Edson Sardinha e Daniella Borges
No dia em que os governos federal e estadual procuraram se eximir de culpa pelos atentados em São Paulo, o Congresso Nacional fez ontem uma espécie de mea culpa pela escalada da violência no país. Nem mesmo o anúncio, pelo Senado, de um pacote de projetos para combater o crime organizado e endurecer a legislação penal arrefeceu as críticas dos parlamentares à falta de atenção do parlamento com a segurança pública.
Na avaliação de deputados ligados à área ouvidos pelo Congresso em Foco, as medidas emergenciais anunciadas pelos senadores pouco vão mudar a realidade e ainda podem contaminar o debate sobre o assunto com a comoção causada pelas mais de 130 mortes registradas em São Paulo nos últimos cinco dias.
"Há uma falência das instituições. Não adianta o Congresso, o Judiciário e o Ministério Público dizerem que não é com eles. Todas as instituições têm responsabilidade", avalia o deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ). Ex-procurador-geral de Justiça no Rio, Biscaia considera que o Congresso tem falhado mais na fiscalização das ações do Executivo do que na parte legislativa. "A contribuição que o Congresso pode dar agora é a do bom-senso. Compreender a gravidade do quadro e não permitir que o episódio seja usado eleitoralmente".
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Coronel da Polícia Militar e ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Josias Quintal (PSB-RJ) critica os atuais colegas, aos quais atribui total falta de interesse em legislar sobre segurança pública e por eventuais falhas na legislação. "Ninguém tem legitimidade na Câmara e no Senado para cobrar alguma coisa do Executivo, porque não se trabalha esse assunto (segurança pública) aqui", acusa. "O Congresso tem sido omisso. Todos nós somos culpados. Quando tem um fato, anuncia que vai agir. Mas, no dia seguinte, tudo continua como dantes."
Pressão popular
Ao anunciar a votação do pacote contra o crime organizado, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), admite que, sem a pressão da opinião pública, as proposições continuariam mesmo engavetadas. "Essa pressão da sociedade ajuda. Essa mobilização, essa cobrança ajuda a criar condições para aprovar essas medidas", afirma Renan. "É claro que o Congresso Nacional não vai por si só resolver a situação, mas ele precisa fazer o seu dever de casa", completa.
Entre as propostas que podem ser votadas hoje e amanhã pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), está a que aumenta de um ano para até quatro anos o período de isolamento do preso e a que vincula recursos do Orçamento da União para a segurança pública. O esforço dos senadores foi recebido com desconfiança pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que classifica a iniciativa como uma "legislação de pânico". Bastos pede cautela aos parlamentares ao examinarem mudanças na legislação penal. "Isso gera o risco da desarmonização do sistema penal, a perda da lógica interna. Eu tenho muita cautela com isso e tenho certeza que o Congresso terá essa cautela".
Além da legislação
O mesmo raciocínio compartilha o presidente da Comissão de Direitos Humanos, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP). "Quando há comoção pública, ela se abate sobre o Congresso, que tenta dar uma resposta à opinião pública. O problema não é de legislar. É administrativo e governamental", observa o advogado criminalista.
Segundo Greenhalgh, algumas das medidas preventivas para conter a ação das facções criminosas poderiam ser tomadas pelas autoridades locais, independentemente da iniciativa do Congresso. "Tem de haver rigor na proibição da entrada dos celulares nos presídios, como porta com detector de metais. Isso já tiraria 80% dos celulares das cadeias. É preciso punir com rigor o preso visto nos pátios dos presídios com celular e interromper a comunicação entre os que estão dentro e estão fora. Não é aumentando a pena", completa.
Vendedores de ilusão
Autor de uma tese de doutorado sobre a Operação Mãos Limpas, que desmantelou a máfia italiana, o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR) observa que, além de abalar a confiança da população no sistema público de segurança, os ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) deixam o Congresso numa encruzilhada. "Se não se faz nada, dá a impressão de que está insensível. Se reage, é sempre na base da ordem, aumentando o chamado rigor da lei. Isso não se resolve emocionalmente", alerta o tucano. "Há uma expressão italiana que diz: ‘feita a lei, encontrado o engano’. Não podemos, portanto, vender ilusões", diz o deputado, ao criticar o excesso de foco dos parlamentares nas questões legislativas, em detrimento da função fiscalizadora.
Até o próximo escândalo
Especialista em violência urbana, o sociólogo e cientista político Antônio Flávio Testa prevê um desfecho melancólico para a discussão da segurança pública no Congresso. "As discussões começam de maneira positiva, mas amanhã acontece algo mais importante e o assunto sai da pauta novamente", afirma o professor da Universidade de Brasília (UnB).
Como desdobramento dos ataques do PCC, Testa antevê o aumento da repressão policial nos estados e o acirramento da disputa das polícias civil, militar e federal. "A população está em pânico, e certamente haverá uso político desse fenômeno em São Paulo. De um lado, o governo estadual aumentando a repressão policial. Do outro, o governo Lula liberando mais recursos do orçamento para a segurança pública", avalia.