Lúcio Lambranho, enviado especial
Manágua (Nicarágua) – O continuísmo político que manteve a
família Somoza por mais de 45 anos no poder na Nicarágua e a corrupção da
ditadura somozista se repetem atualmente no governo sandinista de Daniel Ortega.
Essa é uma das críticas mais duras que o governo atual formado por
ex-guerilheiros recebeu desde voltou a poder em 2007, feita pelo escritor e
ex-líder político Sergio Ramírez. “Parece que estamos sentados vendo o
mesmo rolo de filme”, diz o ex-dirigente.
Filho da oligarquia nicaragüense e vice-presidente do primeiro governo de
Ortega, entre 1984 e 1990, Ramírez faz sua comparação crítica baseada em duas
frentes abertas pelo atual governo: o desejo de Ortega de mudar a Constituição e
abrir a possibilidade de reeleição indefinida e o conflito de interesse entre os
negócios privados de sandinistas favorecidos pelos empréstimos do presidente da
Venezuela, Hugo Chávez, para compra de petróleo 40% abaixo dos preços de
mercado.
Estes empréstimos da Venezuela, que chegam a 300 milhões de dólares por ano e
acabaram com os apagões de energia no país, segundo Ramírez, são tocados por
empresas privadas cujos sócios são líderes da Frente Sandinista de Libertação
Nacional (FSLN), partido que comanda o governo sandinista.
Sérgio Ramírez está longe da vida político-partidária da Nicarágua
desde 2006, quando deixou a direção do partido que criou, o Movimento de
Renovação Sandinista (MRS). Trata-se de uma dissidência da FSLN, mas hoje está
alinhada politicamente a Ortega. Fora da vida partidária, Ramírez parece ainda
mais determinado em contrapor seus antigos companheiros de FSLN.
“Eu deixei o MRS em 2006, mas já estava querendo sair quando o MRS se aliou a
Daniel Ortega nas eleições municipais de 2001. Mas continuo sendo crítico deste
governo por que não me calo mesmo estando fora da vida política”, diz o escritor
nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, parte da série
Nicarágua 30 anos, reportagens que o site publica sobre os
trigésimo aniversário da Revolução Sandinista desde o último dia 19 deste mês.
Integrante Grupo dos 12, que comandou o país após a queda de Somoza
conseguida pela FSLN e por uma insurreição popular em 1979, o escritor também
foi candidato à presidência da Nicarágua nas eleições de 1996 pelo MRS. Autor de
mais de dez livros, Ramirez escreve sobre a vida política e social do país e da
América Latina.
Neste momento, o ex-dirigente político aguarda a tradução do seu livro mais
conhecido, “Adiós muchachos: una memoria de la revolución sandinista”, que será
lançado pela editora Record no Brasil, ainda sem data definida. O livro de
Ramírez, uma crítica mordaz ao sandinismo, será prefaciado pelo ex-presidente do
Brasil e fundador do PSDB, Fernando Henrique Cardoso.
Nesta entrevista de mais de uma hora em sua casa em Manágua, Ramirez também
fala dos principais problemas sociais do seu país e das conquistas que a
Revolução Sandinista conseguiu trazer para Nicarágua, 30 anos depois do triunfo
coletivo sobre a ditadura somozista.
Leia a íntegra da entrevista exclusiva ao Congresso em Foco:
Congresso em Foco – Politicamente como o senhor enxerga a Nicarágua
atualmente em comparação com 1979, ano em que a Revolução Sandinista derrubou a
ditadura somozista?
Sergio Ramírez – Eu creio que hoje a Nicarágua é um país com
um regime político muito tradicional, muito diferente do que nós buscávamos e
fizemos nos anos 80 e depois da revolução de 1979. Pensávamos em um país diverso
e com uma moral política. Não pensava que hoje viveria no país igual ao que vivi
na minha juventude, antes da revolução, em que os juízes vendiam suas sentenças.
Somoza levantava um telefone e dizia como os magistrados deveriam decidir sobre
determinado tema. As eleições eram todas fraudadas e Somoza sempre queria se
manter no poder ou passar o país para seus filhos como de fato aconteceu. Então
minha pergunta é: quanto mudou a cultura política na Nicarágua nesses 30 anos?
Parece que estamos sentados vendo o mesmo rolo de filme, o mesmo filme outra
vez. É como um remake, os cenários e os rostos são diferentes, mas o argumento e
o roteiro do filme são os mesmos.
O senhor acredita que o presidente Daniel Ortega conseguir mudar a
Constituição, que não permite a reeleição?
Acredito que ele já tem os votos necessários para mudar a Constituição. Para
isso ele precisa do seu sócio e ex-presidente do partido Liberal, Arnoldo
Alemán. São necessários 58 votos, mas Ortega já tem 56 votos com o apoio de
Alemán. Só a Frente Sandinista tem 38 deputados, mas conseguiu os outros votos a
mais na oposição, entre eles dois votos no Movimento Renovação Sandinista (MRS).
A proposta não está na Assembléia Nacional, mas está pronta. Isso está a cargo
do vice-presidente da Corte de Suprema de Justiça, Rafael Solís. Ele está
encarregado de prepará-la. É o vice-presidente da Corte Suprema, mas é o
operador político do presidente Daniel Ortega. Ele fala isso sem problemas, sem
os pudores que deveria ter neste cargo, como falou para a imprensa local de como
se daria essa reforma política.
Como seria essa reforma política? Seria fixado algum limite para a
possibilidade de reeleição?
Falam de uma proposta de tornar a reeleição indefinida e sem limites para
mandatos sucessivos. Em uma entrevista para um jornalista estrangeiro que não
foi muito difundida por aqui, Ortega disse que quer viver até os 96 anos, como
sua mãe viveu, para poder permanecer no governo. Então, ele parece que quer ter
mais vidas de que os gatos e seguir sempre no governo.
Caso Ortega não consiga alterar a Constituição, quem seria o
candidato da FSLN? Aqui falam sempre na sua atual esposa, Rosário Murilo. Ela
será mesmo a candidata?
Se eles não puderem fazer a reforma, será a esposa de Ortega. Por que os
doutores da lei, entre eles Solís, dizem agora que a constituição não impede que
ela possa ser candidata. Por que a Constituição impede os parentes próximos do
presidente da República, mas eles dizem que esposa não é parente. E que a lei só
não permite parentes com laços de sangue ou de proximidade. Tens que perguntar a
Solís e a Ortega se eles como casal não têm proximidade.
Como o senhor vê a situação social da Nicarágua 30 anos depois da
Revolução Sandinista?
Nicarágua segue entre os três países mais pobres do continente, menos pobre
que o Haiti, pois estive lá há dois meses fazendo uma série de reportagens para
o jornal El País, da Espanha. Lá a situação é muito mais impactante. Mas com
relação à Honduras eu não sei. Aqui 70% da gente vive como menos de um dólar por
um dia. Mas o atual governo tem prestígio nas suas ações nas áreas de educação e
saúde. Na última pesquisa sobre os dois temas, 60% dos entrevistados disseram
que estavam de acordo com o governo. Isso tem impacto por que antes se cobrava
tanto na saúde como na educação, cotas de três dólares por mês, mas que para
famílias tão pobres era e continua sendo uma imensa soma de dinheiro. A
qualidade é aquela de países pobres. Os medicamentos gratuitos estão restritos a
30 tipos, os mais complicados não existem ao alcance do povo, apesar de darmos
acesso ao coquetel de drogas contra a Aids.