às torturas e condições desumanas dos prisioneiros de Guantánamo – consequência da guerra dos EUA contra o Iraque –, tem como argumento principal questionar o estatuto dos “detentos em campo de batalha”, designação dada pelos EUA a todos aqueles, mesmo presos, não poderiam alcançar a categoria de “prisioneiros de guerra”, pois nesse caso estariam protegidos pela Convenção de Genebra. Butler discute, a partir daí, o que é esse “lugar que ainda não está sob a lei ou que, com efeito, está à margem da lei de modo relativamente permanente.” Citado logo nas primeiras páginas de Estado de exceção (Boitempo Editorial, 2003), de Giorgio Agamben, o texto de Butler desde então se notabilizou por trazer à tona o quanto antidemocráticas eram as práticas do governo norte-americano em nome da defesa da democracia como valor universal. Minha intenção é, me valendo da estrutura argumentativa usada por Butler, propor uma analogia entre o morador das favelas cariocas e o detento em campo de batalha, ambos postos pela lei à margem da lei.
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É histórica associação entre a favela carioca e o território de exceção que cresce tanto à beira da estrada quanto à margem da lei, tanto nas franjas dos morros quanto a despeito da vontade da cidade. Nada mais falso. As favelas cariocas, desde o início, no final do século XIX, surgiram como soluções urbanísticas para aquilo que não parecia ter solução, nasceram como reivindicação e instituição de moradia de quem não tinha onde morar. Mesmo – ou principalmente – as que foram criadas por políticas públicas de urbanismo, como a Cidade de Deus, cuja fundação se dá como forma de solucionar o problema da favela, e cujo estatuto de favela vai sendo criado conforme os moradores vão se confundindo, no tempo e no espaço, com os detentos em campo de batalha, sem nenhum tipo de proteção legal que os reconheça. Vivem como se não fossem parte do espaço urbano.
De novo, nada mais falso. Os moradores das favelas cariocas circulam todos os dias por aquilo que nos acostumamos a chamar de cidade, distinção que só tem servido para confirmar a ideia de que há cariocas do morro e cariocas do asfalto, imagem gasta, sobretudo considerando a imensa quantidade de favelas no asfalto, como a já mencionada Cidade de Deus e o trágico Complexo da Maré, onde morreram 42 pessoas em operações policiais em 2017. Os moradores das favelas cariocas se locomovem, estudam e trabalham na cidade, apesar de carregarem a marca de serem como os detentos em campo de batalha. Não estão presos na favela, como sempre tão bem argumenta a socióloga Lícia Valladares, porque as favelas não são como guetos dos quais não se pode sair. Por isso mesmo, me parece tão pertinente pensar que as favelas cariocas são cada vez mais parecidas com o limbo, no qual o impossível é viver.
Em A invenção da favela, Valladares recupera a história dos discursos sobre as favelas cariocas, desde o momento da sua denominação – referência a uma árvore de flores brancas que se espalhava nos primeiros morros ocupados – até o início do século XXI, passando pela identificação, pelo censo, como “aglomerado subnormal”, pelas políticas de remoção que marcaram as décadas de 1960 e 1970 e pelos projetos urbanos de contenção que caracterizaram as décadas de 1980 e 1990, como o Favela-Bairro, cuja pretensão era eliminar a distinção entre cidade e favela, dotando-a das características urbanas do que entendemos por bairros. Urbanismo como gestão de território e segurança como gestão de população são os dois modos da política lidar com o morador de favela, como se a eles houvesse sempre a necessidade de uma ação de exceção, aqui indicando também a ideia de excesso, daquilo que existe sem estar autorizado a existir.
PublicidadeSó por esse caminho consigo refletir hoje sobre o que me parecem fenômenos correlatos: o extermínio da população de favela, a apatia ou a placidez com que se aceita essa polícia que mata, justificada no fundamento implícito e até aqui inconteste de que uma parcela da população sobra, e uma certa alegria com a intervenção militar, como se dessa cartola pudesse sair um coelho mágico a conter o excesso e deixar a cidade livre para aqueles que se acham seus donos. Se eu acrescentar a isso a sobredeterminação entre morador de favela e população negra – esta que excede o ideal de brasilidade branca desde os tempos da empresa colonial – , e se eu ainda associar o tráfico de drogas, razão de ser das ações policiais, ao tráfico de escravos, atividade cujo objetivo era o de perpetuar a escravidão, senão mais como política oficial, mas como afirmação da submissão do povo negro, talvez possa também pensar que nunca haverá uma política que ponha fim ao tráfico de drogas. Descriminalizar, legalizar ou qualquer outro verbo que aponte para outra solução que não seja armada acaba sempre barrado em nome da manutenção de um estado de coisas em que o racismo de Estado permanece em vigor, mata inocentes ou pessoas cujo único crime cometido é viver como excedente no tempo e no espaço, detentos no campo de batalha do cotidiano.
* Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ. Fez especialização, mestrado e doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado no IEL/Unicamp. É coordenadora do laboratório de pesquisa Escritas – filosofia, gênero e psicanálise. Publicado originalmente no Blog do IMS e no site Outras Palavras.