Curitiba, avenida Monsenhor Ivo Zanlorenzi, madrugada de 7 de maio de 2009. Um Passat decola e voa sobre um Honda Fit que engatava na segunda marcha para fazer uma conversão. O motorista do carro atingido, Gilmar Rafael de Souza Yared, de 26 anos, e o passageiro, Carlos Murilo de Almeida, de 20, são esmagados pelo choque entre os dois veículos. Responsável pelo desastre, o deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho deixa o local do acidente direto para uma UTI. Ele dirigia a 163 km/h, apresentava teor alcoólico quatro vezes além do tolerado, acumulava 130 pontos na carteira e 30 multas, 23 delas por excesso de velocidade. Filho de um ex-prefeito de Guaruapuava (PR), ele exercia, também aos 26 anos, o seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa do Paraná.
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Quase uma década depois, Carli Filho e as famílias das vítimas estarão frente a frente pela primeira vez nesta terça-feira (27), quando será julgado em júri popular pelo crime de homicídio doloso (quando há intenção de matar). O julgamento vai se estender, pelo menos, até quarta. A acusação pede pena de até 30 anos de prisão. A defesa tenta transformar a denúncia em homicídio culposo (quando não há intenção) e se valer de uma eventual prescrição do crime.
Nos dois dias, diante de um público aguardado de 200 pessoas no tribunal, o ex-deputado estadual terá de encarar Christiane Souza Yared, mãe de Gilmar. Depois da morte do filho, a empresária criou uma organização não-governamental de apoio a famílias que sofrem com a perda de seus entes em acidentes e de educação para a paz no trânsito. Em 2014, com 200 mil votos, surpreendeu ao ser eleita a deputada de maior votação na bancada do Paraná. A caminho do fim de seu primeiro mandato, a parlamentar paranaense do PR já viu dois de seus projetos virarem leis, ambas voltadas para o trânsito e vê, com esperança, a possibilidade de o responsável pelo desastre que matou seu filho ser, enfim, punido pela Justiça.
Nos últimos nove anos, a defesa do acusado impetrou 35 recursos e conseguiu adiar o julgamento duas vezes – uma por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outra por determinação do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF). “É quase uma afronta à Justiça. Um bom escritório de advocacia vai até onde as leis e suas brechas permitem. Mas, agora, com a marcação do júri, eles não têm para onde sair. Vão ter de prestar contas. A sociedade pede que seja prestada conta de tudo isso. Essa luta não diz respeito somente a mim, mas ao país”, ressalta a deputada.
Um morto a cada dez minutos
Com mandato voltado para a legislação de trânsito, Christiane Yared tem na ponta da língua as estatísticas desse tipo de violência. “O trânsito brasileiro mata uma pessoa a cada dez minutos. De cada dez leitos hospitalares no Brasil, sete são ocupados por vítimas de acidentes. A cada minuto, temos uma pessoa sequelada por acidente. É um problema que estrangula a saúde, a Previdência e o Judiciário”, afirma a deputada ao Congresso em Foco.
Para Christiane, o julgamento não é apenas do ex-deputado Carli Filho. É também seu e de seu filho. E, mais do que isso, um divisor de águas na questão da impunidade no trânsito. “Se ele for inocentado, certamente entrará com um processo indenizatório contra mim. Vão querer que eu pague a plástica dele, o carro destruído dele, a exposição dele à mídia”, diz. “Tenho que provar que meu filho é inocente? Vivemos um pesadelo todos esses anos. Esse pesadelo continuará até o fim de nossas vidas. Não temos como nos livrar disso. Meu filho não tinha uma gota de álcool no sangue, estava engatando a segunda marcha, estava de cinco de segurança, com a carteira em dia. Vamos por tudo isso numa balança?”
Christiane conta que pessoas ligadas à família Carli tentam jogar a opinião pública contra ela, acusando-a de ter se promovido na política à custa da morte do filho. “E ainda tentam me colocar no banco dos réus como se eu fosse julgada por estar deputada federal. Comentam na mídia local que a mãe de uma das vítimas, no caso eu, teria se beneficiado da morte do filho, do cadáver do filho, saindo na política e sendo deputada. Como se eu pedisse para isso acontecer. Então, numa noite, sai um jovem que vai beber, vai matar meu filho para eu me candidatar a deputada federal? Daria tudo para ter meu filho de volta”, rebate. “Hoje sou uma voz no Congresso. Luto por vidas. Algumas pessoas não compreendem.”
Mudanças legislativas
Com mais de 30 projetos apresentados para melhorar a legislação no trânsito, Christiane Yared é autora da lei que tornou o uso do celular ao volante infração gravíssima. “O celular já mata sete vezes mais que a bebida alcoólica no trânsito em todo o mundo”, cita. Também é dela a autoria do marco regulatório do transporte de cargas, que prevê, entre outras coisas, a proibição de caminhões ultrapassados de trafegar pelas rodovias brasileiras.
A deputada apresentou recentemente um projeto para tornar acidentes graves de trânsito em crime inafiançável e outro para instituir o flagrante continuado para autores desse tipo de delito. “Hoje o assassino vai curar a ressaca em casa enquanto a família tem de ir atrás de cemitério e caixão. Queremos que os responsáveis pelos acidentes sejam pegos em flagrante mesmo depois de fugirem do local da tragédia”, justifica.
Para ela, a sociedade brasileira precisa encampar a bandeira da educação e da paz no trânsito e se mobilizar contra os casos de impunidade. “Nossos filhos mortos descansam. Não há o que possamos fazer por eles. A justiça é para que os vivos tenham a oportunidade de ter uma sociedade melhor. Espero que esse caso seja um divisor de águas na questão da impunidade”, defende. “Hoje não existe mais a sensação de impunidade. Existe a certeza da impunidade. É uma leitura muito triste para o país. Um país que não pune é um país que não educa. É a justiça que traz a paz”, diz Christiane Yared.
“Bebi e dirigi”
Em 2016, Carli Filho falou pela primeira vez sobre o desastre. Em vídeo publicado na internet, pediu desculpas às famílias das vítimas, admitiu ter bebido antes de dirigir, disse que se manteve em silêncio durante sete anos por medo e insegurança. Contou que sofreu com as dores deixadas por 64 fraturas no corpo, que teve de reaprender a andar e a falar, e com a depressão. “Não consegui lidar com a repercussão do caso”, disse.
O ex-deputado afirmou que se criou em torno dele a imagem de um “assassino”, uma pessoa “sem sentimentos” e que não sofreu. “Errei sim, bebi e dirigi. Meu Deus, ah, se eu pudesse voltar atrás”, declarou. “Como pedir desculpas para famílias que nunca mais verão seus filhos? Agora estou pronto para encontrar essas famílias e pedir perdão”, disse. “Ele está um pouco atrasado para o enterro do meu filho”, respondeu Christiane Yared.
Em 2016, a Revista Congresso em Foco publicou reportagem sobre a tragédia. Veja em detalhes dados do desastre e do processo na reportagem de Mauri König e Valdir Cruz.