André Rafael *
Desde a Constituição de 1988, o Brasil vem aprimorando gradualmente suas instituições de controle e transparência. Entretanto, em que pese os avanços existentes, observa-se que o grau de confiança nas principais instituições democráticas ainda é baixo.
Antes de analisar esse período, vale ressaltar que a Constituição e as mudanças que a antecederam na década de 80 também representaram uma significativa inflexão em termos de accountability. A saída do regime militar para o regime democrático ampliou enormemente o leque possível de aspirações da população, ao mesmo tempo em que complexificou os processos decisórios.
Houve maior descentralização de poder aos cidadãos e aos entes subnacionais, além do fortalecimento do sistema de separação de poderes. Paralelamente, a generalização dos concursos e da estabilidade no serviço público também criou novos espaços de poder e de freios e contrapesos.
Agora, há muito mais possibilidades de controle. Todavia, seja pela maior complexidade do sistema ou pela própria natureza humana, não é possível dizer que o Estado esteja disponibilizando instrumentos de decisão, controle e transparência suficientes para o exercício pleno da cidadania.
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Uma demonstração disso é o nível de confiança nas instituições brasileiras. Conforme pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência, as avaliações relativas à Presidência, ao Congresso e aos partidos políticos são muito baixas.
Esse não é um problema exclusivo do Brasil. O grau de confiança nas instituições americanas parece ter um padrão semelhante.
Fonte: http://www.gallup.com/poll/1597/confidence-institutions.aspx
Em ambos os países, o grau de confiança nas Forças Armadas é bastante alto, enquanto a confiança no Congresso é baixa. Ademais, é assustador notar que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a confiança no Congresso não só é baixa, como também vem caindo paulatinamente, a despeito de todos os avanços no sistema de accountability.
Outros países parecem estar passando pela mesma crise (ver aqui e aqui).
Esse fenômeno talvez seja explicado em parte pelo recente processo de aprofundamento do acesso ao conhecimento, possibilitado pelo avanço das tecnologias de informação e comunicação. Agora, muito mais informações sobre o Estado estão disponíveis, além de ter ficado muito mais fácil analisá-las e distribuí-las para outras pessoas interessadas.
Nesse contexto, parte dos analistas brasileiros associa a baixa confiança nas instituições à maior visibilidade dos problemas. Ou seja, estaríamos em um estágio em que os sistemas de controle estão muito mais efetivos, mas a população estaria notando muito mais os problemas do que as soluções, o que explicaria a baixa confiança.
Essa talvez seja uma explicação razoável, o que nos permitiria ter uma expectativa otimista sobre o futuro.
Porém, não está clara essa capitulação dos atores ao Estado Democrático de Direito.
Os arranjos de cumplicidade, histórico e legalmente construídos, não são fáceis de desmontar. Caso fossem, seria de se esperar que experiências exitosas de países avançados facilmente alcançassem os países menos avançados.
Em contraste, o que se percebe é um aumento do nível de radicalização dos diferentes grupos sociais, obscurecendo o que é entendido como espaço público. Liberais, marxistas, keynesianos, petistas, tucanos, libertários, evangélicos, católicos, entre outros, cada vez menos demonstram disposição para entendimentos comuns.
Nesse contexto, não é possível constatar claramente a emergência de um círculo virtuoso entre gestão pública, transparência e controle.
A população ainda compreende muito pouco o dia-a-dia da administração pública e não tem sido capaz de sustentar uma visão clara dos resultados que quer alcançar por meio do Estado.
Por mais transparente e controlável que o Estado seja, a inexistência dessa visão minimamente comum impede avanços substanciais na gestão pública. Essa necessita de constância de propósitos, bem como de sistemas de avaliação regulares para evoluir.
Nosso sistema eleitoral, entretanto, tem se caracterizado pelo reforço contínuo das diferenças entre os grupos, sobrepondo-se a qualquer tentativa de construção de pactos comuns.
Rios de dinheiro são gastos em campanhas de desconstrução política de grupos adversários, enquanto muito menos recursos são usados para a construção de uma visão minimamente comum de Estado.
Note, por exemplo, o grau de conhecimento da população sobre as prioridades estabelecidas na Constituição:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Pouco se tem escrito ou problematizado sobre o assunto. Do que tem sido feito, ainda é muito circunscrito a pequenos grupos acadêmicos, de forma incapaz de se sobrepor às paixões eleitorais.
De fato, o sistema de controle somente há muito pouco tempo parece estar se preocupando em priorizar suas causas. Apenas recentemente se percebe maior efetividade do poder Judiciário contra desvios da cúpula dos demais Poderes. O corte na própria carne, todavia, ainda é tímido.
Prevalece a crítica de que os órgãos de controle preocupam-se mais com os procedimentos realizados do que com os resultados das ações estatais.
As grandes agendas nacionais (sistema tributário, juros, formação de professores, segurança pública, justiça etc.) continuam em segundo plano em relação a procedimentos burocráticos e a rivalidades político-partidárias.
É preciso construir uma nova dinâmica entre gestão pública, transparência e controle.
Tal agenda necessita ser menos autocentrada na administração pública. Precisa engajar de fato a população na formulação e gestão dos serviços públicos.
Novos paradigmas estão emergindo, como a promoção da cultura de dados abertos e as novas metodologias de cocriação de serviços públicos e de inovação aberta.
Ainda é cedo, porém, para avaliarmos se elas serão capazes de gerar instituições sistemicamente mais confiáveis.
Sigamos tentando.
* Especialista em políticas públicas e gestão governamental.